segunda-feira, 3 de novembro de 2014

ONE FROM THE HEART (1982) de Francis Ford Coppola


 Em 1982 Francis Ford Coppola apresentou ao mundo aquele que é talvez o seu mais megalómano projeto, o que é algo de impôr respeito quando temos em conta o pesadelo que foram as filmagens de Apocalypse Now. Falo, pois claro, do filme que arruinou o sonho dos estúdios Zoetrope (o filme sublinha no final que foi totalmente filmado nestes estúdios), um projeto de Coppola que apoiaria o cinema de autor internacional, um paraíso de liberdade artística. Esse infame filme foi o estranhíssimo musical One from the Heart.

 Quando primeiro me deparei com este filme, pouco sabia dele para além da sua infâmia na história da obra de Coppola, não estando de modo algum preparado para a alucinante experiência que é ver este filme, uma das mais ambiciosas criações na história do cinema americano dos anos 80. Um filme verdadeiramente experimental, mas executado com a técnica de um mestre e com um orçamento milionário, bem afastado do que normalmente associamos com o termo de cinema experimental.

 Primeiro acho melhor fazer uma leve introdução ao enredo do filme, que, verdade seja dita, é de pouca importância para o mesmo, sendo que é quase comicamente simplista. Em Las Vegas da década de 80 encontramos um casal que vai celebrar 5 anos juntos, discutem e separam-se, no dia seguinte cada um encontra uma alternativa idealizada, um amante perfeito com quem passam a noite. No final, Hank (Frederik Forrest) decide que quer a sua ex-namorada (Terri Garr) de volta e persegue-a até ao aeroporto, ela parece recusá-lo mas quando este volta à casa que partilhavam, ela regressa para ele. Na sua simplicidade o enredo quase faz lembrar o cinema mudo, nomeadamente o semelhante Aurora de Murnau.

 É um enredo, como já disse, bastante simplista e que frequentemente parece cair no cliché, mas o interesse do filme não está contido no seu enredo. A história do filme parece ser apenas uma base sobre a qual Coppola criou uma exuberante experiência técnica que parece ter como intenção uma desconstrução do género musical, ou pelo menos dos musicais de Hollywood que caracterizaram a era dourada dos estúdios americanos.

 Mas desses musicais, Coppola parece ter apenas mantido a simplicidade energética e a euforia exuberante do seu estilo, sendo que as alegres melodias de outrora, são aqui substituídas por uma estranha banda-sonora da autoria de Tom Waits. A música é, aliás, dos componentes mais desconcertantes do filme. Um visual de extremo artificialismo em que nada é real (o filme até nos mostra o teto do céu) e exuberância colorida, acompanhado por canções melancólicas cantadas na voz rouca do cantor, sendo que em apenas uma ocasião a canção é cantada por uma das personagens, sendo que na maioria do filme, a musica é apenas um acompanhamento não diegético da ação, algo bastante estranho no género explorado.

 Mas esta contradição não está apenas presente entre os visuais e a música, mas também no próprio registo dos atores. Para seus protagonistas, Coppola escolheu dois cuja experiência era maioritariamente em papéis secundários, dois atores de certo modo afastados dessa figura mítica da estrela de cinema e dois atores com registos bastante dissimilares. Enquanto Garr parece muito mais confortável num registo exuberante e artificial, Forrest mantém-se num pseudo naturalismo que não estaria mal empregue num dos filmes que marcaram a obra de Coppola na década de 70. É uma mistura que lembra o contraste de Minelli e De Niro em New York New York, uma experiência semelhante e que, tal como este filme, foi um enorme fracasso de bilheteira e de crítica.

 Na minha opinião pessoal, acho que Forrest e o seu tipo de atuação não estão particularmente bem integrados no filme, percebo a ideia e a intenção, mas este filme é tão violentamente artificial que ele parece estar ali perdido, como que um transeunte de uma outra produção que se perdeu no estúdio. Raul Julia como Ray, o amante ideal de Franny, está muito melhor na sua condição de estrela carismática e sedutora. Também Nastassja Kinski está bem escolhida com os seus ares de atriz europeia, quase parece ser uma homenagem ao cinema alemão dos anos 20, especialmente com o seu número de circo e sua backstory. Também ela é uma amante ideal e é bastante fácil sermos por ela seduzidos.

 Repare-se nestes pares, nesta dualidade intrínseca ao enredo. Dois namorados e dois amantes. Dois registos de atuação. Por todo o filme existe uma dualidade, quer seja no uso constante de espelhos quer seja na meticulosa construção das duas histórias paralelas, muitas vezes no mesmo plano sequencia.

