Sandy Powell é uma lenda viva, um génio absoluto do desenho
de figurinos. Mesmo quando o seu trabalho deixa um pouco a desejar como em The
Other Boleyn Girl, há sempre algo de interessante nas suas criações,
nem que seja o seu primoroso uso de tecidos, cores e padrões. Este ano, a
figurinista britânica poderá ser nomeada por dois filmes, algo que já lhe
aconteceu em 1998, quando foi nomeada por Shakespeare in Love e Velvet
Goldmine. Os filmes de que falo neste caso são Carol, mais uma das
gloriosas colaborações desta figurinista com Todd Haynes, e talvez o seu mais
opulente e dispendioso trabalho até à data, a nova versão de Cinderela
da Disney.
Powell começou a sua carreira nos palcos ingleses, sendo que
a sua primeira aventura pelo mundo do cinema veio com Caravaggio de Derek
Jarman. Durante os anos que se seguiram a esse filme de 1986, Powell continuou
a trabalhar maioritariamente com esse visionário do cinema avant-garde inglês.
Infelizmente, Jarman morreu em 1994, sendo que o seu último filme, Blue
nem sequer precisou do trabalho de uma figurinista, sendo que era composto por
apenas som sobre um ecrã em azul. Entretanto, Powell havia começado a trabalhar
com outros autores, mas sempre num registo bastante mais ousado e artístico do
que seria de esperar para uma artista com tão grande gosto por visões de
ensandecida opulência.
A sua primeira nomeação para os Óscares veio com o seu
trabalho em Orlando, uma adaptação do complicado clássico de Virginia
Woolf. O filme de Sally Potter tem uma narrativa que se estende por vários
séculos, permitindo a Powell uma maravilhosa criação de diversos visuais
estilizados que vão desde uma visão exuberante e enlutada do período isabelino
tardio até à contemporaneidade. Não foi esta no entanto, a grande entrada de
Powell em Hollywood e no mundo dos grandes estúdios, tal coisa apenas aconteceu
com Entrevista
com um Vampiro, outra narrativa que engloba diversos períodos devido à imortalidade
dos seus protagonistas. A partir daí, a filmografia de Powell tem sido um
encadeamento de filmes que, mesmo quando não são grandes obras de cinema, têm
sempre fascinantes e maravilhosos figurinos. Desde a morte de Jarman, dois
autores têm mantido uma colaboração muito próxima com Powell, Todd Haynes e
Martin Scorsese.
Como já disse, é provável que Sandy Powell oiça o seu nome
por duas vezes no anúncio das nomeações aos Óscares, mas não estamos aqui para
falar do romance de Todd Haynes, mas sim da fantasia realizada por Kenneth
Branagh.
Em Cinderela, nenhum limite de orçamento se terá abatido
sobre a visão de Sandy Powell e tal é claramente visível na explosão de luxo que
caracteriza todo o guarda-roupa deste filme. Desde os primeiros momentos do
filme, quando a narrativa se foca na jovem Cinderela e na sua bucólica vida com
os seus pais, conseguimos ver o toque característico de Sandy Powell.
Imediatamente reparamos que os figurinos são uma mistura de inspiração de
várias épocas históricas, nomeadamente o século XIX, e que, como é comum no
trabalho de Powell, o uso de cor e padrão toma uma posição de destaque. Ella e
sua mãe vestem roupas imensamente semelhantes, criando imediatamente uma forte
ligação visual e emocional entre as duas, com suaves padrões florais num
registo naturalista a caracterizarem ambas as figuras.
Algo que se torna claro, tanto pelo texto como pelos
figurinos, é que este filme forma uma ligação intrínseca entre a natureza e a
bondade, como é, aliás, comum na maioria das histórias das princesas da Disney.
Azuis e verdes dominam a família de Ella, que quase parece ser um jardim em
forma humano quando examinamos os motivos decorativos e cromáticos dos seus
figurinos. Nada disto é particularmente complexo, mas segue uma lógica bastante
próxima do desenho de personagens em filmes de animação, uma linha racional que
se vai prolongar pelo resto do filme.
Com a passagem do tempo e a trágica morte da mãe de Ella,
acabamos por encontrar a nossa protagonista e seu pai num registo bastante
menos jovial e bucólico que nas primeiras cenas do filme. O figurino de Ella
continua a apresentar a mesma silhueta básica da sua mãe, uma espécie de
mistura entre estilos oitocentistas com as modas de inspiração campestre do
século XVIII. O padrão floral, é substituído por um subtil motivo floral na sai
do seu vestido azul, uma cor imensamente ligada, durante todo o filme, à
felicidade da protagonista e aos valores familiares e românticos. O seu pai, vê
os seus verdes e azuis ganharem uma negrura e profundidade muito menos leve que
outrora, em tecidos mais pesados como veludos.
É então que entra na narrativa a mais esplendorosa das suas
figuras, a madrasta de Ella, Lady Tremine. Cate Blanchett raramente esteve mais
glamourosa que este ano, em Carol e Cinderela. Como a antagonista deste filme,
Blanchett é uma visão de luxo ao estilo da Hollywood dos anos 40. Com a sua
rígida silhueta, acentuada por chumaços nos ombros, a atriz australiana parece
uma Joan Crawford renascida. A maioria dos seus figurinos mantém exatamente a
mesma silhueta, apenas apresentando algumas variações de cor, acessórios e
outros detalhes, como se de um modelo de um cartoon se tratasse, em que uma
personagem é praticamente sempre desenhada com a mesma silhueta básica.
