Com A Rapariga Dinamarquesa nos cinemas,
e a minha aversão por todo o projeto claramente exposto na crítica que fiz do
filme para a Magazine HD, apeteceu-me relembrar outro filme de Tom Hooper, um
realizador de televisão que, nos últimos 5 anos catapultou para um estrelato
completamente díspar do seu nível de talento. Consequentemente decidi
finalmente falar da adaptação de 2012 de Les Misérables, o musical por sua
vez adaptado da obra-prima de Victor Hugo. Aviso já que isto não vai ser um
texto de modo algum breve.
Descrever o enredo de Les Misérables é uma tarefa de fútil
ambição pelo que não me vou aventurar por tão nobre perda de tempo. Julgo
também que quem está a ler este meu texto já tenha alguma pequena ideia da
história da magnum opus de Victor
Hugo, adaptada inúmeras vezes ao cinema, e aos palcos, sob a forma de um dos
musicais épicos que caracterizaram o teatro comercial dos anos 80. O filme de
Tom Hooper de que nos propormos aqui falar, é uma adaptação dessa mesma versão
musical dos palcos, concebida por Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg.
Tanto Boublil como Schönberg, em conjunto com Herbert
Kretzmer e William Nicholson, escreveram a adaptação do seu musical,
construindo um guião que proporciona aquela que é talvez a melhor versão
cinematográfica da obra de Victor Hugo até agora criada numa língua que não a
francesa. A adaptação é um dos melhores aspetos do filme, mesmo superior ao seu
muito elogiado elenco, resolvendo vários problemas estruturais que o espetáculo
teatral tinha ao reorganizar canções e injetar uma montanha de pormenores e
momentos retirados diretamente do texto de Hugo. O trabalho final é um
monumento de exímia adaptação, que pode não conter muitas das complexidades
presentes na épica criação de um dos maiores génios da literatura francesa, mas
faz um espetacular trabalho de sintetizar algumas das suas ideias principais e
conceber uma versão elegantemente sumária da sua extensa narrativa.
E é aqui que eu tenho de estender o meu olhar a algo que não
o filme, mas sim a reação generalizada que o tem perseguido desde a sua
passagem pelos cinemas no final de 2012 e princípio de 2013. Duas críticas que
foram constantemente atiradas ao filme de Tom Hooper sempre me deixaram
imensamente irritado sendo elas a queixa de que o filme é cantado do princípio
ao fim, e de que o enredo é melodramático e cheio de convolutas coincidências e
emocionalmente ridículo no seu exagerado dramatismo. Quem quer que sinta o
mesmo que as pessoas responsáveis por promulgarem essa segunda odiosa crítica
estiver a ler, por favor deixe este blog neste momento. Obrigado. Pois acusar o
esqueleto do enredo de ser melodramático, lamechas, ridículo é estar a insultar
uma das maiores histórias alguma vez concebidas nos anais da literatura
ocidental e aqui ninguém vai insultar o génio de Victor Hugo!
O filme funciona sobre uma base de emoções fortemente
expressas e é construído a partir de um complicado enredo cheio de pulsante e
declarativa fúria e isso é, para mim, uma das suas mais gloriosas qualidades. O
texto de Hugo é abertamente uma expressão de raiva contra as injustiças sociais
da época, um tratado humanista e fortemente político que substitui a elegância
da retórica, que hoje em dia parece ser a escolha de eleição de tais obras de
arte políticas, pela operática e ensandecida fúria ativista, onde subtileza é
deixada para trás em prol de grandiosa e pulsante humanidade. Há algum problema
com isso? Não. Eu diria mesmo que o filme deveria ter ido mais longe na sua
lacrimosa e exagerada expressividade, mas tal como a obra de teatro, esta
adaptação cinematográfica decide retirar muito do conteúdo mais abertamente
político da narrativa de Les Misérables, mas tem a sagacidade
de perceber que algo que não se poderá perder é o básico e poderoso humanismo
da prosa de Victor Hugo, algo que é graciosamente inseparável da versão final
deste filme, que é das poucas adaptações a perceber a importância espiritual e
humana do sacrifício dos estudantes idealistas na sua segunda metade.
