sábado, 29 de agosto de 2015

CAT PEOPLE (1942) de Jacques Torneaur



 Quando escrevo e publico estes meus textos, no título incluo sempre o nome do seu realizador, como que lhe atribuindo a autoria do filme. Normalmente não me questiono acerca de tal escolha, mas com este filme, quase que me sinto injusto ao apenas incluir o nome de Torneaur e não o nome de Val Lewton, o produtor do filme. Lewton, um imigrante originário do que agora é a Ucrânia, que liderou uma das unidades de produção dos estúdios RKO depois de ter abandonado uma posição como argumentista para a MGM. Na RKO, este produtor ajudou a criar uma série de filmes de terror ditos de série B. Esses seus filmes prevalecem hoje em dia, sendo por muitos considerados, incluindo por mim, como algumas das melhores obras do género.

 Em grande parte destes seus filmes de terror, Lewton oferece um filme que mais que um filme de terror parece inicialmente apresentar-se como um drama normal. Cat People, por exemplo, inicia-se num registo de um romance trágico. Vemos Irena (Simone Simon) e Oliver (Kent Smith) conhecerem-se no jardim zoológico, onde Irena visita quase obsessivamente uma pantera e a desenha. Os dois imediatamente parecem sentir uma ligação, um meet cute clássico, e rapidamente estão a tomar chá em casa de Irena, onde ela reconta uma história da sua terra natal na Sérvia. Essa lenda de satânicos que se transformam em felinos assombra o resto do filme, sendo que a possibilidade de ser uma dessas criaturas atormenta toda a existência de Irena, que, mesmo depois de se casar com Oliver, recusa-se a beijar ou ter qualquer relação íntima com o seu amado. O seu medo de que a paixão irá libertar a besta dentro de si vai criando uma espiral doentia de repressão que vai tornando cada vez mais frágil e neurótica a figura da protagonista. Com um casamento perturbado e tenso, Oliver vai-se aproximando de uma colega de trabalho, Alice (Jane Randolph), despoletando os ciúmes de Irena. Neste ambiente de dúvidas e tensão, tanto matrimonial como sexual e identitária, o terror que torna o filme célebre começa a revelar.se.

O desejo sexual, e a ação da protagonista em relação a este, tornam-se aqui a chave do seu comportamento e do conflito do filme. Muitas vezes no futuro este tipo de mecanismo narrativo e temático seria utilizado por filmes de terror, mas raramente com o mesmo tipo de delicadeza que aqui se encontra. É difícil detetar a delicadeza de que falo no diálogo, muitas vezes óbvio, mas no tratamento da sua protagonista, o filme parece encontrar empatia e uma figura aterrorizada da sua própria natureza. Os moralismos comuns, que ditam o funcionamento do cinema de terror, parecem aqui escondidos. Apesar de ser a antagonista do filme, o olhar do filme sobre a sua figura nunca é a do macabro interesse sobre um monstro, mas o de um melancólico olhar sobre uma figura trágica.

 A paranoia inflama toda a segunda metade do filme, sendo que, até ao final impingido pelo estúdio, nunca temos a certeza se estamos a observar uma manifestação do sobrenatural ou a demência psicótica de uma mulher reprimida com acesso à chave da jaula de uma pantera de jardim zoológico. O terror no filme depende, aliás, maioritariamente de uma dúvida constante e ameaçadora. As sombras que abundam no filme parecem ser manifestações visuais dessa dúvida, tornando impossível identificar a origem de sons exagerados de modo expressionista ou perceber se uma presença que persegue Alice na escuridão de uma rua urbana é Irena ou um felino monstruoso.

O facto de o filme ainda emergir como uma obra genuinamente assustadora, mesmo para uma cética audiência contemporânea, advém grandemente do trabalho de Torneaur, assim como do seu diretor de fotografia Nicholas Musuraca. As sombras que já referi são uma constante presença no filme, tornando o edifício do apartamento de Irena (um cenário reciclado de The Magnificent Ambersons) numa caverna de madeiras trabalhadas e sombras cortantes, ou uma rua noturna num pesadelo interminável. O uso de luzes extremamente intensas sobre os atores como numa sequência num atelier de arquitetura conferem ao filme um contraste chiaroscuro particularmente notável.

 Mas o som que acompanha esses visuais cristalinos, assim como os ritmos precisos da sua montagem, também se mostra essencial. Uma cena, numa piscina mal iluminada, não teria uma fração do impacto que tem não fossem os sons da criatura que emergem das sombras irregulares nas paredes do edifício. O olhar assustado da vítima tornado o olhar da audiência a partir de uma montagem que sugere um ponto de vista e um ritmo completamente tenso e aterrorizado. Tudo isto foi alcançado com um orçamento mínimo, fazendo com que muitos tentassem copiar as suas técnicas, se bem que sem a mão precisa e magistral de Torneaur esses outros filmes acabaram, muitas vezes, por se mostrar fracas tentativas de recapturar o sucesso desta obra-prima do terror clássico.

 Este tipo de filme está longe de ser um exercício do virtuosismo dos seus atores, mas isso não impede Simon de oferecer uma das melhores interpretações na filmografia da unidade de Lewton. A atriz francesa está bem longe de qualquer suspiro de naturalismo, parecendo sempre uma figura bastante amaneirada e artificial, mas isso combinado com a sua aparência confere-lhe quase que a presença de uma boneca de porcelana. Há algo de perversamente fascinante em observar a face redonda e olhos grandes e inocentes de Simon se impregnarem de dúvidas e nervosismos exagerados, como que se observássemos essa dita boneca implodir sobre si mesma. Este tipo de relação milagrosa entre uma atriz de certo modo limitada e um material e realizador exímio faz lembrar o modo como Hitchcock usou, anos mais tarde, a figura angélica e imaculada de Tippi Hendren como meio para explorar a psicose da protagonista de Marnie.

  Cat People é uma obra essencial na história do cinema de terror. Uma lembrança sensacional de como o génio artístico e criativo pode emergir das mais limitadas situações. Um filme B de um estúdio de Hollywood na sua era dourada, pode não ser um lugar lógico onde se procurar criatividade e ambições artísticas, mas neste filme existe uma beleza assombrosa que provém tanto da sua elegância como da sua pura eficiência. Uma maravilhosa peça de entretenimento e um dos mais importantes filmes de terror jamais criados.


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