Primeiro que tudo, tenho de dizer que, ao contrário do que parece
ser a maioria da população mundial com acesso à internet, eu nunca achei que
Leonardo DiCaprio fosse um enorme injustiçado dos Óscares, nem que ele devesse
ganhar por The Revenant. Sinceramente, nunca lhe daria nenhum Óscar por
qualquer uma das suas prestações, se bem que nomearia várias. Quando existem
tantos maravilhosos artistas que não têm Óscares como Roger Deakins, Diane
Warren, Thomas Newman, entre muitos outros, não percebo qual a razão para este
fanatismo em volta de DiCaprio. Olhemos, por exemplo, para 1993 quando este
ator recebeu a sua primeira nomeação. Ralph Fiennes recebeu também nesse ano a
sua primeira nomeação e, tal como DiCaprio até ontem, ele não ganhou qualquer
Óscar. Fiennes é, para mim, um ator monumentalmente superior a DiCaprio mas
nunca se ouve ninguém falar de como a Academia lhe deve um Óscar. Para quem
esteve anos a martelar a cabeça da Academia que Leo devia ganhar um destes
prémios, eu dou o exemplo de Peter O’Toole, que nunca teve essa sorte antes de
morrer e que foi um dos grandes atores da história do cinema. Basicamente, por
favor pessoas da internet acalmem-se com a vossa desmedida paixão por Leonardo
DiCaprio.
Com tudo isso dito e com a maior parte dos leitores
afugentados, tenho de admitir que adorei o discurso de DiCaprio e que ele me
conquistou nesses momentos. A sua vitória era certa e ele teve tempo de
preparar o modo como iria aceitar este prémio e fez justiça às altas
espectativas. Parabéns!
Esquecendo um pouco a vitória incontornável do ator que para
mim será sempre Jack Dawson, falemos um pouco dos restantes vencedores da
noite.
Nas minhas previsões pessoais apenas acertei em 15 dos eventuais
escolhidos da Academia, tendo-me enganado em Ator Secundário, Canção original,
Efeitos Visuais, ambas as categorias de som, Caracterização, Filme numa Língua
Estrangeira, e melhor curta-metragem de animação e documental. Enfim, já tive
anos piores e anos melhores e a verdade é que eu adoro surpresas na noite dos
Óscares, mesmo quando são ocasionalmente desagradáveis.
Eu diria mesmo que a pior surpresa do ano e pior vencedor da
noite foi a vitória de Sam Smith na categoria de Melhor Canção Original. Quem
diria que ele conseguiria traduzir a sua vitória nos Globos de Ouro numa
coroação pela Academia? E por uma das piores canções alguma vez nomeadas em
toda a história da categoria. Certamente a Academia não supunha que Smith fosse
ganhar, sendo que toda a produção da prestação musical de Lady Gaga parecia
prenunciar uma celebração ao estilo de “Glory” o ano passado. Pelo menos esta vitória
deu-nos a oportunidade de ver a melhor atuação da carreira de Gaga, quando esta
forçou um dos mais insinceros sorrisos que já vi aquando da vitória do seu
adversário nesta categoria.
As restantes surpresas foram infinitamente mais prazerosas,
com a vitória de Ex Machina na categoria de Melhores Efeitos Visuais a ser o meu
ponto alto da noite. Quem diria que a Academia iria contrariar décadas de uma
preferência por obras vistosas nesta categoria, decidindo honrar aquele que é
possivelmente o menos gritado e explosivo dos cinco nomeados. Apenas a vitória de
Babe
em 1995 é comparável.
Também a completa torrente de apoio para com Mad
Max: Estrada da Fúria me tomou de surpresa, sendo que já tinha perdido
a esperança que o filme conseguisse arrecadar mais que 2 ou 3 Óscares. O filme
de George Miller varreu quase que por completo as categorias técnicas, saindo
do Dolby Theatre como um dos grandes vencedores da noite com 6 galardões, todos
eles imensamente merecidos. A vitória de Margaret Sixel foi de particular júbilo
para mim.
Ainda a destacar nas minhas previsões erróneas está a
vitória de O Filho de Saul do Óscar de Melhor Filme numa Língua
Estrangeira. Eu estava certo que a Academia ia renunciar esta obra agressiva e
iria refugiar-se na relativa convencionalidade de Mustang, especialmente
considerando a força de alguns dos detratores do filme de Lázló Nemes.
Felizmente a qualidade triunfou sobre a tradição, e o discurso do jovem
realizador foi, para mim, um dos melhores de uma noite repleta de belos
discursos, apesar de nenhum deles se realmente comparar à fogosidade de alguns
do ano passado.