A outra crítica que mencionei é algo que, se possível,
desperta ainda mais fúria e indignação na minha pessoa, especialmente quando
vem da boca de um suposto cinéfilo. Les Misérables é um musical e como
tal traz consigo uma série de convenções do seu género, nomeadamente a que, do
nada, as pessoas se comecem a expressar em canção. Ver um musical e queixar-se
da quantidade de músicas é para mim tão ridículo como ver um filme de terror e
criticar a quantidade de sustos que provocou, ou dizer que uma comédia é
demasiado divertida ou um filme de ação contém demasiados momentos de ação. Eu
diria mesmo que o filme devia ser ainda mais cantado do que é, sendo que ainda
existem algumas réstias de diálogo falado pelo meio da sua duração.
O cinema, mesmo nos mais crus dos documentários, é sempre
uma construção artificial pelo que criticar musicais como sendo irrealistas ou
ridículos é mais um sinal de gosto pessoal e generalizado do que qualquer
válida asserção crítica, mas infelizmente esta não é uma opinião que muitos
partilhem. Ao ser cantado do princípio ao fim, Les Misérables
posiciona-se precisamente num mundo, numa realidade, em que tal expressão
cantada não é mera decoração ou momento de espetacular distração como acontece
com muitos musicais de outrora, mas sim uma parte integral do modo como toda a
narrativa se desenvolve. E neste musical em particular, a música nunca deveria
ser mera decoração, mas sim uma parte orgânica de toda a construção épica, pelo
que não vejo qualquer tipo de problema na insistência dos cineastas em terem
mantido a natureza sung-through do
espetáculo original.
Depois de toda esta apaixonada defesa chegou a altura de eu
também começar a fazer as minhas observações depreciativas do filme,
nomeadamente no que diz respeito ao trabalho do seu realizador, Tom Hooper.
Talvez a mais falada e publicitada escolha do realizador inglês tenha sido a
sua decisão de gravar o som em simultâneo com a imagem em todas as ocasiões,
renunciando ao playback e
pré-gravação dos números musicais que tem sido a norma no cinema musical desde
a sua génese. Isto permite um maior controlo e maleabilidade da parte dos
atores, que, segundo Hooper, assim conseguem realmente interpretar as suas
canções, do mesmo modo que interpretariam qualquer outro tipo de cena de um
filme que não um musical. De um modo geral, esta abordagem funciona de modo
formidável, resultando numa abordagem verdadeiramente cinematográfica ao
material teatral. As performances vocais deste filme estão longe de serem as
elegantes e polidas rendições típicas dos palcos da Broadway e do West End mas
são perfeitas para o tipo de abordagem expressivamente trágica que Hooper tomou
na sua direção de atores.
Tom Hooper é um realizador de emoções exteriorizadas em
momentos de gritada expressão e, muito mais que em A Rapariga Dinamarquesa
ou O
Discurso do Rei, esse estilo encontra o seu perfeito companheiro no
material narrativo de Les Misérables. Pelo menos no que
diz respeito ao trabalho dos atores e ao desenvolver do complexo enredo humano,
pois de um ponto de vista formal o filme é apenas prejudicado pelas decisões do
seu realizador. Habituado à televisão, Hooper tem uma curiosa insistência em
ignorar que está a trabalhar para um meio com proporções bastante distintas,
usando constantes grandes planos da cara dos atores, ângulos tortos por nenhuma
razão aparente, grandes angulares grotescas e composições que apenas funcionam
em escalas diminutas mas que revelam desconfortáveis desequilíbrios visuais
quando apresentados numa tela de cinema. Junte-se a isto um irritante apego por
indisciplinada câmara ao ombro e temos uma perfeita receita para o desastre.
Na sua procura por exacerbar o trabalho individual de cada
ator, Hooper parece ter-se também esquecido que Les Misérables, apesar da
sua relação com a narrativa de Jean Valjean, não é uma celebração de histórias
de heróis individuais, mas sim um enfurecido retrato de uma sociedade. Hooper
nunca permite tal coletividade no seu filme, construindo mesmo os momentos mais
epicamente dependentes da ação da multidão, a partir de grandes-planos
sucessivos. Há uma desajeitada aparência a todo o filme que é somente culpa de
Hooper que, para além de todos os erros que comete, parece estar sempre a trair
os seus próprios instintos de grandiosidade, ao filmar os enormes cenários de
tal modo que a sua colossal escala nunca de torna verdadeiramente discernível
para a audiência.
