Eu adoro documentários. Para mim, este é um tipo de cinema,
em que, mais do que em qualquer outro género, existe uma possibilidade imensa
de experimentação e criação de novas ideias e visões do que é a linguagem cinematográfica.
Mais do que outros filmes, os documentários, ao exporem informação e terem uma
certa noção de realidade às suas apresentações, criam um diálogo intelectual
com as suas audiências que filmes narrativos não têm hipótese de emular ou
equiparar.
Infelizmente, apesar deste meu amor e da crescente
relevância do cinema documental nos mercados cinematográficos contemporâneos,
as seleções dos Óscares nem sempre são grande mostra dessa mesma genialidade
contida neste cinema. Um dos mais irritantes tipos de documentário que
contaminam de modo sistémico todos os grupos de nomeados nesta categoria, é o”
talking head documentary”, basicamente uma direta exposição de informação a
partir de entrevistas filmadas.
Este tipo de abordagem nem sempre tem de ser um sinal de má
qualidade ou desinspirada mediocridade, basta observar filmes como The Unknown Known que torna uma comprida entrevista a Donald Rumsfeld numa
exímia dissecação da sua retórica e personalidade enquanto força política, ou Shoah,
possivelmente o melhor documentário de sempre que consiste essencialmente em nove
horas e meia de entrevistas a vários intervenientes do holocausto e estudiosos,
sem qualquer pirotecnia formal a temperar o poder do testemunho direto. No
entanto, algo muito importante separa estes filmes da maior parte dos favoritos
dos óscares. Ao invés de simplesmente apresentarem a informação de modo
prosaico e se recusarem a desafiar e dialogar com as suas audiências, estes
filmes apresentam teses de pensamento, criam discursos sobre o que estão a
observar e examinar, para além de conceberem uma magistral ligação para com as
suas audiências forçando-as a pensar e avaliar, questionar e reconfigurar o seu
pensamento sobre estes temas.
Um dos mais comuns tipos de “talking head documentaries” é
aquele género de filme que se propõe a explorar uma personalidade famosa,
muitas vezes depois da sua morte. Este ano temos Amy e What Happened, Miss Simone? a ocuparem este nicho da categoria de Melhor
Documentário, sendo que, tanto pela sua popularidade e sucesso comercial como
pela sua convencionalidade ideológica, o documentário sobre Amy Winehouse é o
claro favorito para arrecadar este prémio.
Filmes como essas explorações de personalidades do passado
raramente se debatem com temáticas minimamente controversas ou desafiadoras,
encontrando-se na segurança pacífica da especificidade individual do seu
retrato. Obras com intenções claramente políticas são bastante mais raras nesta
categoria, mas este ano os nomeados são dominados por questões de caráter político.
Cartel Land debruça-se sobre as lutas contra os cartéis de droga no México e
nos EUA, enquanto Winter on Fire propõe-se a retratar a crise ucraniana,
nomeadamente a revolução que teve início no final de 2013.
O Olhar do Silêncio também é um filme de cariz violentamente político
e quase ativista, mas a sua exploração da Indonésia atual e das cicatrizes
putrefactas que o genocídio de comunistas tem nesta nação é de uma sofisticação
e impetuosidade cinematográfica que completamente ofusca os outros nomeados.
Este filme é uma espécie de sequela de O Ato de Matar, outro documentário
de Joshua Oppenheimer sobre este mesmo genocídio, mas ao invés de se focar na
horrenda perspetiva dos assassinos, este filme cimenta a sua observação no
olhar das vítimas. Com esta abordagem muito menos desconcertante, eu ainda
tinha esperanças que este filme conseguisse alcançar o galardão que o seu
antecessor não conseguiu arrecadar, mas com a monumental popularidade de Amy
tal parece ser apenas um sonho de impossível concretização.
