Para grandes amantes de cinema internacional que acompanhem
os Óscares, não será de estranhar que todos os anos a categoria de Melhor Filme
Estrangeiro apresente uma coleção de nomeados infinitamente mais interessantes
do que aqueles outros filmes a que é atribuída uma nomeação na principal
categoria de Melhor Filme. Este ano, tenho de confessar, que nem todos os
nomeados desta categoria partilham o mesmo nível de genialidade e importância,
mas, pelo menos, oferecem algumas visões de cinema que nunca conseguiriam
entrar na categoria principal.
Parte desse reconhecimento de obras com intenções
agressivamente artísticas deve-se grandemente ao invulgar processo pelo qual
filmes são nomeados para este prémio. Depois de serem selecionados como
representantes dos seus países por diversas entidades de cada nação, os filmes
candidatos a este Óscar são prontamente reduzidos a um grupo de 9 finalistas,
sendo que existe um comité especial que tem o poder de salvar uma obra que
julguem ser de particular importância ou mérito. É desse modo que conseguimos
acabar por ter nomeados tão bizarros como Canino de Yorgos Lanthimos, por
exemplo.
Este ano, os dois filmes com abordagens cinematográficas
mais distintas e formalistas são El abrazo de la serpiente da
Colômbia e Saul fia da Hungria. Esta é a primeira vez que a Colômbia
arrecada uma nomeação, mas não é decerto a estreia da Hungria cujo último
vencedor deste Óscar, Mephisto, foi precisamente outra
obra sobre o Holocausto.
Aliás, o Holocausto é o grande tema de eleição desta
categoria, mas eu diria que poucas vezes foi nomeado um filme tão
estilisticamente violento como Saul fia. É exatamente devido a essa
sua impetuosidade formal que eu vejo a grande ameaça à sua vitória. Quando
confrontados com obras de difícil assimilação, os Óscares têm a infeliz
tendência de preferirem honrar filmes mais convencionais e muito menos
desafiadores.
Por isso, eu estou a prever uma semi surpresa esta noite,
com França a arrecadar mais um Óscar nesta categoria com Mustang, um filme de
produção francesa que é, no entanto, um filme criado por cineastas da Turquia,
com uma história turca e filmado nessa nação.
Para além desses três nomeados, temos ainda dois filmes que
receberam muito menos atenção dos media, Theeb e Krigen da Jordânia e
Dinamarca, respetivamente. Nenhum destes filmes é de particular inovação ou
desafio, mas se há quem destrone o favorito Saul fia penso que será Mustang.
No entanto, nunca se sabe e esta categoria não é particularmente oposta a
presentear cinéfilos com terríveis e inesperadas escolhas.
RANKING DOS NOMEADOS:
5. Theeb,
Jordânia
Os Óscares parecem estar presentemente obcecados com histórias
de sobrevivência em ambientes hostis, pelo que a narrativa de Theeb
deve ter sido particularmente apelativa para os votantes que aqui puderam
apreciar uma quase classicista narrativa de aventura e resiliência no meio do
magnífico e implacável deserto da Jordânia. Como isso mesmo, um filme de
aventura, esta obra resulta de modo inequivocamente eficiente, se um pouco
desastrado. As composições dos atores na paisagem, por exemplo, são muito
desinspiradas por muito que a natureza capturada pelas câmaras seja de cortar a
respiração na sua austera beleza. Também a acrescentar a esta abordagem
clássica que quase cai no banal, temos um daqueles infelizes casos em que a
utilização de não atores é mais prejudicial que benéfica, colocando no centro
do filme uma presença que nunca consegue completamente transmitir a viagem
emocional traumática sofrida pela personagem. Mesmo assim, o filme tem grandes
qualidades e consegue, ocasionalmente, sugerir alguma grandeza cinemática. Por
exemplo, uma sequência noturna em que todo o enredo sofre uma cruel e violenta
reviravolta é um inesquecível momento de musculosa bravura cinematográfica, com
as trevas de uma noite no deserto a ganharem dimensões demónicas quando o som
de atacantes invisíveis concede ao filme a atmosfera de um traumático pesadelo.
É claro que, para mim pelo menos, a grande força do filme está no seu retrato
de uma cultura e um modo de viver prestes a cair no precipício do oblívio que
viria com o período a seguir à primeira guerra mundial no Médio Oriente. Esse
aspeto de reflexão histórica é algo inesperado e imensamente mais bem conseguido
que o drama humano, que, apesar disto, tem uma potente conclusão em que esse
peso cultural de tradições e noções ancestrais de honra se mesclam com a fúria
juvenil do protagonista. O resultado final é um momento de vingança sangrenta
em que o triunfo está ausente, sendo apenas um vazio melancólico a marcar
presença e a injetar uma louvável complexidade moral a um filme que tem
tendência a recorrer a demasiadas fórmulas narrativas típicas deste tipo de
aventuras.
