Quando escrevo e publico
estes meus textos, no título incluo sempre o nome do seu realizador, como que
lhe atribuindo a autoria do filme. Normalmente não me questiono acerca de tal
escolha, mas com este filme, quase que me sinto injusto ao apenas incluir o
nome de Torneaur e não o nome de Val Lewton, o produtor do filme. Lewton, um
imigrante originário do que agora é a Ucrânia, que liderou uma das unidades de
produção dos estúdios RKO depois de ter abandonado uma posição como
argumentista para a MGM. Na RKO, este produtor ajudou a criar uma série de
filmes de terror ditos de série B. Esses seus filmes prevalecem hoje em dia,
sendo por muitos considerados, incluindo por mim, como algumas das melhores
obras do género.
Em grande parte
destes seus filmes de terror, Lewton oferece um filme que mais que um filme de
terror parece inicialmente apresentar-se como um drama normal. Cat People, por exemplo, inicia-se num
registo de um romance trágico. Vemos Irena (Simone Simon) e Oliver (Kent Smith)
conhecerem-se no jardim zoológico, onde Irena visita quase obsessivamente uma
pantera e a desenha. Os dois imediatamente parecem sentir uma ligação, um meet cute clássico, e rapidamente estão
a tomar chá em casa de Irena, onde ela reconta uma história da sua terra natal
na Sérvia. Essa lenda de satânicos que se transformam em felinos assombra o
resto do filme, sendo que a possibilidade de ser uma dessas criaturas atormenta
toda a existência de Irena, que, mesmo depois de se casar com Oliver, recusa-se
a beijar ou ter qualquer relação íntima com o seu amado. O seu medo de que a
paixão irá libertar a besta dentro de si vai criando uma espiral doentia de
repressão que vai tornando cada vez mais frágil e neurótica a figura da
protagonista. Com um casamento perturbado e tenso, Oliver vai-se aproximando de
uma colega de trabalho, Alice (Jane Randolph), despoletando os ciúmes de Irena.
Neste ambiente de dúvidas e tensão, tanto matrimonial como sexual e
identitária, o terror que torna o filme célebre começa a revelar.se.
O desejo sexual, e a ação da protagonista em relação a este,
tornam-se aqui a chave do seu comportamento e do conflito do filme. Muitas
vezes no futuro este tipo de mecanismo narrativo e temático seria utilizado por
filmes de terror, mas raramente com o mesmo tipo de delicadeza que aqui se
encontra. É difícil detetar a delicadeza de que falo no diálogo, muitas vezes
óbvio, mas no tratamento da sua protagonista, o filme parece encontrar empatia
e uma figura aterrorizada da sua própria natureza. Os moralismos comuns, que
ditam o funcionamento do cinema de terror, parecem aqui escondidos. Apesar de
ser a antagonista do filme, o olhar do filme sobre a sua figura nunca é a do
macabro interesse sobre um monstro, mas o de um melancólico olhar sobre uma
figura trágica.
A paranoia inflama
toda a segunda metade do filme, sendo que, até ao final impingido pelo estúdio,
nunca temos a certeza se estamos a observar uma manifestação do sobrenatural ou
a demência psicótica de uma mulher reprimida com acesso à chave da jaula de uma
pantera de jardim zoológico. O terror no filme depende, aliás, maioritariamente
de uma dúvida constante e ameaçadora. As sombras que abundam no filme parecem
ser manifestações visuais dessa dúvida, tornando impossível identificar a
origem de sons exagerados de modo expressionista ou perceber se uma presença
que persegue Alice na escuridão de uma rua urbana é Irena ou um felino
monstruoso.
O facto de o filme ainda emergir como uma obra genuinamente
assustadora, mesmo para uma cética audiência contemporânea, advém grandemente
do trabalho de Torneaur, assim como do seu diretor de fotografia Nicholas
Musuraca. As sombras que já referi são uma constante presença no filme,
tornando o edifício do apartamento de Irena (um cenário reciclado de The Magnificent Ambersons) numa caverna
de madeiras trabalhadas e sombras cortantes, ou uma rua noturna num pesadelo
interminável. O uso de luzes extremamente intensas sobre os atores como numa
sequência num atelier de arquitetura conferem ao filme um contraste chiaroscuro particularmente notável.
Mas o som que
acompanha esses visuais cristalinos, assim como os ritmos precisos da sua
montagem, também se mostra essencial. Uma cena, numa piscina mal iluminada, não
teria uma fração do impacto que tem não fossem os sons da criatura que emergem
das sombras irregulares nas paredes do edifício. O olhar assustado da vítima
tornado o olhar da audiência a partir de uma montagem que sugere um ponto de
vista e um ritmo completamente tenso e aterrorizado. Tudo isto foi alcançado
com um orçamento mínimo, fazendo com que muitos tentassem copiar as suas
técnicas, se bem que sem a mão precisa e magistral de Torneaur esses outros
filmes acabaram, muitas vezes, por se mostrar fracas tentativas de recapturar o
sucesso desta obra-prima do terror clássico.
Este tipo de filme
está longe de ser um exercício do virtuosismo dos seus atores, mas isso não
impede Simon de oferecer uma das melhores interpretações na filmografia da
unidade de Lewton. A atriz francesa está bem longe de qualquer suspiro de
naturalismo, parecendo sempre uma figura bastante amaneirada e artificial, mas
isso combinado com a sua aparência confere-lhe quase que a presença de uma
boneca de porcelana. Há algo de perversamente fascinante em observar a face
redonda e olhos grandes e inocentes de Simon se impregnarem de dúvidas e
nervosismos exagerados, como que se observássemos essa dita boneca implodir
sobre si mesma. Este tipo de relação milagrosa entre uma atriz de certo modo
limitada e um material e realizador exímio faz lembrar o modo como Hitchcock
usou, anos mais tarde, a figura angélica e imaculada de Tippi Hendren como meio
para explorar a psicose da protagonista de Marnie.
Cat People é uma obra essencial na história do cinema de terror.
Uma lembrança sensacional de como o génio artístico e criativo pode emergir das
mais limitadas situações. Um filme B de um estúdio de Hollywood na sua era
dourada, pode não ser um lugar lógico onde se procurar criatividade e ambições
artísticas, mas neste filme existe uma beleza assombrosa que provém tanto da
sua elegância como da sua pura eficiência. Uma maravilhosa peça de
entretenimento e um dos mais importantes filmes de terror jamais criados.
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