Depois de Jenny Beavan e Paco Delgado terem ganho os Costume
Designers Guild Awards para Melhores Figurinos num Filme de Fantasia e de
Época, respetivamente, parece que, possivelmente, a esperança de Sandy Powell
em ganhar um quarto Óscar se comece a esmorecer. É claro que este sindicato não
tem uma relação particularmente próxima dos Óscares, no que diz respeito à
semelhança entre as suas escolhas, mas com a sua vitória nos BAFTAs parece que
Jenny Beavan poderá vir a ser a figurinista galardoada com o Óscar de Melhor
Guarda-Roupa deste ano.
Apesar da minha devoção à magnífica Sandy Powell, sobre a
qual poderão ler um pouco nesta minha análise sobre o seu trabalho em Cinderella,
eu não ficaria entristecido se Beavan arrecadasse o troféu no próximo domingo.
Depois de uma carreira inteira construída em volta de respeitosos filmes de
época, esta aventura de Beavan pelo caótico mundo da ficção-científica pós-apocalíptica
de Mad
Max é uma deliciosa surpresa e uma das mais fascinantes reviravoltas
profissionais imagináveis.
De resto, temos Delgado indicado por A Rapariga Dinamarquesa,
a sua segunda colaboração com Tom Hooper, Jacqueline West por The
Revenent, uma nomeação assegurada somente pela paixão absoluta que a
Academia teve por este filme, e Powell por Carol e Cinderella.
Já em 1998, Sandy Powell esteve candidata ao Óscar com duas
nomeações, tendo acabado por arrecadar o Óscar em nome de A Paixão de Shakespeare. Será que ela consegue repetir essa vitória
neste ano em que volta a desfrutar da rara dupla nomeação?
Apesar de esta ser uma lista de cinco sólidos ou geniais
nomeados, eu tenho de admitir que fiquei um pouco desapontado no dia das
nomeações. A categoria de Melhor Guarda-Roupa tem vindo a se afirmar como uma
das partes da Academia com um gosto mais autónomo e idiossincrático, muitas
vezes indicando filmes que não são recordados por mais nenhuma categoria.
Infelizmente, neste ano de imprevisibilidades, parece que os figurinistas da
Academia escolheram a segurança e conformidade que usualmente rejeitam. Eu
duvido, por exemplo, que The Revenant tivesse adquirido esta
nomeação se não fosse um dos inegáveis frontrunners
ao Óscar de Melhor Filme,
RANKING DOS
NOMEADOS:
5. Paco Delgado por The Danish Girl
Apesar das minhas colossais reservas em relação ao mais
recente filme de Tom Hooper, tenho de reconhecer que os visuais de A Rapariga Dinamarquesa conseguem escapar ao poço de sufocante
mediocridade em que o resto do filme se afoga. Os figurinos do filme ficaram a
cargo do figurinista espanhol Paco Delgado, que aqui colabora pela segunda vez
com o realizador, sendo que Delgado também desenhou os figurinos de Les Misérables. Tal como a cenografia de Eve Stewart, os figurinos de
Delgado demonstram uma inteligente delicada paleta cromática inspirada nas
pinturas das duas artistas cuja história é retratada no filme. Eu diria mesmo
que a grande qualidade que Delgado traz ao seu filme é o seu domínio do uso de
materiais e cores, conferindo ao filme um caracter tátil que está completamente
ausente da restante mise-en-scène. De destacar também está a construção do
guarda-roupa de Lili e da sua transição de um visual masculino a uma identidade
exterior completamente feminina, sendo que os fatos largos e cintados desenhados
por Delgado são o grande highlight de
todo o guarda-roupa. Nem tudo é positivo, no entanto. A narrativa de A
Rapariga Dinamarquesa passa-se na segunda metade da década de 20 do
século passado e seria de esperar que Delgado tentasse recriar essa realidade,
especialmente se considerarmos a estética relativamente realista que
caracteriza abordagem estilística do filme. Apesar disso, na primeira metade do
filme, Delgado parece completamente ignorar esses dados temporais, construindo
um guarda-roupa baseado nas modas do período da Primeira Guerra Mundial. O
figurinista alegou em entrevistas que esta escolha foi feita como modo de
salientar as restrições sociais impostas sobre o casal no centro da narrativa,
sendo que, quando chegam a Paris, as suas roupas mostram uma imensa progressão
e adotam as modas vigentes da sua época numa mostra de “libertação”. O problema
é que isso vai propositadamente contra as indicações textuais, que salientam
numa cena quão curta a saia de Gerde é, por exemplo. Eu tenho noção que A
Rapariga Dinamarquesa é uma versão extremamente ficcionada das vidas das suas
protagonistas, mas é horrendo quão o filme distorce o seu modo de vida,
ignorando quão progressivas as suas atitudes eram para com a sexualidade e as
normas sociais. Apesar de Delgado querer simplificar a história de Gerde e Lili
num arco narrativo de repressão antiquada e libertação, isso ignora as
complexidades das suas vidas e apenas prejudica o filme como um todo. Não que o
filme realizado por Hooper precise de muita ajuda para ser um completo
desastre.
