Filmes que se focam em histórias verídicas sobre
investigações jornalísticas, ou outros tipos de cruzadas morais, têm tendência
a se focarem em demasia nos mecanismos do processo de investigação e se
tornarem num encadeamento de acontecimentos e factos clinicamente apresentados. Acrescente-se a isto o facto de que estamos a falar de um projeto feito com uma
clara pátina de prestígio e respeitabilidade pronta para a Awards Season, e O Caso Spotlight tinha todos os ingredientes para ser um dos mais
enfadonhos e medíocres filmes de 2015. Felizmente, a liderar todo o edifício
deste filme está Tom McCarthy, um realizador que, excetuando o desastroso The
Cobbler, sempre demonstrou um fenomenal talento para a apresentação de
histórias humanas recheadas de delicadas e minuciosas caracterizações. Como
consequência, Spotlight é, na verdade, uma das incontornáveis joias no
panorama do cinema de prestígio do ano passado e um dos melhores candidatos a
chegar ao triunfo na futura noite dos Óscares.
Spotlight retrata uma célebre investigação levada a cabo em
2001 pela equipa Spotlight do Boston Globe sobre a horrenda e sistemática
ocorrência de abusos sexuais de menores por membros do clérigo, cuja
culpabilidade era subsequentemente oculta pelos mecanismos internos da Igreja
Católica. Seguindo a tradição de incontáveis outras histórias ditas
inspiradoras que se tornam favoritos na corrida aos mais importantes prémios de
Hollywood, Spotlight relata assim uma narrativa verídica que, de momento,
não contém em si grandes controvérsias ou problemáticas morais, sendo que é
indiscutível o heroísmo dos investigadores e a importância e legitimidade ética
da sua exposição deste caso. Mesmo assim, aceitando que não há grande problematização
ideológica no cerne deste filme é justo apontar quão genial é a eficácia do
guião sobre o qual todo o filme foi desenvolvido.
Escrito por Tom McCarthy e Josh Singer, o argumento de Spotlight
é uma magistral criação de equilíbrio tonal e de sublime balanço humano,
emocional e factual. Nunca tendo sombra de dúvida da estarem no lado certo da
justiça em relação a esta narrativa, os dois autores tecem uma teia de
brilhantes personagens baseadas em contrapartes reais, e vão oferecendo
pequenas doses de informação pessoal sem caírem em demasiada exposição. As
cenas de exposição são, aliás, nunca oferecidas como caracterização declarada
mas como veículos de criarem um retrato de enganadora modéstia sobre uma
comunidade, uma cidade apoiada na sua identidade religiosa. Para além do mais,
o modo como as relações de poder económico e moral vão sendo delicadamente
reveladas, incluindo algumas verdades abrasivas sobre a realidade longe de ser
perfeita da instituição do Boston Globe, dá um toque de bem-vinda complexidade
a um filme que ameaça sempre tornar-se uma elegia inapropriadamente celebrativa
dos seus heróis centrais.
No entanto, apesar dessa ameaça, um dos melhores aspetos de Spotlight
é precisamente o modo como evita alguma vez se converter numa simplista
narrativa do herói individual, negando a qualquer uma das suas personagens o
patamar dramático de protagonista, ao invés criando uma narrativa completamente
apoiada numa omnipresente ideia de coletividade humana. Nesse aspeto, Spotlight
recordou-me um dos meus filmes prediletos de 2014, Pride, outro maravilhoso
exemplo de um guião que oferece uma perspetiva intrinsecamente humana de uma
narrativa inspiradora do passado, ao fugir aos usuais clichés de individualismo
forçado a que recorrem tantos filmes semelhantes.
Este tipo de retrato coletivo depende de modo monumental do
trabalho dos seus atores e o elenco de Spotlight não desaponta. Dirigidos
pela mão segura de Tom McCarthy, os intérpretes deste filme são uma coleção de
algumas das prestações mais modestamente consumadas de todo o ano, nunca
puxando para si a atenção do público de modo pernicioso para a abordagem geral
da obra. Liev Schreiber nunca esteve melhor, demonstrando de modo
maravilhosamente subtil a condição de constante outsider da sua personagem sem nunca perder um tom de inequívoca
autoridade. Stanley Tucci representa de modo soberbo um homem que carrega sobre
as suas costas o peso de anos a testemunhar uma inalterável injustiça
institucional apoiada no horror do sofrimento de inocentes crianças. Rachel
McAdams é o píncaro do que deve ser um ator secundário, sendo um constante
suporte da audiência nas suas reações e modo como telegrafa o seu processo de
informação. Poucas vezes um ator demonstrou tão bem o que é “ouvir”. Michael
Keaton poucas vezes esteve melhor que aqui quase que superando a sua explosiva
prestação em Birdman com uma alternativa bastante mais discreta neste filme.