Enfim, no final, Les Misérables funciona apesar de
Tom Hooper, mas nunca devido ao seu trabalho.
Passemos a temas mais agradáveos e vamos falar do elenco,
das personagens e de alguns dos números musicais. Para começar, temos a atriz
que arrecadou um dos únicos três óscares que o filme arrecadou, Anne Hathaway
como Fantine, a mártir de amor maternal que se vê destruída pelas catastróficas
injustiças sociais na França do princípio do século XIX.
Muitos diriam que a melhor Fantine musical de sempre foi
Patti LuPone, a grande diva que originou o papel nos palcos ingleses. Para mim,
LuPone nunca conseguiu transmitir nenhuma sugestão credível da enorme
fragilidade necessária para que Fantine funcione como personagem pelo que a
minha atriz predileta neste papel foi, durante muitos anos, Ruthy Henshel, que
tem uma magnífica dignidade na sua abordagem que, mesmo assim, trai uma
colossal vulnerabilidade. Anne, ao contrário das suas antecessoras, deixa-se
levar pela degradação da personagem. Ela não é a nobre e injustiçada vítima de
Hugo, mas sim a selvagem visão de miséria e injustiça social que está sempre subjacente
no texto. Anne é a mais furiosa Fantine que o cinema já viu e por isso ela
merece admiração. Também há que dizer que ela é absolutamente perfeita para a
abordagem estilística de Hooper, basta observarmos o célebre “I Dreamed a Dream”
para isso se tornar evidente. Mesmo assim, para mim, o seu melhor momento é,
sem dúvida, a sua prestação aquando da canção “Fantine’s Arrest”, um momento
que poucas vezes foi tão rico em rancor e aberta agressividade. Na sua Fantine
em feia e desesperada luta pela sobrevivência, Hathaway encontra um tipo de
dignidade diferente da elegância de Henshey, do orgulho de LuPone ou da
santidade de Lea Salonga. Francamente, apesar de todo o ódio que sobre ela
caiu, Anne Hathway mereceu o Óscar que recebeu, assim como a
montanha de outros galardões da Awards Season de 2012.
Apesar da relativa importância de Fantine, o centro de Les
Misérables é Jan Valjean. Hugh Jackman é um consumado ator de teatro musical
pelo que seria de esperar grandeza da sua parte na encarnação deste formidável
protagonista. De um modo geral o ator australiano é bastante bom com alguns
vislumbres de pura genialidade como no seu solilóquio, mas, infelizmente, ele
tem uma estranha tendência para esforçar em demasia a sua voz. Talvez tenha
sido um acidente, ou uma escolha propositada, o facto é que, especialmente em “Bring
Him Home”, uma canção praticamente impossível de cantar na melhor das
circunstâncias, Jackman tem tendência a cair num esforço que trai a nobreza e
força inerente à personagem escrita por Victor Hugo. Também se poderia acusar o
ator de simplificar a complexidade da personagem literária, mas isso é algo
presente desde a primeira vez que este musical foi posto em palco e é uma invariável
necessidade dramática. Quando Jackman está nos seus melhores momentos, no
entanto, ele rivaliza mesmocom Fredric March como melhor representação em
língua inglesa desta mítica personagem.
O mesmo não se pode dizer de Russell Crowe como Javert, a
figura mais abertamente antagónica de Les Misérables. O ator está
completamente perdido neste musical, não tendo a autoridade bárbara de outros intérpretes
passados da personagem, ou o desespero que Jackman e Hathaway conferem aos seus
retratos. Vocalmente ele é um desastre, conseguindo apenas verdadeiramente convencer
num dos seus números que está bastante alterado do seu registo original em
palco. “Stars” cantado por Crowe torna-se numa solene prece aos céus e não num
grito de fúria e autorreflexão, o que é perfeito para a modesta abordagem do
ator e para o momento na estrutura do filme. Infelizmente, Crowe não consegue
fazer o mesmo com o seu climático número final, o que desfere um grande golpe
contra a geral qualidade do edifício do filme.
