Parabéns Academia! Esta é uma gloriosa seleção de nomeados e
uma rara mostra de independência face às pressões do mercado cinematográfico
americano e à horrenda presunção que o cinema de animação é algo exclusivamente
concebido para audiências infantis.
Apenas dois dos nomeados são americanos, Inside
Out e Anomalisa, sendo que o filme de Charlie Kaufman é um raro
exemplo de cinema de animação norte-americano criado propositadamente para
audiências dos circuitos art house,
exclusivamente adultos.
Entre os restantes nomeados temos dois filmes praticamente
mudos. Um deles é Shaun the Sheep Movie, uma adorável sobremesa cinematográfica
britânica, e O Menino e o Mundo, uma sofisticada narrativa brasileira sobre
o implacável avançar do desenvolvimento industria que vai destruindo o mundo
natural e as culturas ancestrais de uma nação em crise.
Finalmente, temos Omoide no Mânî, o filme que será a
ultima longa-metragem produzida pelos Estúdios Ghibli. Para qualquer amante de
animação, a notícia do encerramento do mais importante estúdio de cinema de
animação japonês terá, certamente sido uma cataclísmica tragédia, e parece que
a Academia decidiu honrar o legado do estúdio. Há ainda que apontar que este filme
e Inside
Out são focados na psique e no custoso crescimento emocional de duas
jovens raparigas, ambas prestes a entrar na sua adolescência, algo que é raro
no cinema de modo geral, e ainda mais em filmes tão comerciais como usualmente
o cinema de animação acaba por ser. Num panorama cinematográfico em que
perspetivas femininas são menosprezadas e onde complexidades emocionais são
tidas como algo de menor importância, este apoio da Academia de Hollywood a
filmes assim é de uma importância formidável.
Com estes cinco nomeados, a Academia, ou pelo menos os
votantes das categorias de animação, demonstra mais uma vez como não estão
completamente cegos ao cinema de outras nacionalidades que não americanas e que
nem sempre preferem a banalidade ao virtuosismo artístico. Para além do mais,
com esta coleção de filmes, a Academia acaba por honrar a Pixar, a Aardman
Animations e o Estúdio Ghibli, três dos mais importantes estúdios na história
do cinema de animação, para além de que, indiretamente, acabam também por honrar
a Disney e a GKids como distribuidoras norte-americanas de alguns dos mais
importantes filmes de animação de sempre.
Eu adoro cinema de animação com uma força que não diminui
desde os anos da minha infância em que tais filmes eram fontes inesgotáveis de
alegria, prazer, e uma imaginação sem igual. Como tal, é um sonho observar esta
formidável seleção em que, mesmo que eu não concorde com todos os nomeados, em
geral a categoria é indiscutivelmente gloriosa.
RANKING DOS NOMEADOS:
5. Anomalisa,
Charlie Kaufman, Duke Johnson e Rosa Tran
Eu sou um grande fã do trabalho
passado de Charlie Kaufman, sendo que, face à inicial premissa de Anomalisa,
o seu primeiro filme de animação, eu estava perfeitamente pronto para voltar a
ser deslumbrado por este entusiasta do pós-modernismo cinematográfico. No
entanto, o filme foi, para mim, um imenso desapontamento, demonstrando como,
possivelmente, a criatividade de Kaufman se começa a esgotar e como os mais
perniciosos aspetos da sua visão do mundo apenas se estão a tornar mais
evidentes e difíceis de ignorar. Kaufman foca-se, em Anomalisa, em mais um
homem desiludido e entediado com o mundo que o rodeia, vivendo uma existência
cronicamente isolada e apática. Tomando a ideia de uma verdadeira doença
mental, Kaufman concebeu uma visão subjetiva em que o mundo do seu protagonista
é povoado por pessoas que partilham exatamente a mesma voz e feições, sendo que
apenas uma mulher que ele conhece numa vulgar e triste noite num hotel,
consegue emergir como outro ser humano fora desse absoluto anonimato.
