domingo, 31 de janeiro de 2016

SPOTLIGHT (2015) de Tom McCarthy


Spotlight


Filmes que se focam em histórias verídicas sobre investigações jornalísticas, ou outros tipos de cruzadas morais, têm tendência a se focarem em demasia nos mecanismos do processo de investigação e se tornarem num encadeamento de acontecimentos e factos clinicamente apresentados. Acrescente-se a isto o facto de que estamos a falar de um projeto feito com uma clara pátina de prestígio e respeitabilidade pronta para a Awards Season, e O Caso Spotlight tinha todos os ingredientes para ser um dos mais enfadonhos e medíocres filmes de 2015. Felizmente, a liderar todo o edifício deste filme está Tom McCarthy, um realizador que, excetuando o desastroso The Cobbler, sempre demonstrou um fenomenal talento para a apresentação de histórias humanas recheadas de delicadas e minuciosas caracterizações. Como consequência, Spotlight é, na verdade, uma das incontornáveis joias no panorama do cinema de prestígio do ano passado e um dos melhores candidatos a chegar ao triunfo na futura noite dos Óscares.

Spotlight retrata uma célebre investigação levada a cabo em 2001 pela equipa Spotlight do Boston Globe sobre a horrenda e sistemática ocorrência de abusos sexuais de menores por membros do clérigo, cuja culpabilidade era subsequentemente oculta pelos mecanismos internos da Igreja Católica. Seguindo a tradição de incontáveis outras histórias ditas inspiradoras que se tornam favoritos na corrida aos mais importantes prémios de Hollywood, Spotlight relata assim uma narrativa verídica que, de momento, não contém em si grandes controvérsias ou problemáticas morais, sendo que é indiscutível o heroísmo dos investigadores e a importância e legitimidade ética da sua exposição deste caso. Mesmo assim, aceitando que não há grande problematização ideológica no cerne deste filme é justo apontar quão genial é a eficácia do guião sobre o qual todo o filme foi desenvolvido.




Escrito por Tom McCarthy e Josh Singer, o argumento de Spotlight é uma magistral criação de equilíbrio tonal e de sublime balanço humano, emocional e factual. Nunca tendo sombra de dúvida da estarem no lado certo da justiça em relação a esta narrativa, os dois autores tecem uma teia de brilhantes personagens baseadas em contrapartes reais, e vão oferecendo pequenas doses de informação pessoal sem caírem em demasiada exposição. As cenas de exposição são, aliás, nunca oferecidas como caracterização declarada mas como veículos de criarem um retrato de enganadora modéstia sobre uma comunidade, uma cidade apoiada na sua identidade religiosa. Para além do mais, o modo como as relações de poder económico e moral vão sendo delicadamente reveladas, incluindo algumas verdades abrasivas sobre a realidade longe de ser perfeita da instituição do Boston Globe, dá um toque de bem-vinda complexidade a um filme que ameaça sempre tornar-se uma elegia inapropriadamente celebrativa dos seus heróis centrais.

No entanto, apesar dessa ameaça, um dos melhores aspetos de Spotlight é precisamente o modo como evita alguma vez se converter numa simplista narrativa do herói individual, negando a qualquer uma das suas personagens o patamar dramático de protagonista, ao invés criando uma narrativa completamente apoiada numa omnipresente ideia de coletividade humana. Nesse aspeto, Spotlight recordou-me um dos meus filmes prediletos de 2014, Pride, outro maravilhoso exemplo de um guião que oferece uma perspetiva intrinsecamente humana de uma narrativa inspiradora do passado, ao fugir aos usuais clichés de individualismo forçado a que recorrem tantos filmes semelhantes.




