domingo, 3 de janeiro de 2016

LOVE & MERCY (2014) de Bill Pohlad

Love & Mercy


Quem já tiver lido uma certa quantidade de textos deste blog já se deverá ter apercebido que eu tenho um especial ódio por filmes biográficos. Esse é um subgénero que, muito raramente, consegue revelar algum retrato fascinante e bem conseguido mas que, na maioria dos casos, apenas oferece às suas audiências filmes pejados de fórmulas baratas e clichés desinspirados, destruindo qualquer interesse que as suas origens verídicas possam ter com uma montanha de perniciosos convencionalismos. Será justo dizer que eu não sou um espectador que caminha para um filme biográfico com expetativas de ver uma obra de qualidade, pelo que, quando esse raro milagre ocorre, há que celebrar a sua existência. Basicamente, isto é uma forma de introduzir a minha opinião muito pouco característica sobre Love & Mercy.

Um filme biográfico já seria mau o suficiente, mas um que se foca num artista genial e incompreendido, num músico com problemas mentais, e que se divide em várias épocas entrecortadas de modo meio desordenado… Nada disto é um bom agoiro, mas, Love & Mercy supera todas estas fragilidades, afirmando-se como uma das melhores surpresas do ano, e como um retrato curiosamente humano de uma das figuras mais brilhantes do panorama da música popular americana da segunda metade do século passado.


Love & Mercy


O filme propõe-se retratar Brian Wilson, um dos membros dos célebres Beach Boys e considerado como o verdadeiro génio artístico desse grupo musical. Love & Mercy não é aquele típico filme biográfico que tenta condensar uma vida inteira, da infância à velhice, sendo que a sua estrutura narrativa divide o retrato de Wilson em dois momentos fulcrais na sua vida. Um deles é a criação de alguns dos seus maiores êxitos no final da década de 60, ao que se seguiu o início da sua queda em desgraça devido aos seus problemas mentais. A outra metade da história passa-se vários anos depois, na década da 80, quando Wilson se encontrava praticamente prisioneiro do seu médico, o vil Eugene Landy (Paul Giamatti), tendo sido salvo pela mulher por quem acabou por se apaixonar, Melinda Ledbetter (Elizabeth Banks).

O guião de Oren Moverman e Michael A. Lerner e a realização de Bill Pohlad ajudam no sucesso do filme, apresentando uma grande inteligência na sua abordagem face ao seu complicado sujeito, mas a grande razão pela qual Love & Mercy se revela como um dos melhores filmes biográficos dos últimos tempos é, certamente, o trio de sublimes prestações sobre o qual todo o edifício do projeto se desenvolve. Os atores em questão são Paul Dano e John Cusack como Brian Wilson e Elizabeth Banks, um grupo de nomes que, até este ano, nunca me tinha despertado grande interesse ou admiração.


Love & Mercy Elizabeth Banks


Deste trio, a mais luminosa presença é certamente Elizabeth Banks como uma cifra estranhamente sedutora. A função narrativa dela é completamente secundária, mas a atenção que o filme lhe concede e que o carisma de Banks lhe exige, fazem de Melinda uma deliciosa coprotagonista. De um papel que textualmente não é particularmente complexo, Banks cria uma mulher que vibra com uma interioridade palpável, uma presença fortemente humana que nunca se deixa reduzir a uma simples fórmula. O modo como a atriz demonstra a preocupação e fascínio tornarem-se em genuíno amor e carinho pelo sujeito biográfico é particularmente louvável.

Banks e a sua personagem são, na verdade, tão importantes para a sua metade do filme que, no final, o Brian Wilson de John Cusack quase que apenas é registado a partir do prisma da perspetiva subjetiva de Melinda. Isto deveria induzir uma pessoa que não tenha visto o filme a assumir que Cusack está particularmente perdido no papel, mas nada poderia estar mais longe da verdade. O ator demonstra uma imensa sagacidade, criando um dos mais modestos e calmos retratos de um doente mental nos anais do recente cinema biográfico. O trabalho de John Cusack está longe de ser vistoso mas é imensamente tocante e eficaz, concedendo a todo o filme uma inteligência e humanidade que seriam extintas por qualquer outro ator que abordasse este papel como uma oportunidade para inapropriadamente expor os seus talentos e carisma.


Love & Mercy Paul Dano


Paul Dano interpreta uma versão bastante distinta de Wilson. O seu Brian é uma temperada tempestade de tiques, rasgos de inspiração artística e uma fervente mistura de abominável insegurança e dolorosa introversão. É um testamento ao trabalho do ator que, quando o filme exige que Brian comece a exteriorizar a ameaça latente dos seus problemas mentais, Dano nunca se torna demasiado vistoso, mantendo sempre presente a comovente humanidade da sua personagem.

Parte do génio de Love & Mercy está mesmo no modo como não oferece à audiência respostas a todas as perguntas que levanta, nomeadamente o modo como o genial e vibrantemente nervoso Brian de Dano se converteu no cabisbaixo e quase apático Brian de Cusack. O guião e os atores são os principais responsáveis por esta qualidade, sendo que, por vezes, a montagem do filme parece demonstrar consideráveis problemas em estabelecer subtis ligações entre as duas épocas.


Love & Mercy


O visual do filme também nunca ultrapassa a pura competência, apesar de algumas escolhas fotográficas demonstrarem uma certa impetuosidade estilística. A verdadeira estrela da concretização formal de Love & Mercy é, como seria de esperar, o seu som. A banda-sonora é um milagre de apropriação, reinterpretação e desconstrução da música dos Beach Boys feita pelo magistral Atticus Ross e a sonoplastia apenas vai exacerbando os epítetos de celestial musicalidade conferidos pelo contexto narrativo. Apenas em alguns momentos é que o expressionismo sonoro se torna demasiado enfático, como numa infeliz cena de refeição, sendo que, na generalidade, os esforços sonoplásticos da equipa de Love & Mercy são dos mais admiráveis trabalhos técnicos de todo o ano cinematográfico. Algumas das alucinações auditivas de Wilson representam uns dos melhores momentos de todo o filme, inserindo uma subjetividade tão espetacular como assustadora a toda a experiência, e brilhando em particular quando são mais subtis que agressivas.

Este filme não é, de todo, perfeito, sendo que um dos seus maiores problemas é o modo como é impossível ignorar que esta é uma biografia aprovada pelos intervenientes verídicos. Há uma constante segurança no retrato das personagens e uma abordagem extremamente polida, que, apesar do formidável trabalho do elenco, não possibilitam retratos particularmente multidimensionais. O fim da porção de Cusack e Banks é particularmente irritante na sua perfeita e feliz conclusão sem grandes oportunidades de mostrar as complexidades que deverão existir na história real. Infelizmente, no final, a experiência total de Love & Mercy tende a ser um pouco prosaica.


Love & Mercy John Cusack



Apesar de algumas consideráveis limitações, Love & Mercy continua a ser uma das mais agradáveis surpresas do ano que, apesar de estar longe de ser essencial, é uma gentil concretização de uma história que poderia ter facilmente caído num insuportável cliché. No entanto, para fãs de qualquer um dos membros do elenco principal, o filme é indispensável, sendo que representa os píncaros profissionais e artísticos de Dano, Banks e mesmo de Cusack, que se provou profundamente formidável em mais do que um filme de 2015.


Sem comentários:

Enviar um comentário