quinta-feira, 6 de agosto de 2015

GERMANIA, ANNO ZERO (1948) de Roberto Rossellini




 Uma criança deambula sozinha pelas ruínas de Berlim. Observa um grupo de crianças da mesma idade a jogar à bola e tenta participar, mas as outras crianças rejeitam o rapaz. O seu nome é Edmund e há pouco, observamos o modo como ele envenenou o próprio pai. A câmara segue-o, ele passa pela luz e pelas sombras, por momentos para e ouve a música que vem de uma igreja da qual apenas sobram as paredes laterais. O seu passeio fatalista encerra-se num edifício em ruínas. Nele o rapaz parece recuperar momentaneamente alguma da inocência infantil que parece já não ter lugar neste mundo de miséria. Trepa pelas fundações expostas da estrutura, brinca com os escombros, até que, finalmente, olha para a rua, para as ruínas da Alemanha pós-guerra. Edmund suicida-se, atirando-se dessas mesmas ruínas, para o horror de uma mulher que passava pela rua e vê a morte do jovem.

 Assim se encerra o ultimo filme da suposta trilogia da Guerra de Rossellini.

 Para o realizador italiano, esta sequência era a justificação da existência de todo o filme em que se inserem estes miseráveis momentos. Um filme dedicado ao filho do realizador, falecido em 1946, e supostamente o ator escolhido para o papel de Edmund foi escolhido exatamente pela sua semelhança ao filho de Rossellini.

 Desde já podemos observar algo que separa este filme de Paisà e Roma, Cittá Aperta. Falo da existência de um protagonista. Enquanto os outros filmes se preocuparam com um retrato de uma população, quer seja a resistência italiana no primeiro filme, ou a população geral de Itália aquando da libertação americana, neste filme a camara está maioritariamente focada na existência de Edmund. Por vezes, seguimos outros membros da sua família composta por um pai enfermo e moribundo, um antinazi que no passado se conformou ao silêncio, a sua irmã mais velha, que trata de seu pai, e seu irmão mais velho, um antigo soldado nazi que lutou até ao fim nas ruas de Berlim.

 Antes dos momentos finais que acima descrevi, o principal interesse da obra está na luta pela sobrevivência desta unidade familiar. Edmund tenta obter alimento para a sua família, quer seja tentando arranjar trabalho, quer seja vendendo uma balança velha. Seu pai, sua irmã e irmão são maioritariamente apresentados no interior do apartamento onde vivem com mais nove famílias. O irmão está escondido, com medo das represálias que o esperam na nova Alemanha do pós-guerra.
 No início do filme, Rosselini vocaliza a sua intenção de mostrar um olhar objetivo sobre a miséria humana na Alemanha da época. O realizador diz não querer oferecer uma acusação ou uma defesa do povo alemão. Vindo de Rossellini, que em filmes anteriores, nomeadamente Roma, Cittá Aperta, tinha retratado os alemães como invariavelmente seres vilanescos e monstruosos, esta introdução parece mostrar uma nova visão de Rossellini sobre o seu próprio papel enquanto criador de cinema. Mas o que vemos no filme não é esse objetivismo nem essa fidelidade à realidade que transparecem no filme final.

 Muitos acusam este filme de cair no melodrama e de se afastar das intenções realistas do movimento neorrealista. Conjugue-se isto com o forte uso de cenários para a filmagem dos interiores e mesmo de rear projection, e temos aqui as primeiras notas da separação de Rossellini do estilo cinemático que tanto ajudou a estabelecer. Para mim, no entanto, acho que é erróneo acusar o realizador italiano de cair aqui em melodrama, achando eu que esta acusação seria muito mais indicada para o primeiro filme desta trilogia do que para o último.

 Mesmo assim há que apontar algo que me parece óbvio e que é apenas mais assegurado pelas próprias palavras de Rossellini em entrevistas posteriores às filmagens deste filme. Os momentos finais do filme parecem criados de um modo metódico e intencional que contrasta com o resto do filme, muitas vezes semelhante a um esboço mais do que a uma obra finalizada, sendo que o próprio guião parece entrar em contradição com as intenções de Rossellini na introdução do filme.

 O filme está tão apegado à perspetiva do seu protagonista que qualquer tentativa de objetividade por Rossellini parece um pouco fútil. As opiniões políticas do realizador, por exemplo, estão bem presentes no filme. Olhemos, por exemplo, para os momentos que antecedem a morte do pai de Edmund pelas mãos do próprio rapaz. Um discurso cansado e moribundo do velho homem, em que fala de como com o seu silêncio contribui para o estado das suas vidas agora, em que se culpabiliza por ter deixado os seus filhos seguirem o caminho dos nazis apesar do seu próprio pensamento antinazi. Este é um discurso filmado com toda a reverência que Rossellini conseguia inserir neste seu filme realista. Em contraste veja-se a presença de um antigo professor de Edmund, um pederasta repugnante tanto pelos seus avanços a Edmund como pelas suas ideologias nazis. Numa das mais marcantes cenas do filme antes do final, mostra Edmund, cumprindo as ordens do seu professor, toca uma gravação de um antigo discurso de Hitler no meio da rua. As palavras do antigo líder do regime ecoam pelas ruínas da cidade como uma sombra de um passado odioso ainda a assombrar esta nova Alemanha.

 Estas duas figuras, a do pai e a do professor, são as principais figuras na decisão fatídica de Edmund de envenenar o pai. O professor defende que é necessário eliminar os mais fracos para que os mais fortes sobrevivam neste mundo, enquanto, numa cena anterior, o pai do rapaz havia expressado o seu desejo de morrer, de acabar com o seu sofrimento. No final, a motivação de Edmund é deixada um pouco opaca. Vemo-lo a confrontar o professor que lhe deu a ideia, mas ficamos na dúvida. Terá este parricídio sido um ato de um nazi convencido da sua superioridade ou de um filho a mostrar misericórdia para com o seu pai?

 Se nos outros filmes da trilogia o espetador é deixado com um sentimento de esperança apesar de toda a miséria e sofrimento, neste filme tal não ocorre. Deixamos o filme com a perceção de que a morte terá talvez sido o único modo de Edmund fugir ao mundo de sofrimento em que existia, um mundo onde a inocência de uma criança não tinha lugar para existir, onde a crueldade e a miséria humana se manifestam em todas as sombras das ruínas de uma cidade destruída.


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