Cosette é uma espécie de McGuffin da narrativa, movendo todo
o enredo de Les Misérables, apesar de ser pouco mais que um vago símbolo de
pureza. Sophie Allen é maravilhosa como a encarnação mais jovem da personagem e
muito mais interessante que a versão adulta de Amanda Seyfried, que nunca
consegue elevar o que é, de modo geral, um papel bastante problemático. Mesmo
assim, há uma refrescante doçura na sua abordagem. Ela é simplista e
bidimensional, mas o texto não pede mais, e nos seus momentos finais, é
fenomenal como veiculo para a derradeira catarse emocional do filme.
De Cosette passamos ao seu amado, Marius Montpercy, uma
personagem tão alterada na sua adaptação teatral, que pouco tem do jovem
napoleónico, orgulhoso e levemente obcecado do livro de Hugo. Eddie Redmayne, o
ator escolhido para este papel, é, no entanto, fantástico. A versão teatral de
Marius sempre foi um papel em necessidade de uma forte dose de inocência e
juventude, algo rico no trabalho de Redmayne que pinta a sua personagem como um
adolescente confuso inserido no meio de um apocalipse inesperado. O ator é tão
bom na sua adocicada rendição de “In My Life”, como na sua gentilmente atrapalhada
versão de “A Heart Full of Love” e como é absolutamente devastador no mais
importante número musical da personagem, “Empty Chairs at Empty Tables”.
A terceira figura que completa o triângulo amoroso também construído
por Cosette e Marius é Éponine, outra personagem fortemente alterada desde as
suas raízes literárias. Sinceramente, poucas ou nenhuma adaptação alguma vez
conseguiu traduzir a personagem que Hugo escreveu, acabando sempre por haver uma
forte simplificação de uma personagem que é tão trágica como repugnante e dolorosamente
humana. Da versão teatral, Kaho Shimada será sempre a minha eterna Éponine, mas
Samantha Barks é uma escolha igualmente soberba para esta adaptação ao cinema. Mais
do que qualquer outro intérprete do filme, ela cria um formidável balanço entre
exagerada teatralidade e subtileza cinematográfica, completamente roubando o
filme de cada vez que abre a boca para cantar.
De Éponine passemos à sua família, o seu irmão Gavroche e
seus pais, os vis Thénardier. Daniel Huttlestone como Gavroche é uma escolha
imensamente apropriada, sendo que o jovem ator quase que se cimenta como o
melhor intérprete do papel, trazendo o certo nível de charme, carisma e
traquinice motivada por desespero para tornar a personagem inesquecível.
Monsieur e Madame Thénardier, figuras cómicas ao contrário das suas horrendas
contrapartes literárias, são da responsabilidade de Sacha Baron Cohen e Helena
Bonham Carter, dois atores imensamente incapazes de responderem adequadamente
às exigências vocais dos seus papéis. Cohen tem o acrescentado problema de ter
o melhor momento da sua personagem, a canção “Dog Eats Dog”, cortado do filme. Mesmo
assim, “Master of the House” é agradavelmente divertido, mas falta alguma da
acidez e jovialidade meio perniciosa nas personagens. Enfim, juntamente com
Crowe estes dois são inegavelmente os mais fracos elementos do elenco.
Mas não são os Thénardier que marcam a segunda metade do
filme, nem mesmo Marius, para dizer bem a verdade, mas sim os Les Amis de l’ABC
(Victor Hugo adorava trocadilhos de palavras). Deles é o seu luminoso líder
quem mais se destaca, Enjolras interpretado por Aaron Tveit. O ator americano,
experiente em teatro musical, é formidável como Enjolras, exacerbando o
caracter implacável da personagem de Hugo, deixando ao seu carisma natural e
presença de estrela, o trabalho de traduzirem a adoração quase religiosa que a sua
personagem inspira nos que o rodeiam. Poucos Enjolras são tão belos e
simultaneamente enraivecidos como o de Tveit, que, apesar de estrondoso, não
consegue apagar da memória a genialidade sedutora de Ramin Karimloo no mesmo
papel. É claro que o ator de origens iranianas teria sido inapropriado para
esta adaptação que pretende traduzir com algum semblante de fidelidade o texto
de Hugo e suas descrições, pelo que Tveit é, possivelmente, a escolha perfeita.
