2015 tem sido um ano
explosivo para Cate Blanchett. Logo em janeiro, Cavaleiro de Copas
estreou no festival de Berlim, marcando a primeira colaboração entre a atriz
australiana e um dos mais importantes autores do cinema contemporâneo. Em outubro, os eruditos dos Óscares apenas pareciam ter uma dúvida em relação
à grandiosidade de Blanchett e era sobre que interpretação iria cair a graça da
academia? O drama factual e politicamente incendiário Truth, ou o apaixonante
romance Carol? Entretanto essa questão foi respondida, e o seu trabalho no filme de Todd Haynes parece ter garantido a presença da atriz nas nomeadas deste ano. Junte-se a esta enchente de formidáveis filmes, a
recente coroação de Blanchett como a Melhor Atriz de 2013, e parece que a atriz
se está a tornar numa força imparável ao estilo de Meryl Streep. Apesar de todo
este prestígio autoral e prestigioso, não é sobre nenhum dos filmes
anteriormente referidos que aqui quero falar, mas sim sobre Cinderella.
Comparado com os seus papéis em Cavaleiro de Copas, Truth
e Carol,
o seu trabalho como Lady Tremine, a maldosa madrasta de Cinderella poderá
parecer algo menor, ou esquecível, mas, pessoalmente, penso que é uma
incontornável injustiça que Cate Blanchett esteja completamente excluída da
conversa para o Óscar de Melhor Atriz Secundária. Poucas vezes a atriz foi tão
deliciosamente estilizada e paradoxalmente humana, sem nunca deixar o seu
trabalho ofuscar de modo prejudicial o filme em que se encontra. De todos os
trabalhos da atriz, junta-se talvez a O Talentoso Mr. Ripley, como uma
perfeita junção de técnica, carisma, estilo, artifício, sinceridade e puro
divertimento na filmografia da atriz.
Seria erróneo falar
de Cate Blanchett em Cinderella sem mencionar o trabalho
de Sandy Powell (talvez chegue a fazer um post sobre os figurinos). Vestida com
os seus esplendorosos figurinos, a atriz torna-se uma versão da madrasta
apimentada com um glamour da Hollywood passada. A sua silhueta e pose são as de
Joan Crawford no seu mais ensandecido e elegante registo, como seria apropriado
para a sua imagem concebida por Powell, e os seus movimentos acompanham a
estilização sugerida pelos figurinos. Estamos num ambiente de conto de fadas,
onde a lógica visual parece seguir regras de filmes de animação, sendo que a
atriz, ao invés de lutar contra estes exageros e simplicismos, trabalha com
eles e cria uma construção final consistente e deliciosa na sua malvadez de
cartoon.
Basta olhar-se para a
sequência do baile para reparar na estilização exuberante no trabalho de
Blanchett, que parece uma extensão humana da opulência visual que a rodeia.
Também aqui é impossível ignorar os talentos cómicos da atriz, que poucas vezes
teve a oportunidade de trabalhar num registo tão exageradamente expressivo.
Mas, apesar de todos estes floreados elogios, Blanchett nunca se deixa tornar
num inofensivo e distante cartoon de ridícula vilania.
Lady Tremine entra no
filme de Kenneth Branagh como uma viúva glamourosa, e, como a narradora indica, ela veste muito bem a sua
perda. O mesmo se pode dizer de Blanchett que veste a dolorosa humanidade da
sua personagem como mais uma das suas elegantes indumentárias. A acompanhar e
complementar a estilização, há sempre a sombra de uma mulher que amava o
primeiro marido e se encontrou a casar com um homem que a coloca
permanentemente na sombra tanto da sua falecida primeira esposa como da sua
filha. Há um amargo ressentimento no olhar de Tremine, uma sugestão de
vulnerabilidade disfarçada pelo veneno maldoso dos seus atos.
Apesar de estilizada,
a madrasta de Ella é palpavelmente humana ao mesmo tempo que é uma vilã
digna de cartoon, o que a faz imensamente mais perigosa que se simplesmente
fosse unicamente uma caricatura distante. Tudo isso é perfeitamente visível na grande
confrontação entre a vilã e a protagonista no sótão de sua casa, onde a vilania
de Tremine é oferecida em toda a sua grandiosa mesquinhez e perigosa
humanidade. Não vilão mais assustador que aquele que conseguimos imaginar no
nosso mundo, e Blanchett cria o equilíbrio perfeito entre a fantasia e o lado
mais humano do filme e da sua personagem.
Infelizmente para
esta estrela australiana, as associações de prémios poucas vezes têm paciência
para interpretações deste tipo em filmes tão leves e abertamente juvenis como
Cinderella. Talvez se Blanchett fosse um homem e tivesse uma narrativa meio
sofredora (Johnny Depp em 2003) esta interpretação ganhasse algum reconhecimento
na Awards Season. Como tal não acontece, acho que não vale a pena ter grandes
esperanças. Mesmo assim, há que celebrar este trabalho, e recordar a Lady Tremine
de Cate Blanchett como uma das mais formidáveis presenças que agraciaram os
ecrãs de cinema em 2015. Viva a magnífica Cate!
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