Uma criança deambula
sozinha pelas ruínas de Berlim. Observa um grupo de crianças da mesma idade a
jogar à bola e tenta participar, mas as outras crianças rejeitam o rapaz. O seu
nome é Edmund e há pouco, observamos o modo como ele envenenou o próprio pai. A
câmara segue-o, ele passa pela luz e pelas sombras, por momentos para e ouve a
música que vem de uma igreja da qual apenas sobram as paredes laterais. O seu
passeio fatalista encerra-se num edifício em ruínas. Nele o rapaz parece
recuperar momentaneamente alguma da inocência infantil que parece já não ter
lugar neste mundo de miséria. Trepa pelas fundações expostas da estrutura,
brinca com os escombros, até que, finalmente, olha para a rua, para as ruínas
da Alemanha pós-guerra. Edmund suicida-se, atirando-se dessas mesmas ruínas,
para o horror de uma mulher que passava pela rua e vê a morte do jovem.
Assim se encerra o
ultimo filme da suposta trilogia da Guerra de Rossellini.
Para o realizador
italiano, esta sequência era a justificação da existência de todo o filme em
que se inserem estes miseráveis momentos. Um filme dedicado ao filho do
realizador, falecido em 1946, e supostamente o ator escolhido para o papel de
Edmund foi escolhido exatamente pela sua semelhança ao filho de Rossellini.
Desde já podemos
observar algo que separa este filme de Paisà
e Roma, Cittá Aperta. Falo da
existência de um protagonista. Enquanto os outros filmes se preocuparam com um
retrato de uma população, quer seja a resistência italiana no primeiro filme,
ou a população geral de Itália aquando da libertação americana, neste filme a
camara está maioritariamente focada na existência de Edmund. Por vezes,
seguimos outros membros da sua família composta por um pai enfermo e moribundo,
um antinazi que no passado se conformou ao silêncio, a sua irmã mais velha, que
trata de seu pai, e seu irmão mais velho, um antigo soldado nazi que lutou até
ao fim nas ruas de Berlim.
Antes dos momentos
finais que acima descrevi, o principal interesse da obra está na luta pela
sobrevivência desta unidade familiar. Edmund tenta obter alimento para a sua
família, quer seja tentando arranjar trabalho, quer seja vendendo uma balança
velha. Seu pai, sua irmã e irmão são maioritariamente apresentados no interior
do apartamento onde vivem com mais nove famílias. O irmão está escondido, com
medo das represálias que o esperam na nova Alemanha do pós-guerra.
No início do filme,
Rosselini vocaliza a sua intenção de mostrar um olhar objetivo sobre a miséria
humana na Alemanha da época. O realizador diz não querer oferecer uma acusação
ou uma defesa do povo alemão. Vindo de Rossellini, que em filmes anteriores,
nomeadamente Roma, Cittá Aperta,
tinha retratado os alemães como invariavelmente seres vilanescos e monstruosos,
esta introdução parece mostrar uma nova visão de Rossellini sobre o seu próprio
papel enquanto criador de cinema. Mas o que vemos no filme não é esse
objetivismo nem essa fidelidade à realidade que transparecem no filme final.
Muitos acusam este
filme de cair no melodrama e de se afastar das intenções realistas do movimento
neorrealista. Conjugue-se isto com o forte uso de cenários para a filmagem dos
interiores e mesmo de rear projection,
e temos aqui as primeiras notas da separação de Rossellini do estilo cinemático
que tanto ajudou a estabelecer. Para mim, no entanto, acho que é erróneo acusar
o realizador italiano de cair aqui em melodrama, achando eu que esta acusação
seria muito mais indicada para o primeiro filme desta trilogia do que para o último.
Mesmo assim há que apontar
algo que me parece óbvio e que é apenas mais assegurado pelas próprias palavras
de Rossellini em entrevistas posteriores às filmagens deste filme. Os momentos
finais do filme parecem criados de um modo metódico e intencional que contrasta
com o resto do filme, muitas vezes semelhante a um esboço mais do que a uma
obra finalizada, sendo que o próprio guião parece entrar em contradição com as
intenções de Rossellini na introdução do filme.
O filme está tão apegado
à perspetiva do seu protagonista que qualquer tentativa de objetividade por
Rossellini parece um pouco fútil. As opiniões políticas do realizador, por
exemplo, estão bem presentes no filme. Olhemos, por exemplo, para os momentos
que antecedem a morte do pai de Edmund pelas mãos do próprio rapaz. Um discurso
cansado e moribundo do velho homem, em que fala de como com o seu silêncio
contribui para o estado das suas vidas agora, em que se culpabiliza por ter
deixado os seus filhos seguirem o caminho dos nazis apesar do seu próprio
pensamento antinazi. Este é um discurso filmado com toda a reverência que Rossellini
conseguia inserir neste seu filme realista. Em contraste veja-se a presença de
um antigo professor de Edmund, um pederasta repugnante tanto pelos seus avanços
a Edmund como pelas suas ideologias nazis. Numa das mais marcantes cenas do
filme antes do final, mostra Edmund, cumprindo as ordens do seu professor, toca
uma gravação de um antigo discurso de Hitler no meio da rua. As palavras do
antigo líder do regime ecoam pelas ruínas da cidade como uma sombra de um
passado odioso ainda a assombrar esta nova Alemanha.
Estas duas figuras, a
do pai e a do professor, são as principais figuras na decisão fatídica de
Edmund de envenenar o pai. O professor defende que é necessário eliminar os mais
fracos para que os mais fortes sobrevivam neste mundo, enquanto, numa cena
anterior, o pai do rapaz havia expressado o seu desejo de morrer, de acabar com
o seu sofrimento. No final, a motivação de Edmund é deixada um pouco opaca. Vemo-lo
a confrontar o professor que lhe deu a ideia, mas ficamos na dúvida. Terá este
parricídio sido um ato de um nazi convencido da sua superioridade ou de um
filho a mostrar misericórdia para com o seu pai?
Se nos outros filmes
da trilogia o espetador é deixado com um sentimento de esperança apesar de toda
a miséria e sofrimento, neste filme tal não ocorre. Deixamos o filme com a
perceção de que a morte terá talvez sido o único modo de Edmund fugir ao mundo
de sofrimento em que existia, um mundo onde a inocência de uma criança não
tinha lugar para existir, onde a crueldade e a miséria humana se manifestam em
todas as sombras das ruínas de uma cidade destruída.
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