Numa sequência, mais
ou menos situada a meio do filme, os dois protagonistas do segundo filme de
Xavier Dolan observam o objeto dos seus desejos durante uma festa na sua casa.
Durante estes momentos, a imagem de Nicolas (Niels Schreider), dançando sob strobe lights com a sua mãe começa a
aparecer-nos em câmara lenta. Estamos a observá-lo pelo olhar de Marie (Monia
Chokri) e Francis (Xavier Dolan), absorvendo languidamente a sua forma, o seu
movimento, estetizando a sua beleza ao ponto de que por entre os planos das
figuras dançantes, vemos imagens de David
de Michelangelo e outras esculturas renascentistas, assim como de desenhos
de Jean Cocteau. A beleza e a atração tornam-se impossíveis de desassociar do
olhar estético dos protagonistas, enquanto estes são apresentados descontentes
e críticos, numa composição simétrica, e com a imagem a uma velocidade normal.
Ambos estão cuidadosamente vestidos e caracterizados, como que vestidos com os
figurinos de si próprios e por si mesmos concebidos.
A vida e o amor como
uma experiência estética, a superficialidade emocional tornada linguagem
cinemática. Este tipo de olhar com ênfase numa estetização superficial do mundo
envolve e consome todo o segundo filme de Dolan. A imaturidade febril e
violenta do seu primeiro filme é aqui substituída por outro tipo de imaturidade
que também se manifesta com uma exuberante intensidade sobre o filme final.
Aqui a imaturidade emocional dos dois protagonistas, parece espelhar a sua superficialidade,
tanto para consigo mesmos como para o mundo em redor. Os dois amigos passam o
filme a tentar captar a atenção do seu desejado, mantendo-se num limbo
constante em que vão imaginando e dando significados pesados a momentos que
nenhum significado parecem ter. No final nenhum dos dois conseguiu o que
desejava, mantendo-se Nicolas uma visão distante, agora deliberadamente
afastada e recusada pelos dois protagonistas, depois das suas rejeições.
Isolados nas suas
próprias imagens, durante todo o filme a visão de Marie e Francis impregna cada
segundo, cada imagem e cada som do filme, explodindo da tela como uma avalanche
de escolhas estilísticas e referências a outros cineastas. A exuberância de
Dolan ganha aqui uma robustez polida que o seu primeiro filme não tinha, sendo,
talvez, a sua mais complicada obra assim como a mais difícil de apreciar.
A maturação de Dolan
e do seu estilo ao longo dos seus filmes é algo fascinante de se observar, e se
o seu terceiro trabalho exemplifica o máximo da sua hubris estilística, neste
filme vemos o máximo das suas influências, nunca mais descaradamente expostas
que neste filme. O enredo de Truffaut, as sequências ao som de Bang Bang inspiradas em Wong Kar Wai, as
cenas de sexo sob luz e filtros coloridos assim como as entrevistas sobre o
amor, que vão interrompendo a narrativa, vêm diretamente de Godard; uma cena
sob a luz de uma fogueira não consegue evitar comparações com Van Sant. Tal
como, ou mais ainda que as suas personagens, Dolan é uma criatura das suas
influências e inspirações estéticas e formais.
Aqui, paradoxalmente
ao que se vê no resto da sua obra com a exceção de Tom à la farme, parece existir uma certa frieza e distanciamento
calculista das suas personagens, apesar da extravagância estilística. O olhar
com que observamos os dois amigos em conflito pelas atenções do mesmo homem, é
claramente o olhar de Dolan, sendo ao mesmo tempo o olhar das personagens em si,
a sua visão performativa sobre si mesmos, criando uma espécie de jogo
formalístico entre distanciamento e intimidade estrutural. Nas cenas em que se
preparam para uma saída com Nicolas, a câmara lenta e a escolha musical vai
salientando a sua superficialidade, quase que os julgando ao mesmo tempo que os
glorifica. O modo como os dois se criam a si mesmos como que os reduz pela sua
própria mão a imagens vazias que andam pelo filme em busca de um toque ou de um
olhar de uma figura que não podia ser mais distante na sua representação dentro
do filme. Nicolas é uma constante imagem, algo bem distante da realidade tátil,
as suas atitudes e o seu próprio visual uma exteriorização da sua
inalcançabilidade.