4. Krigen,
Dinamarca
Depois de uma infinidade de filmes de Guerra a retratar os
conflitos no Médio Oriente nas últimas décadas, é muito difícil encontrar
alguma obra que nos ofereça visões novas dessas mesmas situações, sendo que
muitas destas narrativas parecem estar presas numa constante repetição de temas
já explorados por outros. Em termos estéticos, é inegável que Krigen
é uma obra de uma banalidade quase opressiva, que não contém uma única imagem
ou mesmo qualquer tipo de escolha formal que o distingam enquanto filme da imensidão
de outras obras semelhantes no panorama do cinema contemporâneo. O que o
distingue, no entanto, é o seu argumento e o modo como este apresenta uma
estrutura agressivamente bifurcada, em que uma metade é um modesto e prosaico
filme de guerra, enquanto a outra é um drama de tribunal que coloca em questão
o que vimos anteriormente. Inteligentemente, os cineastas de Krigen
esvaziam o filme de qualquer tipo de subjetividade estilística nessa
segunda metade, apresentando o material acusatório como algo a ser ponderado
tanto pela audiência como pelos intervenientes dentro do filme. O grande passo
em falso do filme é o modo como insiste em construir um retrato familiar em
simultâneo à sua exploração ética. Noutro filme essa mesma representação de uma
família a lidar com as cicatrizes da guerra na sua unidade poderia ser bastante
fascinante, mas neste filme apenas serve para simplificar e forçar uma defesa
do protagonista. Felizmente, os atores são exímios na execução deste enredo,
criando caracterizações tão opacas como reveladoras e que, de modo geral,
conseguem contornar as maiores fragilidades e facilitismos dramáticos do texto.
Está longe de ser uma obra inovadora, mas é um filme de inegável interesse.
3. Mustang,
França
Mustang quase funciona como uma versão turca de As
Virgens Suicidas, tanto de uma perspetiva ideológica e emocional, como
de um ponto de vista estético. Tal comparação não provém de qualquer tipo de
antagonismo meu para com qualquer uma destas obras, mas sim de uma forte
apreciação pela maneira como ambos os filmes conseguem capturar de modo sublime
uma certa energia impetuosa mas frágil da juventude. É triste, mas é
imensamente raro podermos observar qualquer tipo de retrato de psicologia
adolescente feminina no atual panorama do cinema, apesar de retratos de
adolescência de uma perspetiva masculina serem uma constante. A isto
acrescenta-se o foco do filme na sexualidade dessas mesmas personagens
femininas e sua opressão devido ao sexismo enraizado na cultura turca, e
teríamos, à partida, a receita para um incontornável sucesso. Infelizmente,
esse não é bem o caso. Não se amedrontem, Mustang é um bom filme, disso não
tenho dúvidas, mas também é uma obra com grandes fragilidades. Em termos
textuais, por exemplo, o filme demonstra grandes problemas de estrutura e caracterização,
reduzindo a maior parte das irmãs no centro do seu filme a arquétipos e
vitimizações fáceis, apenas criando um complexo retrato humano na mais nova, a
clara protagonista do filme. Também em termos formais, há que apontar como o
filme é praticamente igual a uma infinidade de outros filmes que também devem o
seu estilo ao atual convencionalismo do cinema realista europeu. Quando uma história
se foca tão fortemente na quebra de convenções e procura de liberdade, é uma tragédia
que a linguagem cinematográfica não reflita esses mesmos impulsos. Com tudo
isto dito, tenho de admirar o trabalho de Deniz Gamze Ergüven que na cadeira de
realizadora demonstra grandes promessas para um futuro luminoso, com a sua
captura da intimidade das irmãs a ser de particular destaque, em cenas de lânguida
vitalidade em que corpos femininos em vestes diminutas aparecem banhadas por
luz em interiores limitados, numa magnífica expressão de pulsante humanidade
reprimida.
2. El abrazo de la serpiente, Colômbia
No tipo de cinema que normalmente é agraciado com a adoração
dos Óscares é comum manifestar-se uma crónica e triste anemia de ideias. A
simplicidade e ocasional banalidade, fáceis de digerir e que não desafiam o pensamento
da audiência são colocados num pedestal enquanto obras de mais difícil
assimilação são deixadas para trás. Devido a tudo isso, é de celebrar que um
filme tão recheado de ideias como El abrazo de la serpiente esteja
indicado ao Óscar, marcando a primeira nomeação da Colômbia nesta categoria.