Na maior parte das restantes categorias, os esperados
vencedores triunfaram, mesmo aqueles que mais fraudulentamente arrecadaram os
seus prémios como Alicia Vikander, cuja prestação não pertence de modo algum à
categoria que visa reconhecer a excelência de prestações secundárias. Talvez apenas
a vitória de Mark Rylance me tenha realmente surpreendido nas categorias ditas
principais. Eu já calculava que Stallone fosse perder ao estilo de Mickey
Rourke, mas tinha assumido que Ruffalo fosse propulsionado tanto pela força das
suas anteriores nomeações como pela vitória que já previa para Spotlight
na mais alta honra da noite.
E assim chegamos a Melhor Filme e Realizador. Orgulho-me,
tenho de admitir, de ter previsto este final desenrolar de uma Awards Season
cheia de imprevisibilidades e falta de consenso. No final, a votação
preferencial fez a sua magia e The Revenant mostrou-se como uma
obra demasiado polarizante para ganhar. É claro que Iñarritu acabou por voltar
a ganhar, mas aí eu tinha poucas esperanças de um diferente resultado. Tal como
Leo, no entanto, tenho de reconhecer o valor do seu discurso, especialmente no
que diz respeito à sua indignação para com alguma da atual retórica política
xenófoba que domina as primárias republicanas dos EUA.
Dos vencedores tenho apenas a
acrescentar que foi maravilhoso finalmente ver Ennio Morricone a ganhar um
Óscar.
Falemos agora da cerimónia em si.
Sei que muitas pessoas irão discordar desta minha opinião,
mas eu adorei o monólogo de abertura de Chris Rock. Nunca na minha vida como
devoto seguidor do falso ídolo que é o Óscar, eu alguma vez vi uma audiência
tão desconfortável perante o apresentador e isso é de louvar, especialmente
quando esse desconforto é resultado de uma agressiva e jocosa dissecação politica
e ideológica e não de um humor juvenil e ordinário ao estilo de Seth McFarlane
há uns anos. Concordei com todas as intervenções de Chris Rock ao longo da cerimónia?
Não. Achei que todas as piadas resultaram? Não. Mas tenho de reconhecer que ele
é o mais ousado apresentador desta celebração há décadas e que algumas das
porções do seu monólogo inicial são de um incalculável valor. A sua descrição
do doentio racismo que rege a Hollywood contemporânea foi de particular valor,
especialmente na sua comparação para com os preconceitos de uma fraternidade
universitária.
Com tudo isso dito tenho de confessar que me comecei a
irritar progressivamente devido ao modo completamente binário com que Rock
estava a abordar a questão da diversidade, Este problema não se resume somente
a brancos e pretos. Pergunto onde está então a representação latina, árabe,
asiática, homossexual, transgénera, etc,? Disso quase ninguém fala mas é tudo
igualmente horrendo.
A atenuar alguma dessa faceta redutora na abordagem do
apresentador, tivemos um formidável discurso de Cheryl Boone Isaacs, a
presidente da Academia. Eloquente, precisa e violentamente incisiva na sua crítica
e apelo à ação. É muito fácil falar sobre os problemas de diversidade sem nada
fazer. Aquelas pessoas ali presentes são algumas das faces mais influentes de
toda a indústria e é nas suas ações que devia começar a mudança que tantos
pedem sem nada para ela contribuírem.
Numa nota mais leve e infinitamente menos positiva, os Óscares
continuam a ter uma bizarra relação com a sua longa duração.
Todos os anos parece que os produtores tentam encontrar
maneiras de encurtar a duração da emissão televisiva e cada uma é mais ofensiva
que a outra, para os verdadeiros fãs desta cerimónia e instituição. Este ano, a
mais vistosa mudança foi o acrescento de uma barra infográfica que ia dando a
conhecer as pessoas a quem os vários vencedores queriam agradecer, supostamente
ajudando assim a diminuir a extensão dos discursos. Para mim, isto foi uma
escolha horrível e demonstra uma enorme falta de respeito para com os
vencedores, mas enfim.
Pior ainda é a já recorrente e tragicamente tradicional
falta dos vencedores dos Óscares honorários. É um crime que a Academia roube a
Gena Rowland, Spike Lee e Debbie Reynolds a oportunidade de falarem ao vivo
para todo o mundo. Lee, em particular, teria sido um espetacular acrescento a
esta cerimónia cheia de uma volátil carga política, que abrangeu problemas de
representação diversa, racismo, xenofobia, problemas ecológicos, igualdade dos
sexos e até uma necessária e importante manifestação de força e apoio para com
vítimas de agressões sexuais que se estão a revelar como uma epidemia na
sociedade americana.
