domingo, 28 de fevereiro de 2016

Oscars 2015/16, MELHOR FILME NUMA LÍNGUA ESTRANGEIRA



Para grandes amantes de cinema internacional que acompanhem os Óscares, não será de estranhar que todos os anos a categoria de Melhor Filme Estrangeiro apresente uma coleção de nomeados infinitamente mais interessantes do que aqueles outros filmes a que é atribuída uma nomeação na principal categoria de Melhor Filme. Este ano, tenho de confessar, que nem todos os nomeados desta categoria partilham o mesmo nível de genialidade e importância, mas, pelo menos, oferecem algumas visões de cinema que nunca conseguiriam entrar na categoria principal.

Parte desse reconhecimento de obras com intenções agressivamente artísticas deve-se grandemente ao invulgar processo pelo qual filmes são nomeados para este prémio. Depois de serem selecionados como representantes dos seus países por diversas entidades de cada nação, os filmes candidatos a este Óscar são prontamente reduzidos a um grupo de 9 finalistas, sendo que existe um comité especial que tem o poder de salvar uma obra que julguem ser de particular importância ou mérito. É desse modo que conseguimos acabar por ter nomeados tão bizarros como Canino de Yorgos Lanthimos, por exemplo.

Este ano, os dois filmes com abordagens cinematográficas mais distintas e formalistas são El abrazo de la serpiente da Colômbia e Saul fia da Hungria. Esta é a primeira vez que a Colômbia arrecada uma nomeação, mas não é decerto a estreia da Hungria cujo último vencedor deste Óscar, Mephisto, foi precisamente outra obra sobre o Holocausto.

Aliás, o Holocausto é o grande tema de eleição desta categoria, mas eu diria que poucas vezes foi nomeado um filme tão estilisticamente violento como Saul fia. É exatamente devido a essa sua impetuosidade formal que eu vejo a grande ameaça à sua vitória. Quando confrontados com obras de difícil assimilação, os Óscares têm a infeliz tendência de preferirem honrar filmes mais convencionais e muito menos desafiadores.

Por isso, eu estou a prever uma semi surpresa esta noite, com França a arrecadar mais um Óscar nesta categoria com Mustang, um filme de produção francesa que é, no entanto, um filme criado por cineastas da Turquia, com uma história turca e filmado nessa nação.

Para além desses três nomeados, temos ainda dois filmes que receberam muito menos atenção dos media, Theeb e Krigen da Jordânia e Dinamarca, respetivamente. Nenhum destes filmes é de particular inovação ou desafio, mas se há quem destrone o favorito Saul fia penso que será Mustang. No entanto, nunca se sabe e esta categoria não é particularmente oposta a presentear cinéfilos com terríveis e inesperadas escolhas.




RANKING DOS NOMEADOS:


5. Theeb, Jordânia


Os Óscares parecem estar presentemente obcecados com histórias de sobrevivência em ambientes hostis, pelo que a narrativa de Theeb deve ter sido particularmente apelativa para os votantes que aqui puderam apreciar uma quase classicista narrativa de aventura e resiliência no meio do magnífico e implacável deserto da Jordânia. Como isso mesmo, um filme de aventura, esta obra resulta de modo inequivocamente eficiente, se um pouco desastrado. As composições dos atores na paisagem, por exemplo, são muito desinspiradas por muito que a natureza capturada pelas câmaras seja de cortar a respiração na sua austera beleza. Também a acrescentar a esta abordagem clássica que quase cai no banal, temos um daqueles infelizes casos em que a utilização de não atores é mais prejudicial que benéfica, colocando no centro do filme uma presença que nunca consegue completamente transmitir a viagem emocional traumática sofrida pela personagem. Mesmo assim, o filme tem grandes qualidades e consegue, ocasionalmente, sugerir alguma grandeza cinemática. Por exemplo, uma sequência noturna em que todo o enredo sofre uma cruel e violenta reviravolta é um inesquecível momento de musculosa bravura cinematográfica, com as trevas de uma noite no deserto a ganharem dimensões demónicas quando o som de atacantes invisíveis concede ao filme a atmosfera de um traumático pesadelo. É claro que, para mim pelo menos, a grande força do filme está no seu retrato de uma cultura e um modo de viver prestes a cair no precipício do oblívio que viria com o período a seguir à primeira guerra mundial no Médio Oriente. Esse aspeto de reflexão histórica é algo inesperado e imensamente mais bem conseguido que o drama humano, que, apesar disto, tem uma potente conclusão em que esse peso cultural de tradições e noções ancestrais de honra se mesclam com a fúria juvenil do protagonista. O resultado final é um momento de vingança sangrenta em que o triunfo está ausente, sendo apenas um vazio melancólico a marcar presença e a injetar uma louvável complexidade moral a um filme que tem tendência a recorrer a demasiadas fórmulas narrativas típicas deste tipo de aventuras.