Este tipo de retrato coletivo depende de modo monumental do trabalho dos seus atores e o elenco de Spotlight não desaponta. Dirigidos pela mão segura de Tom McCarthy, os intérpretes deste filme são uma coleção de algumas das prestações mais modestamente consumadas de todo o ano, nunca puxando para si a atenção do público de modo pernicioso para a abordagem geral da obra. Liev Schreiber nunca esteve melhor, demonstrando de modo maravilhosamente subtil a condição de constante outsider da sua personagem sem nunca perder um tom de inequívoca autoridade. Stanley Tucci representa de modo soberbo um homem que carrega sobre as suas costas o peso de anos a testemunhar uma inalterável injustiça institucional apoiada no horror do sofrimento de inocentes crianças. Rachel McAdams é o píncaro do que deve ser um ator secundário, sendo um constante suporte da audiência nas suas reações e modo como telegrafa o seu processo de informação. Poucas vezes um ator demonstrou tão bem o que é “ouvir”. Michael Keaton poucas vezes esteve melhor que aqui quase que superando a sua explosiva prestação em Birdman com uma alternativa bastante mais discreta neste filme. Enfim, todos os atores deste imenso elenco são maravilhosos e tenho pena de não ter a capacidade ou mesmo paciência de descrever detalhadamente o trabalho individual de cada um.

Há, no entanto, duas instâncias que tenho de destacar pela positiva e pela negativa, Todos os atores que interpretam as vítimas já adultas do abuso sexual por parte dos oficiais da igreja, são espetaculares, oferecendo variadas visões de um sobrevivente deste tipo de trauma aquando dos seus anos formativos. Michael Cyril Creighton e destes atores quem mais se destaca e eu diria mesmo que a sua prestação é mais admirável de todo o filme, expondo perfeitamente as mágoas da sua personagem, sem nunca exacerbar a emoção do seu relato ou sacrificar a dignidade do indivíduo que está a interpretar. Mark Ruffalo é a outra figura de destaque, mas neste caso é pela negativa. Ao contrário do resto do elenco, Ruffalo apresenta um trabalho gritado e cheio de furiosa indignação sem sombra de modulação, oferecendo um apoio moral para um público horrorizado pelas informações do filme mas prejudicando a abordagem de modesto naturalismo que tanto caracteriza Spotlight enquanto uma obra cinematográfica. Basicamente, enquanto todos os outros atores fogem ao lado mais vistoso e melodramático deste tipo de filme inspirador de prestígio, Ruffalo cai por completo nesses mesmos clichés para detrimento do seu trabalho e da geral qualidade do filme.




Por muito que o argumento e o elenco sejam maioritariamente geniais, o filme não seria o sucesso que é sem a concretização formal possibilitada por McCarthy e a sua equipa. Nunca tendo sido um realizador com um estilo particularmente distinto ou visível, não é de admirar quão modesta é a formalidade de Spotlight, mas para este tipo de narrativa jornalística há algo de perfeitamente essencial na apresentação direta e simples das histórias humanas. Mesmo assim é de louvar o modo como o realizador evita deixar o seu filme com a aparência de um telefilme, ao criar uma mise-en-scène fortemente apoiada em visões de coletivos humanos a partir de planos gerais e eficientes composições de atores no frame.

Também de admirar é a formidável montagem que fazem deste filme de mais de duas horas uma das obras mais velozes do cinema de prestígio de 2015, nunca desperdiçando um momento que não seja essencial para a sua tese final, quer seja em termos de informação factual ou momentos de delicada caracterização, como alguns fugazes momentos entre membros da equipa de investigação e as suas famílias. De igual modo, há algo de perfeitamente eficaz mas nunca vistoso na banda-sonora de Howard Shore, que lembra as simples composições que caracterizavam dramas semelhantes durante a década de 70. De ainda maior destaque está, surpreendentemente, o seu design que reproduz com sublime exatidão a Boston de 2001 com uma infinidade de pequenos detalhes aplicados tanto ao nível da cenografia como dos figurinos.



Em resumo, a linha que Spotlight balança entre frieza clínica na sua observação de um processo de investigação jornalística e o seu lado humano, permitem a este filme ser uma das mais eficazes e belissimamente concretizadas obras de cinema de prestígio de 2015. É um filme sobre um coletivo de pessoas e sobre uma causa, mas é sagaz o suficiente para retratar cuidadosamente cada um dos seus intervenientes, nunca vilificando ou simplificando as pessoas envolvidas na narrativa, quer do lado dos investigadores, das vítimas, da instituição religiosa ou mesmo dos agressores. Um triunfo modesto e limitado pela sua respeitabilidade própria do cinema de estúdio atual, mas não por isso menos louvável.


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