Eu percebo as intenções de Kaufman,
mas não as consigo celebrar. Este ano está recheado de filmes em que homens de sucesso
e privilegiados são retratados como criaturas isoladas e incompreendidas,
vítimas da sua própria arrogância, e, pessoalmente, já estou um pouco cansado
desta irritante fórmula. Os defensores deste tipo de filme afirmam que o filme
se apercebe dos problemas dos seus protagonistas, mas custa-me ver em Anomalisa,
algo mais que uma montra da autopiedade de Kaufman e sua hubris
cinematográfica. Eu consigo apreciar o filme de um ponto de vista puramente
técnico e até aprecio o trabalho vocal dos atores, mas a obra perde qualquer
integridade na sua construção misógina da figura titular, Lisa.
A mulher que concentra em si a
peculiar e individualista banalidade da vida humana é pouco mais que um
mecanismo narrativo para o arco da personagem masculina principal, e mesmo a
sua personalidade parece existir apenas em função dos problemas dele, sendo que
os diálogos entre os dois, por muito bem representados que sejam, são um
perfeito exemplo de como subtilmente um texto consegue relegar uma das suas
figuras a um objeto. O problema encontra-se no modo como Lisa deveria ser
diferente, deveria ser palpavelmente humana, mesmo que por instantes, mas
Kaufman cai nos erros que pensa estar superiormente a pintar na sua personagem
principal, mostrando uma imaturidade incomum no seu trabalho e uma desumanidade
assustadora. Muitos adoram este filme, mas não consigo fazer. Reconheço o seu
valor enquanto criação ambiciosa e impetuosa de animação para adultos, mas o
resultado final sofre de uma fétida podridão ideológica que, infelizmente,
afundam todo o edifício do filme.
4. Shaun the Sheep Movie, Mark Burton e
Richard Starzak
Da minha crítica de A Ovelha Choné – O Filme:
“Shaun the Sheep Movie é um ótimo filme de animação familiar
longe das complexidades emocionais de outras obras de animação deste ano mas
não por isso menos charmoso ou encantador. Há algo de reconfortante na
simplicidade e relativa falta de ambição do projeto. Uma delícia ligeira
confecionada com um virtuosismo magistral numa técnica, cuja visibilidade tem
vindo a desaparecer com o apogeu da animação digital. E talvez principalmente
por esta última razão, eu não consiga de modo algum resistir aos encantos do
filme e adorá-lo apesar de alguns problemas cruciais que anteriormente referi.”
Tenho pouco a acrescentar a estas palavras. Esta é uma obra
adorável e imensamente charmosa, sendo que é difícil resistir aos seus
encantos. É cinema essencial? Talvez não, mas para um amante de animação,
qualquer produção dos estúdios Aardman é uma joia cinematográfica.
3. Omoide
no Mânî, Hiromasa Yonebayashi e Yoshiaki Nishimura
Como o derradeiro filme de um dos mais importantes estúdios
de animação na história do cinema, Memórias de Marnie impõe um certo
respeito e admiração. Felizmente, o filme não se reduz a ser um simples marco
histórico, e é, na verdade, uma tocante visão de uma rapariga em doloroso
processo de crescimento, estando carregado de uma melancolia e intensidade
emocional assombrosas. No seu retrato do florescer de uma amizade entre uma rapariga
solitária e o que parece ser uma visão de uma rapariga do passado, o filme
concebe um dos mais complexos dramas psicológicos que se viu este ano no cinema
de animação, e, para além de tudo o mais, essa mesma narrativa desenrola-se com
a extraordinária beleza e delicadeza visual que viemos a associar com este
estúdio, não possuindo, no entanto, a vistosa experimentação que marcaram
algumas das suas mais memoráveis obras passadas. Aceito que, por vezes, os
aspetos mais metafísicos do enredo tenham tendência a se tornarem um pouco
distrativos no seu declarativo simbolismo e confusa apresentação, mas quando o
resultado dessa mesma narrativa metafísica possui a surpreendente maturidade
emocional de Memórias de Marnie e nos oferece uma visão tão peculiar de uma
amizade entre duas jovens em crescimento, há que ignorar algumas das
fragilidades da obra e simplesmente nos deixar apaixonar pela qualidade geral
do filme. Para um último adeus dos Estúdios Ghibli, esta obra é curiosamente
pequena e delicada, mas talvez por isso tenha ainda mais valor.