Tal como a cenografia concebida por Jack Fisk, o
guarda-roupa da autoria de Jacqueline West foi construído com o intuito de
edificar para The Revenant um mundo físico autêntico e com uma força
visceral. Muitos dos aspetos do filme, como a fotografia e a montagem, tendem a
parecer demasiado indulgentes e polidos, mas o vestuário que West criou para
este filme está longe de tais impulsos ou fragilidades, primando por uma imensa
fidelidade histórica e extrema preocupação em recriar não só o corte e a cor,
mas também a textura e temperatura das roupas usadas pelo elenco de personagens
que integram esta narrativa de vingança e resiliência humana face à Natureza
cruel. O trabalho de investigação, focado tanto em registos textuais como em
retratos e fotografias dos povos nativos americanos da região, deu os seus
frutos, concedendo aos figurinos de The Revenant uma forte presença que,
apesar de imensamente deselegante e quase monótona, é de louvar. Apesar da
maior parte dos figurinos, devido à sua cor e sujidade, parecerem quase
idênticos à distância, West construiu pequenas coleções de precisos detalhes a
diferenciar cada figura humana, delineando as suas origens e condição social
antes da narrativa. Talvez o mais notório exemplo de caracterização através da
linguagem do vestuário seja mesmo o contraste entre Glass, vestido em leves
roupas baseadas em trajes de nativos americanos, e o peso e corpulência de
Fitzgerald com o seu casaco feito de múltiplas espécies de animais, como que
uma prova visual da sua hubris e aptidão para indecente carnificina. O trabalho
de West é um aspeto essencial da experiência sensorial que The Revenant pretende
criar, sendo que as suas criações, feitas de materiais autênticos, são uma
componente indispensável de uma mise-en-scène em que o abater das monumentais
adversidades naturais sobre a figura humana é também integralmente inserido em
todo o discurso visual concebido por West.
Toda a construção do mundo pós-apocalíptico de Mad
Max: Estrada da Fúria é um milagre cinematográfico de enlouquecida
criatividade e impetuosa irreverência e os figurinos de Jenny Beavan não
destoam. A figurinista inglesa constrói no guarda-roupa deste filme uma
infernal visão de um futuro de uma humanidade desolada, onde uma nova cultura
emergiu dos escombros do passado, resultando em novas estéticas, onde reina um
barroco gosto por decoração e onde novas iconografias surgiram, nomeadamente as
criadas em torno da figura ditatorial e religiosa de Immortan Joe. Beavan
desenvolveu o seu trabalho a partir do estilo desenvolvido pelos filmes
anteriores da saga Mad Max, acrescentando-lhe uma estranha veracidade necessária
para a visceral intensidade que Miller conjurou no quarto volume deste bizarro
franchise. Para mim, a melhor faceta destes figurinos é o verdadeiro oceano de
pequenos e grotescos detalhes que cobrem todas as figuras humanas em cena,
concebendo uma imagem cinematográfica que se assemelha a uma pintura de
Hyeronymus Bosch sob o efeito de drogas psicadélicas e mesclado com a
destruição de um apocalipse nuclear. Poderia escrever parágrafos sem fim sobre
cada um dos figurinos e seus geniais detalhes, como o uso de cabeças de bonecas
como decoração de um traje de batalha ou o fino linho que cobre os corpos das
noivas como símbolo de uma delicadeza preciosa que sobrevive na imperdoável
realidade deste universo sanguinário. Este é o trabalho de uma genial
figurinista e merece especial admiração por ser uma nomeação tão gloriosamente
atípica, com o seu foco em ficção-cientifica e completa recusa de quaisquer
compromissos criativos ou confortável elegância visual.
Da minha crítica de Cinderela:
“O génio dos figurinos de Sandy Powell é de particular
louvor, encontrando uma estética bastante reminiscente da animação da Disney em
personagens como a madrasta (Cate Blanchett) cujos figurinos têm todos
praticamente a mesma silhueta reminiscente dos anos 40, apesar das cores e
materiais diversos, criando a impressão de uma figura animada com um modelo
específico e algumas variações. O modo como se inspira em pormenores visuais do
século XVIII e XIX também lembra o trabalho dos animadores da Cinderella
de 1950. As suas criações, especialmente na cena do baile, são um exagero
imenso e cor e detalhe, apesar da relativa simplicidade do vestido da
protagonista, mas, apesar de tudo, parecem encontrar um certo equilíbrio nesse
mesmo excesso.”