O seu primeiro figurino é uma boa indicação de todas as
roupas que se irão seguir. Motivos vegetais num registo imensamente artificial
decoram um conjunto em vários tons de acídicos verdes. Tremine está longe de
ser o doce jardim de conto-de-fadas em forma humana que foi a mãe de Ella,
sendo que esta madrasta é uma visão de luxo descarado, gritantemente nouveau riche. A deliciosamente
complementar este visual, está um gloriosa chapéu e um detalhado par de botas
que repetem os motivos estilizados e florais do resto do traje.
As suas duas filhas, ao contrário de serem fisicamente
repugnantes como é habitual, têm a manifestação visual da sua mesquinhez
contida nos seus figurinos. As suas roupas são berrantes e características de
um horrendo gosto. Caracterizadas por estarem sempre vestidas em conjuntos
idênticos, as duas irmãs são somente distinguidas por duas paletas cromáticas
distintas, mas feiamente berrantes. Drizella veste amarelo e Anastasia veste
vários tons de rosa. Para além disso, as suas roupas demonstram o mesmo tipo de
estilização baseada em modas do século XIX, sendo que as duas irmãs maldosas
envergam maioritariamente vestidos que parecem interpretações da Hollywood dos
anos 50 inspiradas em silhuetas da década de 1830.
Esta homenagem a estilos da era dourada dos estúdios é um
pouco semelhante ao trabalho de Kate Hawley em Crimson Peak, mas ao invés de
procurar uma estética gótica, Powell cristaliza neste filme a elegância
fantasiosa que tanto caracterizava os star vehicles em contextos de época como
o Orgulho
& Preconceito protagonizado por Greer Garson.
As roupas de Cinderela, a sua madrasta, Drizella e Anastasia
seguem a estética presente na sua introdução até ao resto do filme, mesmo no
que diz respeito à sua rígida paleta cromática. A madrasta, por exemplo, quase
nunca veste nada azul, sendo que essa cor, especialmente as tonalidades mais
pálidas, são um constante motivo da felicidade de Ella. A cor mais prevalente
no seu guarda-roupa é aliás o verde, que longe de lembrar a natureza, apenas se
apresenta em tons imensamente ácidos e artificiais.
Este tipo de lógica visual bastante simples e fácil de
perceber chega ao seu apogeu na cena do baile, o grande clímax do filme. Aí,
estas três antagonistas vestem explosões de mau gosto em forma de vestidos
exuberantes e berrantes, luxuosos mas imensamente feios. Blanchett, em
particular, parece ser uma personificação da inveja, envergando camadas de
luxuoso tecido verde dispostas em rígidas formas sobre a sua elegante figura.
Não há aqui nada de subtil ou elegante e, neste caso, isto é uma qualidade e
não um defeito.
Ella, depois de ver o vestido rosa que pertencia à sua mãe
ser destruído pela sua maldosa família, que a tornou uma serva depois da morte
do patriarca, encontra no jardim a sua fada-madrinha, disfarçada num
impressionante figurino encapuzado. Depois de um simples ato de bondade, Helena
Bonham Carter aparece sem qualquer subterfúgio de velhice, apresentando-se num
exuberante figurino de clara inspiração rococó, coberto em cristais Swarowski. Faz
sentido que a fada, uma criatura mágica e intemporal, use roupas que remetem
para modas setecentistas, quando a maioria das personagens deste mundo se
vestem ao estilo do século XIX.
É então que aparece o mais belo figurino do filme, e uma das
melhores criações em toda a vasta filmografia de Sandy Powell, o vestido de
Ella. Criado a partir de imensas camadas de vários tecidos em diversas
tonalidades de azul, roxo, rosa e até branco, o vestido da protagonista brilha
no ecrã com uma tonalidade azul tão forte como delicada. A simplicidade do
vestido, que apenas tem como adorno algumas borboletas em volta do decote,
leva-o a destacar-se da montanha de adornos e riqueza espalhafatosa que é o
baile, onde cada figurante se veste com o tipo de luxo que esperaríamos de um
protagonista em qualquer outro filme.
Já tanto falei da protagonista e suas odiosas familiares, e
ainda não mencionei o príncipe, o interesse romântico de Ella. Seguindo o
motivo dos figurinos de Ella e sua família, a personagem de Richard Madden
veste-se maioritariamente em tons de azul, com alguns toques de agradáveis
verdes, salientando assim a vibrante cor dos seus olhos, à perfeita moda das
estrelas de Hollywood filmadas a Technicolor nos romances dos anos 50.
Tem de se fazer uma especial menção ao fato utilizado pelo
ator numa cena em que o príncipe pratica esgrima. Muito foi dito em entrevistas
sobre as calças imensamente justas que o ator usa e como Branagh e Powell
tiveram de cuidadosamente selecionar a sua roupa interior de modo a manter a
modéstia do ator e do filme. Vou simplesmente dizer que todos esses esforços
valeram a pena e ficar-me por aí.
Se continuar a falar de cada personagem e cada figurino, nunca
mais daqui saímos, sendo que mesmo os figurantes de todo o filme, especialmente
os servos do palácio, se encontram impecavelmente vestidos. Para finalizar, vou
mencionar o par de figurinos que encerra o filme, quando vemos Ella e o
príncipe no dia do seu casamento. Ela veste um vestido que pouco deve a
qualquer estética oitocentista, sendo uma peça claramente pertencente a uma
fantasia moderna. O motivo de delicadas flores volta aqui a marcar presença,
com o uso de azul pálido como símbolo do amor a aparecer no conjunto usado pelo
príncipe.
A nomeação de Powell parece, neste momento, uma invariável
certeza e penso que, sinceramente, ela é a mais forte candidata ao Óscar nesta
categoria. Em Cinderela, vemos uma das mais formidáveis artistas do cinema
contemporâneo a trabalhar sem limites orçamentais ou pragmáticos e o resultado
final é um sonho em forma de guarda-roupa. Simplesmente glorioso.
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