 Aliás, o conflito principal, se é que existe grande conflito, é na escolha de Franny entre dois pretendentes, a carnalidade deprimente de Hank, na sua Las Vegas de estúdio, ou a felicidade irrealisticamente ideal com Ray. Este conflito chega aos seus píncaros na cena do aeroporto, onde Franny pretende partir para Bora Bora, um lugar por ela sonhado anteriormente e que ela mesma recriou artificialmente numa montra. Poderemos dizer que no final ela escolhe ficar no estúdio, na artificialidade do seu mundo ao invés de partir para a desconhecida realidade, ou pelo contrário afirmar que ela escolhe o real e imperfeito à perfeição irreal. Para ser franco este tipo de discussão conceptual não é de todo o que mais me fascinou no filme, mas sim o seu exagero técnico.

 Tenho estado a referir os aspetos técnicos do filme, mas talvez fosse melhor elaborar. O filme começa, antes de tudo, com o abrir de cortinas de veludo e também assim se encerra, uma deliberada escolha que apenas reforça a deliberada teatralidade e artificialidade que permeiam no filme.

 Os decors são exageradamente artificiais, com perspetivas forçadas, meias paredes, espelhos, proporções exageradas, matte paintings e luzes coloridas por todo o lado. Uma visão sonhadora de uma Las Vegas que não existe no mundo real. O filme não faz qualquer pretensão do mais mínimo do realismo. Na mais fantástica sequência do filme, uma desenfreada dança pelas ruas de Las Vegas que marca a noite dos encontros com os amantes ideais, a própria rua se transforma, literalmente num dance floor iluminado.

 Mas a cenografia não seria nada sem o magistral trabalho de Vittorio Storaro, cujo trabalho aqui será possivelmente a joia da coroa numa carreira de diretor de fotografia marcada de sucessos. Utilizando a tecnologia da steadicam que emergiu no cinema americano nem uma década antes deste filme, Coppola e Storaro filmam o filme em grande parte a partir de planos sequência em constante movimento, um exercício técnico que chega a improváveis níveis de complexidade quase inimagináveis. A fusão entre cenografia e fotografia permite sequências como a noite de separação inicial em que os dois namorados vão ter com os seus amigos, passamos, no mesmo plano, da conversa entre Hank e um seu amigo, para a casa da melhor amiga de Franny onde esta se refugiou, Tudo no mesmo plano, sendo que a câmara vai flutuando e oscilando entre os dois cenários possibilitados pelo uso de técnicas tão teatrais como paredes que se tornam ora opacas ora transparentes consoante a iluminação. É basicamente Max Ophuls sob o efeito de LSD, uma orgia de movimento e teatralidade oferecidos aos olhos da audiência.

 Para além destes aspetos, acho que há também de apontar a montagem. A extrema quantidade de planos sequência, muitas vezes implica o uso de poucos cortes dentro de cenas, mas a dualidade do filme faz com que, especialmente na abertura e na noite dos encontros, haja um grande uso de intercuting entre os dois protagonistas. Por vezes estes cortes parecem óbvios e deliberados, outras parecem curiosamente contraintuitivos. Juntamente a isto acrescenta-se o uso esporádico de jump cuts, usualmente para cortar e acelerar movimentos como Raul Julia a girar durante uma dança. Tudo isto cria um grande sentido de desorientação, junta-se a isto os aspetos acima referidos e temos um autêntico sonho alucinatório em celulóide

 Seria interessante estabelecer uma comparação entre esta obra e Pennies from Heaven de Herbert Ross, outra desconstrução e dissecação do musical clássico. Nesse filme são usadas canções clássicas apresentadas com uma enorme teatralidade e artificialidade; mas se nesse filme os códigos do musical eram usados para estabelecer o artifício vazio das músicas face à crueldade da inescapável realidade, aqui existe mais uma celebração dos códigos do musical e uma imposição desse mesmo artifício sobre qualquer noção de realidade.

 De novo, relembro que, de um ponto de vista pessoal, tudo isto é um sucesso. Os prazeres que retiro deste filme são a sua exuberância e primor técnico, o seu sentido de experimentação feita por um mestre, a sua energia e dinamismo. Mas apesar de tudo isto acho que é justo chamar a este filme, uma obra bastante divisiva. É fácil perceber quem deteste o enredo cheio de clichés e lugares comuns, quem olhe o espetáculo de artifícios e veja apenas um exercício técnico vazio e fracassado. Para mim, como já deve ser óbvio, este filme é um triunfo técnico e uma maravilhoso exemplo de um cinema de autor com características experimentais que não deixa de ser uma prodigiosa obra de entretenimento.


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