De qualquer modo, ele é estrondoso, especialmente nos momentos mais tardios da história,
quando a esperança de sobreviver se começa a desvanecer, e a impetuosa
imaturidade da sua personagem se começa a vislumbrar por detrás da fachada de
um líder de aparência quase divina.
O resto do elenco que compõe este grupo de estudantes
revolucionários é igualmente bem escolhido apesar da diminuta dimensão das suas
contribuições, com a gloriosa exceção de Georgle Blagden como Grantaire, o cínico
alcoólico meio enamorado pala luminosa presença de Enjolras, que no final,
morre ao lado do seu líder. O ator é uma presença refrescante cada vez que tem
oportunidade de roubar um pouco do holofote que está sempre sobre os seus
companheiros de cena, mas, infelizmente, o grande momento que a personagem tem
no espetáculo, é-lhe roubado na adaptação cinematográfica. Teremos sempre
Hadley Fraser a cantar “Drink with Me”, mas é pena que o filme encurte um dos
mais belos momentos do musical, onde a melancolia fatalista que envolve todos
os jovens revolucionários de Vitor Hugo chega ao seu apogeu dramático antes da
sua trágica destruição.
Por falar no grandioso Hadley Fraser, o ator chega a fazer
uma minúscula contribuição a esta versão de Les Misérables como um
dos soldados que atacam os revoltosos estudantes, sendo apenas um de vários
atores de teatro que aparecem em cameos
pelo filme. O mais espetacular destes fugazes aparecimentos de um ator do palco
é certamente o de Colm Wikinson, o original Valjean, como o Bispo, cuja influência,
tanto no livro como na peça, é incalculável. Há uma magnífica benevolência e
respeitabilidade na sua pequena performance que planta as sementes para a
estrondosa redenção espiritual de Jean Valjean, sem as quais o filme não
funcionaria.
Abandonando esta (desnecessariamente?) extensa análise do
elenco, formalmente o filme é imensamente inconsistente, se geralmente eficaz.
Já aqui falei das desastrosas escolhas fotográficas de Hooper e do seu diretor
de fotografia, mas tal não é auxiliado pela indisciplinada montagem que, para
além de desnecessariamente apressada, tem momentos de pura incompetência, como
numa das primeiras confrontações entre Valjean e Javert.
A concretização visual do mundo de Les Misérables, apesar de
mal fotografada, é impressionante. Os cenários estão repletos de texturas e
ricos em preciosos detalhes que muitas vezes reforçam as escolhas dramatúrgicas
apontadas pelo texto. Apenas o cenário da Rue Plumet, onde se constrói a
barricada dos estudantes aquando da Revolta de 1832, deixa um pouco a desejar,
nunca deixando de parecer um cenário construído dentro das paredes de um
estúdio. A caracterização premiada pela Academia de Hollywood e os figurinos de
Paco Delgado são igualmente exímios, especialmente no que diz respeito à
construção de cuidadas narrativas cromáticas ao longo do filme a partir das
roupas do enorme elenco. E, como fã da obra de Victor Hugo, adoro os detalhes,
retirados do livro mas nunca explícitos pelo texto do filme, que marca presença
nas criações de Delgado.
É claro que num musical, ainda mais importante que a
concretização visual é o som. Já referi a sensata e tecnicamente aventurosa
escolha de fugir ao playback, mas
tenho de realçar também a maravilhosa e opulente orquestração feita à música do
musical de teatro. O filme, somente pela sua grandiosa banda-sonora, ganha uma
qualidade épica apenas rivalizada pela adaptação de Raymon Bernard da obra de
Hugo.
Eu tenho perfeita noção que mostro imensa dificuldade em ter
uma visão minimamente objetiva deste filme, mas Les Misérables tem um
lugar demasiado grande no meu coração. O projeto na sua forma final é um filme
problemático, disso não há dúvida, mas, mesmo assim, o impacto que tem em mim,
como membro da audiência é incalculável. Especialmente no final, nunca consiga
evitar ser arrebatado pela forte espiritualidade da resolução, pela apaixonante
qualidade da música, pela humanidade das personagens. Basicamente, nunca consigo
evitar desfazer-me em lágrimas e, mesmo que seja só desta vez, tenho de
abandonar quaisquer pretensões de sofisticação intelectual e simplesmente
celebrar a potente reação emocional que esta obra de cinema consegue em mim
despertar.
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