4. Krigen, Dinamarca


Depois de uma infinidade de filmes de Guerra a retratar os conflitos no Médio Oriente nas últimas décadas, é muito difícil encontrar alguma obra que nos ofereça visões novas dessas mesmas situações, sendo que muitas destas narrativas parecem estar presas numa constante repetição de temas já explorados por outros. Em termos estéticos, é inegável que Krigen é uma obra de uma banalidade quase opressiva, que não contém uma única imagem ou mesmo qualquer tipo de escolha formal que o distingam enquanto filme da imensidão de outras obras semelhantes no panorama do cinema contemporâneo. O que o distingue, no entanto, é o seu argumento e o modo como este apresenta uma estrutura agressivamente bifurcada, em que uma metade é um modesto e prosaico filme de guerra, enquanto a outra é um drama de tribunal que coloca em questão o que vimos anteriormente. Inteligentemente, os cineastas de Krigen esvaziam o filme de qualquer tipo de subjetividade estilística nessa segunda metade, apresentando o material acusatório como algo a ser ponderado tanto pela audiência como pelos intervenientes dentro do filme. O grande passo em falso do filme é o modo como insiste em construir um retrato familiar em simultâneo à sua exploração ética. Noutro filme essa mesma representação de uma família a lidar com as cicatrizes da guerra na sua unidade poderia ser bastante fascinante, mas neste filme apenas serve para simplificar e forçar uma defesa do protagonista. Felizmente, os atores são exímios na execução deste enredo, criando caracterizações tão opacas como reveladoras e que, de modo geral, conseguem contornar as maiores fragilidades e facilitismos dramáticos do texto. Está longe de ser uma obra inovadora, mas é um filme de inegável interesse.




3. Mustang, França


Mustang quase funciona como uma versão turca de As Virgens Suicidas, tanto de uma perspetiva ideológica e emocional, como de um ponto de vista estético. Tal comparação não provém de qualquer tipo de antagonismo meu para com qualquer uma destas obras, mas sim de uma forte apreciação pela maneira como ambos os filmes conseguem capturar de modo sublime uma certa energia impetuosa mas frágil da juventude. É triste, mas é imensamente raro podermos observar qualquer tipo de retrato de psicologia adolescente feminina no atual panorama do cinema, apesar de retratos de adolescência de uma perspetiva masculina serem uma constante. A isto acrescenta-se o foco do filme na sexualidade dessas mesmas personagens femininas e sua opressão devido ao sexismo enraizado na cultura turca, e teríamos, à partida, a receita para um incontornável sucesso. Infelizmente, esse não é bem o caso. Não se amedrontem, Mustang é um bom filme, disso não tenho dúvidas, mas também é uma obra com grandes fragilidades. Em termos textuais, por exemplo, o filme demonstra grandes problemas de estrutura e caracterização, reduzindo a maior parte das irmãs no centro do seu filme a arquétipos e vitimizações fáceis, apenas criando um complexo retrato humano na mais nova, a clara protagonista do filme. Também em termos formais, há que apontar como o filme é praticamente igual a uma infinidade de outros filmes que também devem o seu estilo ao atual convencionalismo do cinema realista europeu. Quando uma história se foca tão fortemente na quebra de convenções e procura de liberdade, é uma tragédia que a linguagem cinematográfica não reflita esses mesmos impulsos. Com tudo isto dito, tenho de admirar o trabalho de Deniz Gamze Ergüven que na cadeira de realizadora demonstra grandes promessas para um futuro luminoso, com a sua captura da intimidade das irmãs a ser de particular destaque, em cenas de lânguida vitalidade em que corpos femininos em vestes diminutas aparecem banhadas por luz em interiores limitados, numa magnífica expressão de pulsante humanidade reprimida.






