O que é que faz de um
filme uma adaptação de uma obra de literatura? Uma transladação eficiente das
intenções do autor literário para uma plataforma cinematográfica? Uma
exploração nova por parte do autor do filme sobre a obra, criando uma obra
independente da sombra do livro em si? No caso de uma obra como Madame Bovary, uma representação da
psicologia das figuras literárias?
Não quero afirmar
desde já que a adaptação de Sophie Barthes da obra máxima de Gustave Flaubert,
é uma boa adaptação literária em filme, mas quero desde já apontar para o facto
que o filme desta realizadora (a primeira mulher a filmar esta tão adaptada
obra) de certo modo falha todos os parâmetros acima referidos.
Mas falha de um modo
fascinante, não parecendo de todo ter como sua intenção suceder a nenhum desses
parâmetros.
Isto é possibilitado,
em parte, por um guião que corta partes aparentemente essenciais da obra, como
o facto de eliminar o final do livro, ou mesmo a filha do casal no centro do
enredo. O outro elemento fulcral para esta minha conclusão acerca do filme é o
modo como o filme observa e representa a figura central de Emma Bovary.
Nas mãos de Barthes e
da sua atriz principal, a australiana Mia Wasikowska, Emma Bovary nunca deixa
de ser uma completa cifra para a audiência, algo a ser observado à distância
com um olhar e motivações impenetráveis tanto pelo observador como, em certos
momentos, pela própria personagem. Um momento em que Wasikowska se olha n um
espelho lembra um momento semelhante em New
York, New York (1977) em que Martin Scorsese dirigiu Liza Minnelli,
indicando-lhe que apenas pensasse em não pestanejar os olhos, criando um olhar
vítreo e impenetrável no produto final do filme. Tal como nesse momento do
filme de Scorsese, persiste sobre Madame Bovary uma aura de estranheza em
relação à sua figura central assim como uma aparente relutância de todos os
envolvidos para interpretar, explorar ou resolver a personagem de Emma Bovary.
O trabalho de
Wasikowska é essencial no sucesso de tal retrato distante e essencialmente
superficial de uma tão célebre figura literária que lembra o seu semelhante
trabalho em Jane Eyre de Cary Fukunaga. Enquanto nesse filme, a atriz parecia
conter no seu olhar uma vida interior nunca expressa pelas suas ações, neste
filme o contrário existe, sendo que temos uma figura cheia de ações e reações
externas cuja interioridade nos é completamente inacessível. Muitos dirão que
isto é um defeito inabalável do filme, mas para mim uma interpretação assim
confere algo especial ao filme, algo que o separa da infinidade de adaptações
banais desta mesma obra que se espalham pela história do cinema como ervas
daninhas a tentarem fazer-se passar por rosas.
Ao negar a exploração
ou mesmo a visibilidade ou mera compreensão de Emma, o filme nunca cai nos
erros de simplificação ou interpretação forçada que atormentaram e afetaram
outras mais célebres adaptações da obra de Flaubert, como o sufocante trabalho
de Claude Chabrol de 1991. A distância que mantém da sua protagonista é também
imensamente ajudada pelas escolhas textuais brevemente mencionadas
anteriormente, mas também pelas escolhas de Barthes no que diz respeito ao
restante trabalho de ator do filme, assim como aos aspetos formais do filme.
Uma das escolhas mais
discutidas da realizadora, foi o facto de esta ter decidido usar um elenco com
sotaques deliberadamente díspares, não existindo, de todo, o normal sotaque
inglês de filmes de época. Pondo logo de parte o facto que este é um filme
passado em França no século XIX, e não em qualquer país de língua inglesa, há
que observar o modo como tal escolha contribui para o jogo de distanciamento
que parece caracterizar o filme. Isto é particularmente evidente quando temos
cenas com um elenco maioritariamente a utilizar sotaques americanos, alguns deles
com um toque de contemporaneidade que parece sempre chocar com todo o ambiente
envolvente. A própria linguagem parece distanciar-se da narrativa, das
personagens, da própria realidade em que os eventos do filme se desenrolam.
Esse distanciamento
da realidade dentro do próprio mundo do filme nunca é melhor expresso do que
quando observamos os figurinos de Emma Bovary em relação ao mundo que a rodeia.
O trabalho dos figurinistas deste filme (Christian Gasc e Valérie Ranchoux) em
obras como Adieux à la Reine, deixou-me
no passado bastante insatisfeito, mostrando um certo amadorismo e estilização
desajeitada que nunca pareciam corresponder às produções onde se inseriam. Tal
não acontece aqui.
Visualmente, é
impossível não olharmos para a figura de Emma sem nos apercebermos da sua
desconexão com tudo o que a rodeia. Enquanto o resto do elenco do filme parece
trancado numa estética de elegante reprodução de vestuário de época, um tanto
ou quanto banal e tradicional, a figura de Wasikowska emerge constantemente
como um figura estranhamente estilizada e colorida no meio do filme. As suas
roupas parecem emergir de um filme completamente diferente, especialmente no
que diz respeito à cor, sendo que em quase todos os planos em que se encontra
presente, a figura de Wasikowska rasga a composição como uma pincelada de cor
ácida e agressiva, quebrando e desequilibrando até as mais idílicas e pastorais
imagens atraentemente capturadas pela fotografia de Andrij Parekh.
Bovary é assim quase
que incompreensível tanto para si, como para a audiência, como para o próprio
mundo físico que a rodeia. Ora um insecto colorido ora uma flor tropical no
meio de uma paisagem classicamente romântica. A distância, até visual, que
Barthes insiste em impor à sua protagonista faz desta adaptação, não perfeita
ou particularmente excitante, mas faz dela uma adaptação diferente. Quando
falamos de uma obra que já foi tantas vezes adaptada, um pouco de surpresa e um
pouco de variedade de intenções é muito mais do que a grande maioria deste tipo
de adaptações de obras literárias de prestígio tem para oferecer.
Sem comentários:
Enviar um comentário