RANKING DOS NOMEADOS:
5. Cartel
Land, Matthew Heineman e Tom Yellin
Na sua abordagem do tema da guerra aos cartéis de droga que
assombram o México contemporâneo num opressivo pesadelo de bárbara violência e
selvática criminalidade, Heineman decidiu focar-se em dois grupos de vigilantes
armados que enfrentam esta ameaça criminosa dos dois lados da fronteira. Em Cartel
Land, podemos observar de uma estonteante proximidade as lutas destas
milícias armadas, uma mexicana e outra americana, sendo que o filme se foca
principalmente nos seus líderes, o Dr. José Meireles e Tim Foley. É de perceber
o fascínio que o realizador tem com as imagens que conseguiu acumular, assim
como com a dramática violência que caracteriza toda esta realidade, mas também é
fácil de perceber como, devido a essa fenomenal proximidade, Heineman parece
ter-se perdido na celebração destes dois grupos de resistência civil. Nunca o
realizador se afasta dos seus sujeitos para questionar as suas ações e seus
princípios, nunca explorando o fanatismo que caracteriza os esforços destas
duas organizações, ou o claro racismo e xenofobia que infecta o pensamento dos
americanos envolvidos nesta luta. Ao invés de tentar explorar este mundo,
Heineman apresenta-o como um filme de ação cheio de sanguinária violência
humana, sem se preocupar ora em criar uma tese, ora em examinar os seus
sujeitos ou mesmo em construir algum tipo de discurso cinematográfico a partir
de estrutura e imagem. É verdade, que Cartel Land consegue ser uma obra de grande
intensidade e que contém em si magníficas visões do deserto mexicano e
americano, maravilhosamente fotografado pelos dois diretores de fotografia do
filme, mas como cinema, mesmo cinema jornalístico, este filme deixa imenso a
desejar e acaba por cair nos simplismos ideológicos que, do meu ponto de vista,
deveria a todo o custo tentar evitar.
4. Amy,
Asif Kapadia e James Gay-Rees
Quando se fala dos documentários de Asif Kapadia, muito se
celebra o modo como este realizador constrói retratos de personalidades famosas
a partir de um exclusivo uso de filmagens de arquivo, recusando-se a incluir
entrevistas filmadas ou imagens encenadas. Para dizer a verdade, essa é a única
escolha interessante que este autor faz em Amy, e certamente se poderá afirmar
que a única razão pela qual este filme teve tanto sucesso foi exatamente pela
riqueza de algumas das filmagens que ele consegue aqui reunir, sendo de
particular interesse as imagens da vida privada de Amy Winehiuse antes de ela
se tornar a decadente estrela que todos conhecemos. Mas isto também é
imensamente problemático, pois é impossível separar qualquer mérito que o filme
possa ter do modo como Kapadia ativamente procura despertar na sua audiência um
certo prazer de voyeur ao expor esta coletânea de momentos na vida desta
cantora. O filme é ostentosamente uma homenagem a Winehouse, mas é ao mesmo
tempo uma repugnante exploração da mesma, tornando alguns momentos imensamente
privados e desconfortáveis em algo de entretenimento, construindo uma obra que,
sinceramente, me parece mais um insulto que uma celebração. Isto é exacerbado
pela completa superficialidade na abordagem de Kapadia que se recusa a explorar
a personagem que foi Amy Winehouse, reduzindo-a a um simples arquétipo de uma
artista trágica e incompreendida. Eu ainda desculparia os aspetos mais voyeur
do filme se ainda houvesse alguma fascinante examinação da figura de Winehouse,
mas tal não ocorre, reduzindo este filme a uma infeliz e banal mediocridade.
Enfim, muitas vezes é precisamente este tipo de cinema populista e prosaico que
ganha Óscares.
3. Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom,
Evgeny Afineevsky e Den Tolmor
Primeiro vejamos os aspetos positivos. Na sua louvável
acumulação de entrevistas, os cineastas de Winter on Fire conseguem criar uma
interessante, se limitada, tapeçaria de uma infinidade de histórias humanas por
entre os vários cidadãos envolvidos nesta revolução ucraniana. Para além disso
há que admirar um filme que retrata um evento político atual cuja perfeita resolução
está longe de estar alcançada, e cuja complexidade em termos geopolíticos é de
uma densidade poucas vezes vislumbradas em documentários nomeados a este
particular prémio. É claro que temos de admitir que, apesar das suas intenções
e primor na sua elegia a uma corajosa população em justificada fúria, Winter
on Fire é um perfeito desastre como cinema politico, simplificando tudo
com uma impetuosa despreocupação por qualquer réstia de integridade
jornalística. O filme consegue ter o mesmo tipo de examinação que poderíamos
obter de um parágrafo na barra lateral de uma das publicações populares que,
durante esta crise, tanto pareceram querer ignorar a complicada revolução a despoletar
na nossa Europa de hoje em dia. A acrescentar-se a isto está uma desajeitada
concretização formal que investe demasiado poder numa distrativa banda-sonora e
numa coleção de gráficos obsessivamente ilustrativos e dramáticos. Mesmo assim,
os aspetos positivos do filme são de grande valor, e no final, ao cortar a
triunfante se efémera vitória do povo ucraniano com informações textuais que
expõe a contínua instabilidade na Ucrânia, o realizador consegue criar um
momento de louvável humanismo assim como de ácida reflexão sobre a situação
político-social presente.