Entre os variados temas e questões do filme está, por exemplo, a contaminação e
destruição das culturas amazónicas a partir da invasão europeia e sua consequente
evangelização cultural. A natureza do conhecimento humano enquanto algo
quantificável, ou não, acumulável, ou não, preservado ou esquecido. A subversão
de algumas das mais perigosas facetas das religiões nativas do Amazonas assim
como do Cristianismo. A relação precária entre civilização e mundo natural, a
relação espiritual entre um homem envelhecido e o seu passado que se vai
tornando cada vez mais inalcançável pela memória. A moralidade da exploração
dos recursos naturais em prol do benefício individual, a relação fluida entre
presente, passado futuro e tempo intangível, a metafisica presença do ambiente
selvagem e intocado por mão humana, etc. O grande milagre do filme é, há que salientar,
como consegue pegar nessa coleção de ideias e com elas criar uma obra de
assombrosa coerência e sublime impacto, onde a estruturação narrativa se divide
em duas, espiritualmente ligadas mas separadas pelo tempo. A abordagem do
realizador Ciro Guerra é a grande responsável por este sucesso, esbatendo os
limites temporais impostos pelo texto e levando o filme a momentos de quase
abstração narrativa, ao mesmo tempo criando uma visão peculiar e assombrosa do
ambiente natural filmado em glorioso preto-e-branco, e conseguindo construir um
notável retrato humano de um homem que vive com o monumental fardo e
conhecimento que é o último sobrevivente de toda uma cultura banida deste mundo
pelas colonizações europeias. A grande fragilidade do filme, cujo impacto nem é
particularmente incontornável, é o modo como em alguns dos momentos mais
estilisticamente agressivos, o filme consegue ser bastante reacionário,
relembrando muitas obras semelhantes de décadas passadas com que, infelizmente,
este filme, por muito fascinante que seja, não se pode sequer comparar.
1. Saul fia, Hungria
Quando ganhou o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro,
Lázló Nemes, o realizador de Saul fia, afirmou que nunca se devia
deixar que o Holocausto se tornasse numa abstração. Infelizmente, grande parte
do cinema internacional tem vindo a, acidentalmente, contribuir para esse mesmo
trágico fenómeno, banalizando narrativas que nunca deveriam ser banais,
tornando confortáveis e fáceis de digerir os horrores do Shoah, situando tudo
num passado distante do espetador e acabando por converter um dos maiores
crimes da história da humanidade numa comodidade comercial e artística. Muitos
já atacaram e criticaram a abordagem violentamente formalista de Nemes nesta
sua primeira longa-metragem sobre um sonderkommando numa desesperada missão por
conceder a um rapaz que diz ser seu filho um enterro judeu, acusando o autor de
tornar o filme numa experiência estética e mesmo de construir uma exploração
sensacionalista de uma tragédia humana. Eu não conseguiria discordar mais
desses mesmos críticos, sendo que, para mim, Saul fia é a perfeita
resposta às minhas pessoais mágoas e reservas em relação ao cinema sobre o
Holocausto. Nas mãos de Nemes, o Holocausto está longe de ser uma abstração,
sendo, pelo contrário, uma experiência visceral, presente, opressiva e portadora
de uma infernal intensidade que parece fugir aos limites da compreensão humana.
É certo que é impossível uma audiência se abstrair da técnica de Nemes enquanto
está a sofrer a experiência de Saul fia, mas isso nunca representou
para mim um problema, pelo contrário. Ao usar o claustrofóbico aspeto de 4:3,
uma profundidade focal minúscula, uma constante fixação em seguir o
protagonista num invariável registo de grande plano e de limitar a audiência à
perceção sensorial de Saul, o filme como que traduz em monstruosa linguagem
cinematográfica a psique do homem no seu centro, uma mente que já absorveu a
realidade constante da carnificina do Holocausto e que, no entanto, é guiada
durante quase todo o filme por uma inflexível determinação cega. Sinceramente,
para mim é difícil descrever por completo o impacto deste filme. Mais nenhuma
obra de cinema de 2015 conseguiu em mim provocar a reação que este conseguiu,
sendo que o seu som é de particular horror, como que enclausurando a audiência
na prisão tortuosa de uma constante sinfonia de sofrimento humano a
manifestar-se de todas as direções. Em resumo, aqui temos puro cinema que nunca
deveria ser ignorado. Acredito que muitos discordem com esta minha adoração,
mas penso que será difícil negar algum mérito a esta musculosa obra, por muito
que alguém se revolte contra a sua violência formal e complicada moralidade,
dois aspetos que são, sinceramente, verdadeiros triunfos que fazem de Saul
fia um dos melhores filmes sobre este tema a ser produzido desde,
sensivelmente, 1985.
PREVISÕES E DESEJOS:
Quem vai ganhar: Mustang
Quem eu quero que ganhe: Saul fia
Quem merece ganhar: Saul fia
Cinco escolhas alternativas que a Academia ignorou*:
- En duva satt på en gren och funderade på tillvaron, Suécia
- Ich she ich seh, Áustria
- Nie yin niang, Taiwan
- Que Horas Ela Volta?, Brasil
*Esta seleção pessoal tem por base a lista de elegibilidade
da Academia e não a generalidade de 2015 enquanto ano cinematográfico.
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