Em Les amours Imaginaires, vamos observando
figuras presas em cápsulas da sua própria criação, humanos reduzidos a estilos
e superfícies, entre as quais o toque e a ligação é uma impossibilidade. Na sua
busca obsessiva por Nicolas, a única relação interpessoal que os dois parecem conseguir
estabelecer é rompida, e o seu isolamento tanto existencial como estilístico
apenas se intensifica. Olhemos a maneira como Dolan filma cenas em que o toque
entre pessoas é algo central à cena. Beijos na face são mostrados em câmara
lenta; lutas e brigas são expostos em planos impressionistas no seu uso de cor,
luz e mínimas distâncias focais; momentos de toques prolongados como um braço
por cima dos ombros são filmados em planos prolongados na sua falta de corte ou
movimento, como que enfatizando a linguagem corporal e desconforto das suas
personagens. Até as cenas de sexo seguem esta lógica, sendo filmadas em cores
fortes e em close-ups constantes, abstratizando os corpos em questão e tornando
a experiência mais friamente estética que humana e tátil.
Talvez o mais superficial
filme da obra do realizador canadiano, este filme é ao mesmo tempo, a sua obra
que o jovem autor mais parece refletir sobre o seu próprio estilo, levando as
suas escolhas muitas vezes acusadas de vazias e superficiais, a extremos quase
experimentais na sua violência e combinação. Quase todos os recursos
estilísticos de Dolan estão aqui exemplificados de uma maneira ou outra, assim
como muitas das suas preocupações temáticas, sendo que a figura maternal
aparece na forma na mãe de Nicolas, interpretada por Anne Dorval noutra
colaboração com o realizador.
Nos seus filmes, o
estilo formal é, como já disse, uma extensão das personagens, incorporando o
seu olhar na forma do filme, criando uma aproximação das personagens em si,
criando uma intimidade emocional e exuberante. Aqui, paradoxalmente, essa
aproximação também ocorre, mas ao invés de criar intimidade ou desenvolver a
sua complexidade emocional, esta aproximação parece revelar o vazio e a
imaturidade das personagens. Cria-se um distanciamento a partir da aproximação.
No seu filme anterior, as suas personagens também apresentavam a imaturidade e
mesquinhez quase insuportável dos protagonistas deste filme, mas o filme nunca
os expunha como imagens vazias, criando intimidade quase que forçosamente e
forçando a audiência a olhar as personagens na sua irritante humanidade. Aqui
tal humanidade é coberta pelo olhar estético tanto de Marie e Francis como de
Dolan, criando um balanço precário entre exploração do desejo superficial,
incisivo e fascinante, e entre um filme simplesmente alienante e impossível de
apreciar.
Ao contrário do resto
do seu trabalho, aqui muitas das escolhas estilísticas parecem por vezes cair
na simples ineficácia cinemática, especialmente o uso de supostas entrevistas
que vão aparecendo ao longo do filme. Dolan parece aqui tentar criar uma
intimidade e honestidade emocional que apenas parece artificial e estudada,
especialmente em comparação e conjunção com o resto do filme. Mais do que
elementos formalmente funcionais, estas experiências parecem mais fracassos
estilísticos num filme de estudantes imaturos.
Mas mesmo com tais
fracassos a alternarem o génio de outros momentos, o filme de Dolan consegue
elevar-se acima da sua inconsistência, mostrando a crescente ambição do seu
autor. O turbilhão estilístico de Dolan nunca é tão frio como neste filme, nem
as suas figuras mais distantes. Ao longo do filme Dolan observa as suas figuras
em grande plano, com estas a desviarem o olhar, muitas vezes virando os olhos
para baixo. Quase que parecem cientes da câmara que os observa, querendo
escapar por momentos da sua confrontação como se, por momentos, quisessem
escapar ao artifício que forçam à sua própria apresentação ao mundo. Estes são
momentos breves e passageiros, nunca interrompendo por completo as superfícies
exuberantes do filme, mas há algo de estranhamente melancólico que é aqui
encontrado no vazio do seu olhar.
Dolan pode ser superficial e imaturo no seu cinema, mas
também existe uma corrente de maturidade e experimentalismo que conferem uma
intimidade estranha à sua obra, e por muito estranho que pareça, Les Amours Imaginaires talvez seja o
melhor caso de estudo para tais facetas do estilo de Xavier Dolan.
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