A estruturação de um
filme em episódios separados é algo que é essencialmente presente na história
do cinema italiano. O filme ónibus chegou ao seu auge na década de 60 com
filmes como Boccacio ’70, mas antes
desses filmes em que vários realizadores criavam coleções de curtas-metragens
unidas num só filme, o cinema neorrealista do pós-guerra começou a brincar com
essa estrutura. Um dos primeiros filmes a seguir esta estruturação foi Paisà, o segundo filme da chamada
trilogia de guerra de Roberto Rossellini.
O filme foi realizado
por Roberto Rossellini, parcialmente a partir 6 guiões diferentes de seis
autores diferentes. Tendo sido criado depois de Roma, Cittá Aperta, Paisà é
bastante distinto desse outro marco na história do cinema italiano. Por um
lado, aqui temos uma tentativa de oferecer um retrato amplo da realidade da
Itália aquando da libertação pelos americanos, que teve início em 1943, por
outro lado, temos aqui um filme com financiamento estrangeiro ao invés do
minúsculo financiamento que resultou em muito do estilo rude e low-tech do filme anterior desta
trilogia.
No filme, Rossellini
continua a seguir o estilo neorrealista, usando atores não-profissionais,
muitas vezes escolhidos simplesmente pelo realizador gostar da sua expressão.
Temos aqui uma certa rejeição da beleza estética nas imagens do filme, uma
procura de mostrar a realidade da vida contemporânea, ou pelo menos uma versão
artística da realidade filtrada pela perceção do próprio Rossellini.
O uso de não-atores é
particularmente notável no primeiro episódio, no qual observamos uma jovem
siciliana chamada Carmela que acompanha durante uma noite, um solitário soldado
americano no início da campanha italiana, sendo uma testemunha da sua morte nas
mãos dos alemães e acabando por morrer antes do fim dessa noite. No final deste
episódio o resto dos americanos observa o corpo de Carmela, disposto nas rochas
da costa, e chamam-lhe uma rapariga italiana suja antes de partirem. Este
episódio, que consegue alcançar uma delicadeza incomum na obra de Rossellini
durante a conversa do americano com a siciliana, impõe ao filme a sua carga
temática e o seu tom.
Logo aqui temos um
dos grandes, senão o principal tema do filme, a comunicação humana. A língua,
ou melhor as línguas faladas pelo filme, maioritariamente inglês e italiano, ao
invés de servirem para criar laços entre os humanos presentes nas narrativas,
são usualmente apresentadas como barreiras. Se a empatia entre humanos é o
outro grande tema do filme, então a comunicação parece-me ser apresentada pelo
filme quase como uma impossibilidade. O filme apela à empatia, apela à
compaixão, mas também põem a questão da possibilidade de isto mesmo acontecer,
quer seja no apelo de soldados americanos aos seus captores alemães, quer seja
o apelo de um soldado americano católico acompanhado por um judeu e por um
protestante, a um grupo de monges franciscanos. Dos três filmes da trilogia,
este é talvez o mais humanista e que menos se embrenha na exploração gratuita
do sofrimento das suas figuras, que menos os martiriza ou torna em heróis.
No segundo episódio,
observamos um polícia militar americano a ser ludibriado por um jovem rapaz das
ruas de Nápoles. A escolha de um afro-americano para o papel de protagonista
neste episódio é bastante curiosa, especialmente no modo como informa um
monólogo embriagado que marca o episódio. Aí Joe, o militar americano,
conjetura sobre uma chegada a casa como um herói. Ele é exuberante e jovial até
começar a falar da sua vida real no seu país, e acaba por melancolicamente
revelar que não deseja, na realidade, voltar a casa.
Pelo terceiro
episódio, os ritmos do filme já estão estabelecidos. Também aqui vemos dois
indivíduos numa contínua e conflituosa tentativa de comunicação, que acaba
tragicamente, sendo que a empatia e aproximação entre os dois humanos continua
uma impossibilidade. Aqui uma prostituta seduz um americano inebriado. Ele
fala-lhe de uma rapariga italiana por quem ele se apaixonou e a prostituta
apercebe-se que se trata dela mesma. De manhã, a prostituta partiu, deixando
uma morada num papel que o americano ignora, deixando a cidade e a rapariga
para trás.
O quarto episódio é,
para mim, aquele que melhor funciona em todo o filme. Encontramo-nos em
Florença, acompanhando um italiano em busca da família e uma enfermeira
americana em busca de um pintor. Tudo isto durante a luta entre os aliados e a
resistência italiana contra os fascistas italianos e os alemães. Um dos
elementos mais interessantes deste episódio é o modo como Rossellini pega na
beleza de Florença e parece quase criar um tratado contra esta mesma beleza.
Aqui a luta pela sobrevivência supera a beleza da arquitetura, as únicas
pessoas que demonstram alguma atenção ao seu ambiente são os aliados, cujas
perguntas mais se assemelham às de turistas. Aqui a luta pela sobrevivência
deste novo realismo parece impor-se à beleza polida da própria paisagem urbana.
Também é, de todos os segmentos, o mais tenso, demonstrando o ambiente de
guerra com uma intensidade apenas semelhante ao trabalho de Rossellini no seu
filme anterior. A imagem final do episódio é impossível de esquecer, Harriett,
a enfermeira, depois de saber da morte do seu amado, reconforta um soldado
italiano moribundo. A esperança quase que se extinguiu desta Itália de Rossellini,
mas ele ainda nos deixa sentir em momentos como este, a beleza da empatia e da
perseverança humana por entre todo este sofrimento.
O quinto episódio retrata
a história dos monges franciscanos que acima mencionei. É o mais abertamente
cómico dos episódios e, estruturalmente, parece marcar um momento de descanso
da audiência entre o mais tenso dos segmentos, e o mais desesperante.
No sexto e último
episódio observamos a colaboração entre os resistentes italianos e os aliados
durante o resgate de dois soldados britânicos em território alemão. Neste
episódio temos algumas das imagens mais fortes da trilogia, incluindo um
crepúsculo sinistro em que uma criança chora enquanto à sua volta apenas
cadáveres se encontram. No final deste último episódio, depois da execução dos
resistentes italianos, dois dos outros prisioneiros que se opuseram à execução dos
seus companheiros italianos.
Dos três filmes que
compõem a chamada trilogia da guerra de Rossellini, este é, sem dúvida, o mais
ambicioso dos projetos. Rossellini queria criar um retrato de toda a Itália
durante a libertação e este foi o filme que se originou do seu impulso. Como
consequência da sua ambição e da estruturação episódica do filme, o produto
final é um pouco errático em termos de ritmo e até qualidade. Os quatro
primeiros episódios entram numa certa redundância de temas, chegando a ser um
pouco repetitivos, sendo que o terceiro episódio seja, para mim, aquele mais
facilmente retirado do filme sem que grande impacto se perdesse. Mas isso é
natural num filme episódico e não faz com que este filme não seja um dos mais
importantes marcos dos primeiros anos do neorrealismo italiano, sendo uma das
mais ambiciosas obras de todo este movimento.
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