Tradicionalmente, os Óscares reconhecem cenografias
opulentas, belas, minuciosamente detalhadas e ricas em monumentais interiores.
O trabalho de Colin Gibson e Lisa Thompson é certamente grandioso mas a sua
glória não se encontra na criação de luxuosos interiores mas sim no exército de
apocalípticas viaturas que formam a perseguição enlouquecida que marca todo o
filme de George Miller.
A War Rig em que os protagonistas viajam durante
praticamente todo o filme é certamente o mais icónico desses veículos, sendo
que, com as suas variadas partes, o camião tornado máquina de guerra contém em
si a riqueza de informação visual e complexidade dos melhores cenários que este
ano estão na provável mira dos Óscares. Alguns dos melhores momentos de Mad
Max, aliás, consistem na intrépida passagem das personagens pelas várias áreas
da War Rig quando esta se encontra em movimenta. Quando isto é feito durante o
momento de sanguinária batalha, o efeito é ainda mais espetacular.
De destacar na War Rig está o interior da zona do condutor,
onde todas as superfícies se encontram cobertas com algum tipo de detalhe
decorativo. Num mundo tão miserável como aquele presente em Mad
Max: Estrada da Fúria é curioso vermos a necessidade da humanidade por
beleza, por algum semblante de conforto visual. É claro que a estética aqui
presente é bastante diferente do que usualmente consideraríamos elegante, mas é
inegavelmente impressionante. Quem diria que uma das melhores maneiras de
concretizar uma sociedade miserável, no meio de um deserto pós-apocalíptico,
seria a partir de um gosto quase barroco pelo detalhe?
As restantes viaturas desta perseguição seguem a mesma
lógica de loucura barroquista aplicada a imagens de mortífera agressividade.
Como Monster Trucks desenhadas por Bernini para uma cultura de constante
guerra, todos os veículos são verdadeiras obras-de-arte sobre rodas, rasgando a
beleza simples e monumental dos exteriores desérticos com complicadas silhuetas,
cheias de sinuosos apêndices, como as lanças que balançam com cada movimento
errático destas construções.
Para mim, a melhor das viaturas é, sem dúvida, aquela cuja
função no campo de batalha é uma obra de pura genialidade mais perto da pop art
que do usual cinema de ação. Falo, pois claro, da viatura que transporta o
guitarrista que trabalha para Imortan Joe como acompanhante musical da
carnificina. A sua guitarra que cospe fogo foi criada a partir de uma
arrastadeira, e é completamente funcional, servindo como o melhor adereço em
todo o cinema de 2015, e como fundo, este músico do inferno tem uma louca
construção de altifalantes todos precariamente amontoados na viatura. Uma obra
de puro génio.
Esta equipa de cenógrafo e decoradora basearam esta estética,
tanto no passado da saga Mad Max, onde tais gostos pela
exuberância distópica do futuro já estava presente, como em numerosas outras
referências, tanto do cinema como do mundo dos romances gráficos. Um carro
coberto de ameaçadores espinhos metálicos é um destes melhores exemplos, sendo
baseado em semelhante viatura de um antigo filme de Peter Weir, um dos grandes
mestres do cinema australiano, tal como George Miller.
Gibson não é nenhum estreante neste mundo de filmes focados
em cenários motorizados, sendo que também foi responsável, entre numerosos
filmes, por As Aventuras de Priscilla; A Rainha do Deserto, em que um trio
de exuberantes drag queens australianos viajam pelo deserto da Austrália numa
bizarra road trip. Escusado será
dizer que Colin Gibson é, neste momento, uma verdadeira instituição viva do
cinema australiano.
Já elogiei bastante os veículos de Mad Max: Estrada da Fúria,
mas o filme ainda contém alguns cenários mais tradicionalmente construídos,
nomeadamente o mundo rochoso em que consiste a comunidade liderada por Imortan
Joe. Apesar de grotesco e bizarro, os ambientes desta miserável comunidade são
imensamente credíveis, especialmente no que diz respeito à sua iconografia
quasi religiosa, que segue as mentiras e invenções de Joe para o controle da
sua população.
De todos os interiores, mesmo contando com a enfermaria
recheada de jaulas suspensas e uma montanha de volantes hiper decorados, o mais
impressionante e dramaturgicamente revelador é a prisão das noivas do
antagonista. Quando vemos esta cela, entramos por uma porta fortificada e, tal
como no Feiticeiro de Oz, entramos, através deste portal, para um mundo
completamente diferente da fogosa miséria do resto desta fortaleza. A paz que
enche este espaço é quase sufocante, livros aparecem espalhados por todo o
lado, as formas são arredondadas e calmas, a luz é suave. Mas toda esta beleza
é criada com o propósito de aprisionar e isso é claramente expresso nas
palavras de revolta pintadas no chão e nas paredes. Este mundo pode estar cheio
de magníficas peças decorativas, mas as noivas não são parte dessa decoração,
como todos os seres humanos, elas não são objetos e a simples visão deste
cenário é uma formidável expressão da narrativa e da força das fugitivas.
No final, a contribuição destes dois mestres da cenografia
cinematográfica é essencial para que o mundo de Mad Max seja credível e
tão intensamente palpável como acaba por ser. Este filme monumentalmente
ambicioso é uma aberração do cinema de ação contemporâneo, tanto pela sua exaustiva
energia como pelo seu desenfreado design e impetuosidade estilística, e isso
estende-se também aos seus efeitos visuais intensamente físicos que precisam da
fisicalidade presente na cenografia para se integrarem de modo funcional no
mundo do filme. De modo geral, penso que já deixei bem claro quão espetacular e
perfeito é o trabalho de Colin Gibson e Lisa Thompson, e quão eu desejo que os
Óscares não se esqueçam dele e decidam reconhecer algum trabalho mais
tradicional mas infinitamente menos ousado ou inspirador.
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