Há muitos anos que admiro a brilhante Sandy Powell, e este
ano a rainha dos figurinos do cinema contemporâneo não desapontou os seus
devotos fãs. Em Cinderella, podemos observar a figurinista inglesa a trabalhar
com o suporte e apoio de toda a instituição milionária que é a Disney,
permitindo-lhe ir a níveis de excesso, opulência e detalhe que nunca antes se
tinham verificado na sua carreira. Não há compromissos nos figurinos de Cinderella,
simplesmente uma explosão de visuais primorosos, concebidos por uma das mais
gloriosas mentes do cinema contemporâneo. O seu uso de cor, referencias de
diferentes épocas, surpreendente simplicidade em momentos específicos e seu
cuidado, mas simples, discurso visual, fazem de Cinderella um dos mais essenciais
filmes para qualquer fã de figurinos em cinema. Este é um sonho tornado cinema,
com todo o luxo e beleza que os nomes de Powell e da Disney sugerem, tão
apelativo a um olho inocente e infantil como fascinantes para uma audiência com
mais maturidade e sede por sofisticação. Bravíssima!
Se Cinderella é uma montra para Sandy
Powell demonstrar o seu génio do modo mais opulente e gritado imaginável, Carol
é um dos mais sussurrados e delicados trabalhos que Powell alguma vez concebeu.
Nesta adaptação de um romance de Patricia Highsmith, a atmosfera de uma época
passada é conjurada por uma cuidada mise-en-scéne, onde cada um dos elementos
visuais é uma gentil pincelada que, no final, resulta numa magistral visão de
um mundo de outros tempos, apresentado como algo semelhante a uma memória enevoada
pelo tempo, e espicaçada pela intensidade das emoções da sua narrativa.
Inspirada na fotografia da época, especialmente a de Saul Leiter e Vivian
Maier, a equipa de Todd Haynes concretizou essa tão etérea e romântica
atmosfera, fugindo aos clichés deste tipo de exercício em cinema de época e
concebendo uma experiência mais sensorial e reticente que declarativamente
expositiva e pejada de clichés. Eu diria mesmo que a maior mostra de génio de
Powell é o modo como a figurinista define o período histórico do inverno de
1952, desenhando um guarda-roupa maioritariamente enraizado nos estilos do
pós-guerra dos anos 40. A Nova Iorque conjurada pelas criações de Powell não é
uma visão arquétipo da prosperidade americana da década de 50, mas sim um
retrato de uma nação em melancólico rejuvenescimento, onde a sombra da austeridade
bélica ainda se faz sentir sobre a vida de todos, pelo menos a um nível visual.
Com esse ponto de partida, Powell constrói um guarda-roupa onde a
estratificação social da época é colocada em evidência e vê criando em cada
personagem uma caracterização precisa e cuidada. Apesar desta minha celebração
da rejeição que Powell fez às últimas tendências de 1952, uma das personagens é
vestida com todo o esplendor da moda da época. Como Carol Aird, Cate Blanchett
é um objeto de desejo sedutor e luxuoso, cheia de estilo e seguidora da moda,
sendo que os figurinos são uma parte essencial de todo o romance que se vai
desabrochando. Observamos Therese Belivet admirar Carol e focar-se em pequenos detalhes
como a textura da seda de um vestido, ou o cabedal de um par de luvas, ou o
suave toque de um casaco de marta loira. Em Carol, Powell alcançou uma
sofisticação e disciplina visual que nem eu, um admitido fã, a julgava capaz de
alcançar. Mais nenhum guarda-roupa deste ano e destacou tanto pela sua
elegância, pela qualidade tátil dos seus figurinos, pela complexidade emocional
integre no discurso visual. Powell é uma deusa e, pelo seu génio, ela merece a
nossa veneração. Oxalá os Óscares aceitem a sua magnificência e mostrem o seu
respeito para com esta visão de absoluta e apaixonante perfeição visual.
PREVISÕES E DESEJOS:
Quem vai ganhar: Jenny
Beavan
Quem eu quero que
ganhe: Jenny Beavan
Quem merece ganhar:
Sandy Powell
5 escolhas alternativas que a Academia ignorou*:
- Ruth E. Carter por Chi-Raq
- Jacqueline Durran por Macbeth
- Kate Hawley por Crimson Peak
- Joanna Johnston por The Man from U.N.C.L.E.
- Anaïs Romand por Saint Laurent
*Esta
seleção pessoal tem por base a lista de elegibilidade da Academia e não a
generalidade de 2015 enquanto ano cinematográfico.
Sem comentários:
Enviar um comentário