Quem já tiver lido uma certa quantidade de textos deste blog
já se deverá ter apercebido que eu tenho um especial ódio por filmes
biográficos. Esse é um subgénero que, muito raramente, consegue revelar algum
retrato fascinante e bem conseguido mas que, na maioria dos casos, apenas
oferece às suas audiências filmes pejados de fórmulas baratas e clichés
desinspirados, destruindo qualquer interesse que as suas origens verídicas
possam ter com uma montanha de perniciosos convencionalismos. Será justo dizer
que eu não sou um espectador que caminha para um filme biográfico com
expetativas de ver uma obra de qualidade, pelo que, quando esse raro milagre ocorre,
há que celebrar a sua existência. Basicamente, isto é uma forma de introduzir a
minha opinião muito pouco característica sobre Love & Mercy.
Um filme biográfico já seria mau o suficiente, mas um que se
foca num artista genial e incompreendido, num músico com problemas mentais, e que
se divide em várias épocas entrecortadas de modo meio desordenado… Nada disto é
um bom agoiro, mas, Love & Mercy supera todas estas fragilidades, afirmando-se
como uma das melhores surpresas do ano, e como um retrato curiosamente humano
de uma das figuras mais brilhantes do panorama da música popular americana da
segunda metade do século passado.
O filme propõe-se retratar Brian Wilson, um dos membros dos
célebres Beach Boys e considerado como o verdadeiro génio artístico desse grupo
musical. Love & Mercy não é aquele típico filme biográfico que tenta
condensar uma vida inteira, da infância à velhice, sendo que a sua estrutura
narrativa divide o retrato de Wilson em dois momentos fulcrais na sua vida. Um
deles é a criação de alguns dos seus maiores êxitos no final da década de 60,
ao que se seguiu o início da sua queda em desgraça devido aos seus problemas
mentais. A outra metade da história passa-se vários anos depois, na década da
80, quando Wilson se encontrava praticamente prisioneiro do seu médico, o vil Eugene
Landy (Paul Giamatti), tendo sido salvo pela mulher por quem acabou por se apaixonar,
Melinda Ledbetter (Elizabeth Banks).
O guião de Oren Moverman e Michael A. Lerner e a realização
de Bill Pohlad ajudam no sucesso do filme, apresentando uma grande inteligência
na sua abordagem face ao seu complicado sujeito, mas a grande razão pela qual Love
& Mercy se revela como um dos melhores filmes biográficos dos
últimos tempos é, certamente, o trio de sublimes prestações sobre o qual todo o
edifício do projeto se desenvolve. Os atores em questão são Paul Dano e John
Cusack como Brian Wilson e Elizabeth Banks, um grupo de nomes que, até este
ano, nunca me tinha despertado grande interesse ou admiração.
Deste trio, a mais luminosa presença é certamente Elizabeth
Banks como uma cifra estranhamente sedutora. A função narrativa dela é
completamente secundária, mas a atenção que o filme lhe concede e que o carisma
de Banks lhe exige, fazem de Melinda uma deliciosa coprotagonista. De um papel
que textualmente não é particularmente complexo, Banks cria uma mulher que vibra
com uma interioridade palpável, uma presença fortemente humana que nunca se
deixa reduzir a uma simples fórmula. O modo como a atriz demonstra a preocupação
e fascínio tornarem-se em genuíno amor e carinho pelo sujeito biográfico é
particularmente louvável.
Banks e a sua personagem são, na verdade, tão importantes
para a sua metade do filme que, no final, o Brian Wilson de John Cusack quase
que apenas é registado a partir do prisma da perspetiva subjetiva de Melinda.
Isto deveria induzir uma pessoa que não tenha visto o filme a assumir que
Cusack está particularmente perdido no papel, mas nada poderia estar mais longe
da verdade. O ator demonstra uma imensa sagacidade, criando um dos mais
modestos e calmos retratos de um doente mental nos anais do recente cinema
biográfico. O trabalho de John Cusack está longe de ser vistoso mas é
imensamente tocante e eficaz, concedendo a todo o filme uma inteligência e
humanidade que seriam extintas por qualquer outro ator que abordasse este papel
como uma oportunidade para inapropriadamente expor os seus talentos e carisma.
Paul Dano interpreta uma versão bastante distinta de Wilson.
O seu Brian é uma temperada tempestade de tiques, rasgos de inspiração
artística e uma fervente mistura de abominável insegurança e dolorosa
introversão. É um testamento ao trabalho do ator que, quando o filme exige que
Brian comece a exteriorizar a ameaça latente dos seus problemas mentais, Dano
nunca se torna demasiado vistoso, mantendo sempre presente a comovente
humanidade da sua personagem.
Parte do génio de Love & Mercy está mesmo no modo
como não oferece à audiência respostas a todas as perguntas que levanta,
nomeadamente o modo como o genial e vibrantemente nervoso Brian de Dano se
converteu no cabisbaixo e quase apático Brian de Cusack. O guião e os atores
são os principais responsáveis por esta qualidade, sendo que, por vezes, a
montagem do filme parece demonstrar consideráveis problemas em estabelecer
subtis ligações entre as duas épocas.
O visual do filme também nunca ultrapassa a pura
competência, apesar de algumas escolhas fotográficas demonstrarem uma certa impetuosidade
estilística. A verdadeira estrela da concretização formal de Love
& Mercy é, como seria de esperar, o seu som. A banda-sonora é um
milagre de apropriação, reinterpretação e desconstrução da música dos Beach
Boys feita pelo magistral Atticus Ross e a sonoplastia apenas vai exacerbando
os epítetos de celestial musicalidade conferidos pelo contexto narrativo.
Apenas em alguns momentos é que o expressionismo sonoro se torna demasiado
enfático, como numa infeliz cena de refeição, sendo que, na generalidade, os
esforços sonoplásticos da equipa de Love & Mercy são dos mais admiráveis
trabalhos técnicos de todo o ano cinematográfico. Algumas das alucinações auditivas
de Wilson representam uns dos melhores momentos de todo o filme, inserindo uma
subjetividade tão espetacular como assustadora a toda a experiência, e brilhando
em particular quando são mais subtis que agressivas.
Este filme não é, de todo, perfeito, sendo que um dos seus
maiores problemas é o modo como é impossível ignorar que esta é uma biografia
aprovada pelos intervenientes verídicos. Há uma constante segurança no retrato
das personagens e uma abordagem extremamente polida, que, apesar do formidável
trabalho do elenco, não possibilitam retratos particularmente
multidimensionais. O fim da porção de Cusack e Banks é particularmente
irritante na sua perfeita e feliz conclusão sem grandes oportunidades de
mostrar as complexidades que deverão existir na história real. Infelizmente, no
final, a experiência total de Love & Mercy tende a ser um
pouco prosaica.
Apesar de algumas consideráveis limitações, Love
& Mercy continua a ser uma das mais agradáveis surpresas do ano
que, apesar de estar longe de ser essencial, é uma gentil concretização de uma história
que poderia ter facilmente caído num insuportável cliché. No entanto, para fãs
de qualquer um dos membros do elenco principal, o filme é indispensável, sendo
que representa os píncaros profissionais e artísticos de Dano, Banks e mesmo de
Cusack, que se provou profundamente formidável em mais do que um filme de 2015.
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