2. Inside
Out, Pete Docter e Jonas Rivera
Da minha crítica de Divertida-mente:
“No final Inside Out é uma preciosa raridade
no panorama contemporâneo do cinema supostamente feito para audiências juvenis,
sendo uma gloriosa celebração da empatia humana e uma ode à complexidade
emocional que parece amedrontar mesmo os mais adultos filmes a serem produzidos
pela Hollywood atual. O filme torna dores de crescimento numa das mais
espetaculares viagens emocionais do ano, revelando-se como uma obra essencial
para qualquer cinéfilo, rica em inteligente complexidade mas completamente
acessível assim como uma peça de maravilhoso entretenimento.”
Para além de toda esta maravilhosa qualidade conceptual e
emotiva, tenho de salientar que este filme consegue ainda ser uma das mais
hilariantes comédias do ano, assim como apresenta um dos mais formidáveis
elencos de 2015, ainda que os seus atores apenas se manifestem em forma de
sublimes prestações vocais. Como uma obra mainstream
de um dos mais poderosos estúdios do mundo, este filme é quase perfeito, sendo
que apenas poderia nele criticar algumas dúbias escolhas estruturais na
edificação mental que caracteriza o mundo do filme. Mesmo assim, há que
celebrar esta criação. A Pixar finalmente parece ter regressado em grande!
1. O
Menino e o Mundo, Alê Abreu
Em termos puramente formais, a sua estética é quase
primitiva quando colocada em abismal contraste com os outros nomeados desta
categoria, mas O Menino e o Mundo encontra nessa mesma simplicidade e
grosseira, se genial, concretização um dos seus maiores alicerces ideológicos.
Seguindo o mesmo tipo de abordagem dos visuais, a narrativa deste filme
brasileiro desenvolve-se de um modo ativamente simplista e, por vezes,
indisciplinadamente caótico, oferecendo uma declarativa visão de uma nação à
beira de um apocalipse cultural em que o modernismo contemporâneo ameaça a
completa destruição de um mundo mais antigo, em harmonia com os ambientes
naturais e com as heranças mais ancestrais da sociedade do Brasil. Tudo isto
pode indicar uma obra cronicamente juvenil e ingenuamente focada numa efémera
luta contra a implacável evolução de um mundo em desenvolvimento, mas há em O
Menino e o Mundo um nível de sofisticação cinematográfica incomparável
a qualquer outra obra de animação a estrear em 2015 nas salas norte-americanas.
Este é um filme de animação para adultos, cuja maturidade vai muito mais além
que os pretensiosismos de Anomalisa, concebendo uma tapeçaria
de imagens inesquecíveis e ensandecidas na sua criatividade, rugindo com uma
fúria política imensamente incomum na produção do cinema de animação atual e
demonstrando uma magistral construção de uma história, altamente alegórica, em
que a inocência de um menino se torna numa melancólica canção fúnebre para um
Brasil do passado e em que o próprio tempo parece fluir com a maleabilidade
inefável que caracteriza a memória humana. O Menino e o Mundo é um sonho
cinematográfico e um dos mais essenciais filmes de animação da última década,
de tal modo que a sua existência é uma luminosa justificação para a importância
de todo este muito menosprezado tipo de cinema.
PREVISÕES E DESEJOS:
Quem vai ganhar: Inside Out
Quem eu quero que ganhe: Omoide no Mânî
Quem merece ganhar: O Menino e o Mundo
Três* escolhas alternativas que a Academia ignorou**:
- The Good Dinosaur, Peter Sohn e Denise Ream
- The Peanuts Movie, Steve Martino, Paul Feig, Bryan Schulz, Craig Schulz, Michael J. Travers e Cornelius Uliano
- The SpongeBob Movie: Sponge Out Of Water, Paul Tibbitt, Mike Mitchell, Mary Parent e Paul Tibbitt
*Não consigo, em boa-fé, listar aqui mais do que estes três
filmes
**Esta seleção pessoal tem por base a lista de elegibilidade
da Academia e não a generalidade de 2015 enquanto ano cinematográfico.
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