No tipo de cinema que normalmente é agraciado com a adoração dos Óscares é comum manifestar-se uma crónica e triste anemia de ideias. A simplicidade e ocasional banalidade, fáceis de digerir e que não desafiam o pensamento da audiência são colocados num pedestal enquanto obras de mais difícil assimilação são deixadas para trás. Devido a tudo isso, é de celebrar que um filme tão recheado de ideias como El abrazo de la serpiente esteja indicado ao Óscar, marcando a primeira nomeação da Colômbia nesta categoria. Entre os variados temas e questões do filme está, por exemplo, a contaminação e destruição das culturas amazónicas a partir da invasão europeia e sua consequente evangelização cultural. A natureza do conhecimento humano enquanto algo quantificável, ou não, acumulável, ou não, preservado ou esquecido. A subversão de algumas das mais perigosas facetas das religiões nativas do Amazonas assim como do Cristianismo. A relação precária entre civilização e mundo natural, a relação espiritual entre um homem envelhecido e o seu passado que se vai tornando cada vez mais inalcançável pela memória. A moralidade da exploração dos recursos naturais em prol do benefício individual, a relação fluida entre presente, passado futuro e tempo intangível, a metafisica presença do ambiente selvagem e intocado por mão humana, etc. O grande milagre do filme é, há que salientar, como consegue pegar nessa coleção de ideias e com elas criar uma obra de assombrosa coerência e sublime impacto, onde a estruturação narrativa se divide em duas, espiritualmente ligadas mas separadas pelo tempo. A abordagem do realizador Ciro Guerra é a grande responsável por este sucesso, esbatendo os limites temporais impostos pelo texto e levando o filme a momentos de quase abstração narrativa, ao mesmo tempo criando uma visão peculiar e assombrosa do ambiente natural filmado em glorioso preto-e-branco, e conseguindo construir um notável retrato humano de um homem que vive com o monumental fardo e conhecimento que é o último sobrevivente de toda uma cultura banida deste mundo pelas colonizações europeias. A grande fragilidade do filme, cujo impacto nem é particularmente incontornável, é o modo como em alguns dos momentos mais estilisticamente agressivos, o filme consegue ser bastante reacionário, relembrando muitas obras semelhantes de décadas passadas com que, infelizmente, este filme, por muito fascinante que seja, não se pode sequer comparar.




1. Saul fia, Hungria


Quando ganhou o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro, Lázló Nemes, o realizador de Saul fia, afirmou que nunca se devia deixar que o Holocausto se tornasse numa abstração. Infelizmente, grande parte do cinema internacional tem vindo a, acidentalmente, contribuir para esse mesmo trágico fenómeno, banalizando narrativas que nunca deveriam ser banais, tornando confortáveis e fáceis de digerir os horrores do Shoah, situando tudo num passado distante do espetador e acabando por converter um dos maiores crimes da história da humanidade numa comodidade comercial e artística. Muitos já atacaram e criticaram a abordagem violentamente formalista de Nemes nesta sua primeira longa-metragem sobre um sonderkommando numa desesperada missão por conceder a um rapaz que diz ser seu filho um enterro judeu, acusando o autor de tornar o filme numa experiência estética e mesmo de construir uma exploração sensacionalista de uma tragédia humana. Eu não conseguiria discordar mais desses mesmos críticos, sendo que, para mim, Saul fia é a perfeita resposta às minhas pessoais mágoas e reservas em relação ao cinema sobre o Holocausto. Nas mãos de Nemes, o Holocausto está longe de ser uma abstração, sendo, pelo contrário, uma experiência visceral, presente, opressiva e portadora de uma infernal intensidade que parece fugir aos limites da compreensão humana. É certo que é impossível uma audiência se abstrair da técnica de Nemes enquanto está a sofrer a experiência de Saul fia, mas isso nunca representou para mim um problema, pelo contrário. Ao usar o claustrofóbico aspeto de 4:3, uma profundidade focal minúscula, uma constante fixação em seguir o protagonista num invariável registo de grande plano e de limitar a audiência à perceção sensorial de Saul, o filme como que traduz em monstruosa linguagem cinematográfica a psique do homem no seu centro, uma mente que já absorveu a realidade constante da carnificina do Holocausto e que, no entanto, é guiada durante quase todo o filme por uma inflexível determinação cega. Sinceramente, para mim é difícil descrever por completo o impacto deste filme. Mais nenhuma obra de cinema de 2015 conseguiu em mim provocar a reação que este conseguiu, sendo que o seu som é de particular horror, como que enclausurando a audiência na prisão tortuosa de uma constante sinfonia de sofrimento humano a manifestar-se de todas as direções. Em resumo, aqui temos puro cinema que nunca deveria ser ignorado. Acredito que muitos discordem com esta minha adoração, mas penso que será difícil negar algum mérito a esta musculosa obra, por muito que alguém se revolte contra a sua violência formal e complicada moralidade, dois aspetos que são, sinceramente, verdadeiros triunfos que fazem de Saul fia um dos melhores filmes sobre este tema a ser produzido desde, sensivelmente, 1985.



PREVISÕES E DESEJOS:

Quem vai ganhar: Mustang

Quem eu quero que ganhe: Saul fia

Quem merece ganhar: Saul fia



Cinco escolhas alternativas que a Academia ignorou*:

  • En duva satt på en gren och funderade på tillvaron, Suécia
  • Ich she ich seh, Áustria
  • Que Horas Ela Volta?, Brasil



*Esta seleção pessoal tem por base a lista de elegibilidade da Academia e não a generalidade de 2015 enquanto ano cinematográfico.


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