2. What Happened, Miss Simone?, Liz
Garbus, Amy Hobby e Justin Wilkes
Tal como Amy, What Happened, Miss Simone?
é um filme que segue uma fórmula bastante cansada e convencional do cinema
documentário. A obra consiste num retrato de uma celebridade passada, Nina
Simone, homenageando o seu génio e tentando conceber um retrato da sua
personalidade através de entrevistas com pessoas que a conheceram e filmagens
de arquivo. A diferença entre os dois filmes está, não na sua comum falta de
qualquer inovação ou ousadia formal, mas no modo como os dois filmes abordam os
seus sujeitos Enquanto Amy é um filme que reduz a
personalidade de Amy Winehouse a um arquétipo fácil de digerir por uma
audiência em busca de simplicidade dramática, What Happened, Miss Simone? recusa-se
por completo a reduzir Nina Simone a qualquer tipo de unidimensionalidade
desumana. Eu diria mesmo que o génio deste modesto filme está precisamente na
quase caótica acumulação de informações sobre esta cantora, artista e ativista
política, cuja vida é aqui exposta como uma confusa e multifacetada existência,
cheia de contradições, rasgos de génio, fúria, crueldade e apaixonante
dedicação à sua arte. Para além da sua rígida dependência de convenções
classicistas, o filme padece ainda de um estranho desinteresse nos anos tardios
de Simone, assim como um uso de momentos musicais que por vezes parece mais uma
coletânea de best hits do que uma
seleção construída com o propósito de avançar o retrato do filme. No entanto,
tendo tudo isto em consideração, é difícil esquecer este filme e a sua
reticência paradoxal em relação ao seu sujeito, que é tão magistralmente
conseguida que força a sua audiência a formular os seus próprios discursos
interiores sobre quem foi esta mulher, qual foi o seu legado e quão majestosa
foi a sua genialidade musical.
1. The Look of Silence, Joshua
Oppenheimer e Signe Byrge Sørensen
Da minha crítica de O Olhar do Silêncio:
“Há uma simplicidade formal na abordagem de Oppenheimer que
surpreende depois dos floreados exuberantes de The Act of Killing,
assemelhando-se The Look of Silence mais a um documentário afetado pelo legado
de Ingmar Bergman, do que ao noir
delirantemente absurdo em que o documentário anterior perversamente se ia
transformando. O filme é menos ambicioso e impressionante nesses aspetos, mas
em termos de impacto, é tão monumental como o outro filme. Os dois compõem uma
das mais importantes obras documentais na história do cinema contemporâneo, e
talvez na história do meio desde a sua génese. Como uma documentação de
testemunha política, se quisermos ignorar tudo o resto na obra, o filme
continua a ser imprescindível e essencial, nem que seja pela sua abjeta coragem
e humanidade latente.
Não sei se consigo expressar por palavras a importância e o
génio deste filme, mas apelo qualquer pessoa a ver esta obra-prima, com a
consciência que estão prestes a vislumbrar um dos mais horrendos documentos sobre
o horror e fealdade do ser humano. Angustiante e aterradora na mesma medida que
é uma inegável magistral joia cinematográfica.”
Não tenho mais a acrescentar. Este é, inequivocamente, o melhor destes cinco
filmes, sendo que, para mim, merece arrecadar o Óscar que, infelizmente, parece
destinado a Amy. Fico, no entanto, satisfeito com a segurança de que esse
filme de Asif Kapadia acabará, com o passar das décadas, por cair no
esquecimento que engoliu tantas outras obras semelhantemente prosaicas,
enquanto esta obra-prima de Joshua Oppenheimer irá perdurar como um dos mais importantes
feitos do cinema documentário desta década, e talvez deste século.
PREVISÕES E DESEJOS:
Quem vai ganhar: Amy
Quem eu quero que ganhe: The Look of Silence
Quem merece
ganhar: The Look of Silence
Cinco escolhas alternativas que a Academia ignorou*:
- 3 1/2 Minutes, Ten Bullets, Marc Silver, Carolyn Hepburn e Minette Nelson
- El bóton de nácar, Patricio Guzmán e Renate Sachse
- Heart of a Dog, Laurie Anderson e Dan Janvey
- In Jackson Heights, Frederick Wiseman
- Listen to Me Marlon, Steven Riley, John Battsek, George Chignell e R.J. Cutler
*Esta seleção pessoal tem por base a lista de elegibilidade
da Academia e não a generalidade de 2015 enquanto ano cinematográfico.
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