Enfim, todos os atores deste imenso elenco são maravilhosos e tenho pena de não
ter a capacidade ou mesmo paciência de descrever detalhadamente o trabalho
individual de cada um.
Há, no entanto, duas instâncias que tenho de destacar pela
positiva e pela negativa, Todos os atores que interpretam as vítimas já adultas
do abuso sexual por parte dos oficiais da igreja, são espetaculares, oferecendo
variadas visões de um sobrevivente deste tipo de trauma aquando dos seus anos
formativos. Michael Cyril Creighton e destes atores quem mais se destaca e eu
diria mesmo que a sua prestação é mais admirável de todo o filme, expondo
perfeitamente as mágoas da sua personagem, sem nunca exacerbar a emoção do seu
relato ou sacrificar a dignidade do indivíduo que está a interpretar. Mark
Ruffalo é a outra figura de destaque, mas neste caso é pela negativa. Ao
contrário do resto do elenco, Ruffalo apresenta um trabalho gritado e cheio de
furiosa indignação sem sombra de modulação, oferecendo um apoio moral para um público
horrorizado pelas informações do filme mas prejudicando a abordagem de modesto
naturalismo que tanto caracteriza Spotlight enquanto uma obra
cinematográfica. Basicamente, enquanto todos os outros atores fogem ao lado
mais vistoso e melodramático deste tipo de filme inspirador de prestígio, Ruffalo
cai por completo nesses mesmos clichés para detrimento do seu trabalho e da
geral qualidade do filme.
Por muito que o argumento e o elenco sejam maioritariamente
geniais, o filme não seria o sucesso que é sem a concretização formal
possibilitada por McCarthy e a sua equipa. Nunca tendo sido um realizador com
um estilo particularmente distinto ou visível, não é de admirar quão modesta é
a formalidade de Spotlight, mas para este tipo de narrativa jornalística há algo
de perfeitamente essencial na apresentação direta e simples das histórias
humanas. Mesmo assim é de louvar o modo como o realizador evita deixar o seu
filme com a aparência de um telefilme, ao criar uma mise-en-scène fortemente apoiada em visões de coletivos humanos a
partir de planos gerais e eficientes composições de atores no frame.
Também de admirar é a formidável montagem que fazem deste
filme de mais de duas horas uma das obras mais velozes do cinema de prestígio
de 2015, nunca desperdiçando um momento que não seja essencial para a sua tese
final, quer seja em termos de informação factual ou momentos de delicada
caracterização, como alguns fugazes momentos entre membros da equipa de
investigação e as suas famílias. De igual modo, há algo de perfeitamente eficaz
mas nunca vistoso na banda-sonora de Howard Shore, que lembra as simples
composições que caracterizavam dramas semelhantes durante a década de 70. De
ainda maior destaque está, surpreendentemente, o seu design que reproduz com
sublime exatidão a Boston de 2001 com uma infinidade de pequenos detalhes
aplicados tanto ao nível da cenografia como dos figurinos.
Em resumo, a linha que Spotlight balança entre frieza clínica
na sua observação de um processo de investigação jornalística e o seu lado
humano, permitem a este filme ser uma das mais eficazes e belissimamente
concretizadas obras de cinema de prestígio de 2015. É um filme sobre um
coletivo de pessoas e sobre uma causa, mas é sagaz o suficiente para retratar
cuidadosamente cada um dos seus intervenientes, nunca vilificando ou simplificando
as pessoas envolvidas na narrativa, quer do lado dos investigadores, das vítimas,
da instituição religiosa ou mesmo dos agressores. Um triunfo modesto e limitado
pela sua respeitabilidade própria do cinema de estúdio atual, mas não por isso
menos louvável.
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