quarta-feira, 5 de agosto de 2015

PAISÀ (1946) de Roberto Rossellini



 A estruturação de um filme em episódios separados é algo que é essencialmente presente na história do cinema italiano. O filme ónibus chegou ao seu auge na década de 60 com filmes como Boccacio ’70, mas antes desses filmes em que vários realizadores criavam coleções de curtas-metragens unidas num só filme, o cinema neorrealista do pós-guerra começou a brincar com essa estrutura. Um dos primeiros filmes a seguir esta estruturação foi Paisà, o segundo filme da chamada trilogia de guerra de Roberto Rossellini.

 O filme foi realizado por Roberto Rossellini, parcialmente a partir 6 guiões diferentes de seis autores diferentes. Tendo sido criado depois de Roma, Cittá Aperta, Paisà é bastante distinto desse outro marco na história do cinema italiano. Por um lado, aqui temos uma tentativa de oferecer um retrato amplo da realidade da Itália aquando da libertação pelos americanos, que teve início em 1943, por outro lado, temos aqui um filme com financiamento estrangeiro ao invés do minúsculo financiamento que resultou em muito do estilo rude e low-tech do filme anterior desta trilogia.

 No filme, Rossellini continua a seguir o estilo neorrealista, usando atores não-profissionais, muitas vezes escolhidos simplesmente pelo realizador gostar da sua expressão. Temos aqui uma certa rejeição da beleza estética nas imagens do filme, uma procura de mostrar a realidade da vida contemporânea, ou pelo menos uma versão artística da realidade filtrada pela perceção do próprio Rossellini.

 O uso de não-atores é particularmente notável no primeiro episódio, no qual observamos uma jovem siciliana chamada Carmela que acompanha durante uma noite, um solitário soldado americano no início da campanha italiana, sendo uma testemunha da sua morte nas mãos dos alemães e acabando por morrer antes do fim dessa noite. No final deste episódio o resto dos americanos observa o corpo de Carmela, disposto nas rochas da costa, e chamam-lhe uma rapariga italiana suja antes de partirem. Este episódio, que consegue alcançar uma delicadeza incomum na obra de Rossellini durante a conversa do americano com a siciliana, impõe ao filme a sua carga temática e o seu tom.

 Logo aqui temos um dos grandes, senão o principal tema do filme, a comunicação humana. A língua, ou melhor as línguas faladas pelo filme, maioritariamente inglês e italiano, ao invés de servirem para criar laços entre os humanos presentes nas narrativas, são usualmente apresentadas como barreiras. Se a empatia entre humanos é o outro grande tema do filme, então a comunicação parece-me ser apresentada pelo filme quase como uma impossibilidade. O filme apela à empatia, apela à compaixão, mas também põem a questão da possibilidade de isto mesmo acontecer, quer seja no apelo de soldados americanos aos seus captores alemães, quer seja o apelo de um soldado americano católico acompanhado por um judeu e por um protestante, a um grupo de monges franciscanos. Dos três filmes da trilogia, este é talvez o mais humanista e que menos se embrenha na exploração gratuita do sofrimento das suas figuras, que menos os martiriza ou torna em heróis.

  No segundo episódio, observamos um polícia militar americano a ser ludibriado por um jovem rapaz das ruas de Nápoles. A escolha de um afro-americano para o papel de protagonista neste episódio é bastante curiosa, especialmente no modo como informa um monólogo embriagado que marca o episódio. Aí Joe, o militar americano, conjetura sobre uma chegada a casa como um herói. Ele é exuberante e jovial até começar a falar da sua vida real no seu país, e acaba por melancolicamente revelar que não deseja, na realidade, voltar a casa.

 Pelo terceiro episódio, os ritmos do filme já estão estabelecidos. Também aqui vemos dois indivíduos numa contínua e conflituosa tentativa de comunicação, que acaba tragicamente, sendo que a empatia e aproximação entre os dois humanos continua uma impossibilidade. Aqui uma prostituta seduz um americano inebriado. Ele fala-lhe de uma rapariga italiana por quem ele se apaixonou e a prostituta apercebe-se que se trata dela mesma. De manhã, a prostituta partiu, deixando uma morada num papel que o americano ignora, deixando a cidade e a rapariga para trás.

  O quarto episódio é, para mim, aquele que melhor funciona em todo o filme. Encontramo-nos em Florença, acompanhando um italiano em busca da família e uma enfermeira americana em busca de um pintor. Tudo isto durante a luta entre os aliados e a resistência italiana contra os fascistas italianos e os alemães. Um dos elementos mais interessantes deste episódio é o modo como Rossellini pega na beleza de Florença e parece quase criar um tratado contra esta mesma beleza. Aqui a luta pela sobrevivência supera a beleza da arquitetura, as únicas pessoas que demonstram alguma atenção ao seu ambiente são os aliados, cujas perguntas mais se assemelham às de turistas. Aqui a luta pela sobrevivência deste novo realismo parece impor-se à beleza polida da própria paisagem urbana. Também é, de todos os segmentos, o mais tenso, demonstrando o ambiente de guerra com uma intensidade apenas semelhante ao trabalho de Rossellini no seu filme anterior. A imagem final do episódio é impossível de esquecer, Harriett, a enfermeira, depois de saber da morte do seu amado, reconforta um soldado italiano moribundo. A esperança quase que se extinguiu desta Itália de Rossellini, mas ele ainda nos deixa sentir em momentos como este, a beleza da empatia e da perseverança humana por entre todo este sofrimento.

 O quinto episódio retrata a história dos monges franciscanos que acima mencionei. É o mais abertamente cómico dos episódios e, estruturalmente, parece marcar um momento de descanso da audiência entre o mais tenso dos segmentos, e o mais desesperante.

 No sexto e último episódio observamos a colaboração entre os resistentes italianos e os aliados durante o resgate de dois soldados britânicos em território alemão. Neste episódio temos algumas das imagens mais fortes da trilogia, incluindo um crepúsculo sinistro em que uma criança chora enquanto à sua volta apenas cadáveres se encontram. No final deste último episódio, depois da execução dos resistentes italianos, dois dos outros prisioneiros que se opuseram à execução dos seus companheiros italianos.

  Dos três filmes que compõem a chamada trilogia da guerra de Rossellini, este é, sem dúvida, o mais ambicioso dos projetos. Rossellini queria criar um retrato de toda a Itália durante a libertação e este foi o filme que se originou do seu impulso. Como consequência da sua ambição e da estruturação episódica do filme, o produto final é um pouco errático em termos de ritmo e até qualidade. Os quatro primeiros episódios entram numa certa redundância de temas, chegando a ser um pouco repetitivos, sendo que o terceiro episódio seja, para mim, aquele mais facilmente retirado do filme sem que grande impacto se perdesse. Mas isso é natural num filme episódico e não faz com que este filme não seja um dos mais importantes marcos dos primeiros anos do neorrealismo italiano, sendo uma das mais ambiciosas obras de todo este movimento.


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