Com todos estes problemas de diversidade há que ainda
apontar o modo como os produtores da cerimónia decidiram cortar as performances
de duas das canções, impedindo uma cantora de ópera coreana, Sumi Jo, e a
primeira nomeada abertamente transgénera da história da Academia, Anohni, de
cantarem ao vivo. Recomendo a todos os que se interessem por estas questões que
leiam a carta aberta que Anohni escreveu a justificar o seu boicote desta cerimónia.
Apesar destes cortes, os Óscares continuam a integrar várias
montagens que para mim são desnecessárias assim como vídeos de sketches que,
sinceramente, poderiam ser muito menos longos e repetitivos, apesar da sua
justificável revolta e teor provocativo.
Numa nota mais positiva, com a exceção da catástrofe que foi
Sam Smith, as prestações musicais foram, no mínimo, competentes, com Lady Gaga
a tentar repetir o impacto de “Glory” o ano passado com apenas uma fração do
sucesso.
Numa nota ainda mais positiva, gostaria de fazer referência
a alguns momentos e aspetos individuais como:
O modo como Jacob Tremblay prova, mais uma vez, que é o ser
humano mais adorável de Hollywood.
A reação chorosa de Kate Winslet ao ver Leonardo DiCaprio
ganhar o Óscar.
A presença de Julianne Moore, Cate Blanchett e Angela
Bassett na minha televisão, especialmente quando as primeiras duas se encontram
na companhia de Todd Haynes.
Quão comovente o In Memorian acabou por ser, apesar de uma
desinteressante prestação musical.
O desprezo que radiava de algumas das estrelas quando
confrontadas com Ryan Seacrest na passadeira vermelha.
A jovial felicidade de George Miller face ao sucesso do seu
filme durante a cerimónia.
A camaradagem e mútua admiração entre Jonh Williams e Ennio
Morricone.
O casaco de Jenny Beavan com o símbolo do crânio a gritar de
Immortan Joe.
A considerável diversidade dos vencedores que incluíram
várias mulheres, um homem abertamente homossexual, cineastas da América Latina
e mesmo uma realizadora paquistanesa.
A clara infelicidade de Alejandro Gonzalez Iñarritu face ao
inesperado fracasso de The Revenant nas categorias
técnicas. Eu irritei-me com a sua rudeza ao não aplaudir os vencedores de Mad
Max de modo descarado, mas não consigo negar o meu Schadenfreude face à
sua má disposição.
A seleção de clipes para as categorias de Melhor Atriz
Secundária e Melhor Ator Principal foram surpreendentemente boas. Melhor Atriz
e Ator Secundário tiveram a infeliz tendência a apenas salientar os momentos
mais gritados dos seus nomeados.
A orquestra ter mostrado respeito pela vitória de Ennio
Morricone.
A apresentação das categorias sonoras, que conseguiu
explicar de modo sucinto e eficaz a diferença entre as categorias, ao mesmo
tempo que deu magníficos exemplos do trabalho dos nomeados.
E, por último, as hilariantes presenças de Tina Fey, Kristen
Wiig e Louis C.K., que deviam ser tidos em consideração para apresentarem os
Óscares num destes próximos anos.
Apesar das minhas reticências, esta foi uma boa noite dos Óscares,
especialmente pelo modo como nos deu tanto para discutir. Ao contrário do
desastre que foi Neil Patrick Harris o ano passado, Chris Rock foi o perfeito
apresentador para uma noite cheia de carga política, exacerbando-a e moldando-a
de modo tão divertido como desconfortável. Sei que há quem prefira uma
banalidade confortável nas suas cerimónias, mas eu tenho muito mais apreço por
este tipo de festividade cheia de surpresas, discursos políticos, humor
provocador mas inteligente e uma boa dose vencedores merecedores.
Em consequência de tudo isto só me resta dizer. Viva os Óscares,
que mesmo quando estão desesperadamente presos a preconceitos, convenções
estúpidas e mesquinhos jogos de fama e influencia, conseguem sempre ser produtores
de debate e fascinação cultural. E, já agora, parabéns a Spotlight e Mad
Max, seus criadores e ao cinema em si. Afinal, penso que o amor pelo
cinema deveria ser sempre a força regente neste tipo de celebrações, por isso
ergamos os nosso copos e brindemos ao cinema e sua glória e esperemos que a
próxima Awards Season seja ainda melhor!
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