Hoje em dia a ideia do filme
documentário tem vido a ser fortemente alterada, desafiada e esticada até aos
seus mais estranhos e artificiais limites. Isto a leva a obras como esta, um
filme em que qualquer tipo de categorização entre ficção e documentário,
parecem dúbias e até fúteis. Um filme inclassificável, por vezes fascinante,
por vezes perdido na sua pomposidade.
Antes de mais, seria
apropriado descrever um pouco o filme e a sua premissa inicial, que nunca passa
de um leve conceito, sendo apenas um pretexto para uma sequência inicial e para
o título. O filme explora, de um modo extremamente fictício, a persona e o
trabalho de Nick Cave, sendo que se apoia numa ideia de reflexão, numa ideia de
24 horas com o artista, em que exploramos o legado dos dias que antecederam
este dia pelo filme capturado.
Isto é abertamente
proposto pelo filme na sua sequência de abertura, em que vemos imagens em
vários ecrãs, um mar de imagens velozes em que vemos o passar da vida do músico,
sendo que isto é acompanhado por uma contagem dos dias vividos por este, até
chegarmos ao dia 20.000, o dia de que o filme iria tratar. O filme não é
nenhuma obra de cinema verite em que
os realizadores foram capturando esse dia na vida de Cave, está bastante longe
disso ou de qualquer pretensão de realidade.
Esta é uma obra
abertamente artificial na sua criação, pelo que apenas o mais inocente dos
espetadores poderia julgar o que é apresentado como um dia normal na vida de
Cave. O filme mais se assemelha a um filme sobre um músico que reflete,
maioritariamente num crescentemente irritante e pomposo voz-off, sobre a sua
vida, a sua carreira e a sua relação com sua arte. Um filme em que Cave se
interpreta a si próprio no que se assemelha a uma construção fictícia do
artista sobre a sua própria figura. Um autorretrato de Cave possibilitado pelo
trabalho dos realizadores, e tal como qualquer autorretrato, o filme é uma obra
de cuidado artificialismo e técnica na criação da imagem de uma personalidade
no seu centro.
O filme com a sua
cuidada mise-en-scène e sua prodigiosa e bastante polida fotografia, cria em si
mesmo uma mentira, uma fantasia. Uma ficção a partir da qual se tenta chegar a
alguma realidade. Onde se tenta obter uma reflexão, uma visão da realidade de
Cave. O artista chega mesmo a falar do modo como usa as suas memórias de
pessoas que o marcaram como modo de criar as suas obras. Ele falseia, mitifica,
dilui a verdade de modo a criar a sua música. Do mesmo modo, os realizadores do
filme trabalham estas suas visões de Cave criando uma mistura entre
autorretrato e retrato, uma reflexão de Cave sobre si mesmo e uma mitificação
do mesmo feito a partir de um ponto de vista exterior, mas sem dúvida
reverente.
Existe então uma grande
ênfase na memória, algo que não é de algum modo escondido pelo filme ou mesmo
explorado com qualquer subtileza. Recorre-se a uma cena de terapeuta em que
vemos de uma perspetiva psicanalítica essa exploração de Cave pelas memórias do
seu passado e mais à frente temos longos momentos em que Cave utiliza
fotografias para refletir sobre si mesmo. Em resumo, o filme torna explícito
todas estas suas intenções.
Combine-se esta
explícita intensão de autorreflexão com a persistência num voz-off incessante
de Cave, o que leva a que o filme, por vezes, pareça vergar sob o peso da
pomposa autorreflexão e até auto mitificação das palavras de Cave. Teno de
admitir que, de um ponto de vista puramente pessoal, chegado aos momentos
finais do filme já me encontrava um pouco saturado das palavras vagarosas e de
uma dimensão quase de reverência crítica à sua própria imagem de Cave. Não que,
especialmente no início do filme, as suas palavras não contenham em si um
grande interesse, uma visão à mente do artista, mas depois de todo o decorrer
do filme e a sua persistência num apoio totalmente dependente nas palavras
faladas de Cave, existe um certo cansaço e até repetição de ideias já
suficientemente expostas.
Apesar de tudo isso,
existem algumas cenas e sequèncias em que o filme realmente brilha e se parece
soltar um pouco da rigidez imposta pela recorrência constante ao voz-off de
Cave. Falo da sua estranha e quase sonhadora cena com Kylie Minogue num carro
guiado pelo músico, em que as duas estrelas de mundos musicais bem diferentes
parecem unir-se neste mundo de ruminações intelectuais sobre a sua própria
figura como celebridades e como artistas. Mas também me refiro a todos os
momentos musicais que pontualmente vão ocorrendo ao longo do filme, culminando
no concerto que o encerra.
Enquanto via o filme
perguntava-me se a razão para a minha tão maior apreciação dos momentos
musicais em relação ao resto do filme provinha de alguma subjetividade devida
ao facto de realmente apreciar o trabalho de Cave, ou se seria a genuinidade
estranha e quase alienígena que essas cenas trazem em comparação com o
artificial estudado do resto do filme. Nessas cenas existe uma deliberada e genuína
teatralidade, que no resto do filme chega a parecer um pouco forçada. Acabei
por não ter grande resposta a não ser a que durante estas cenas o filme parece
desafiar e quebrar as suas barreiras estruturais autoimpostas, fugindo um pouco
ao caráter de reflexão pela artificial voz-off do filme e substituindo esse
mecanismo pela música de Cave, que acaba por ser um modo de autorreflexão de
Cave que parece surgir muito mais livremente que a sua quase interpretação de
si próprio ao longo do restante filme.
O final, que
acompanha um concerto de Cave, chega aos píncaros do filme. Aí parece que a,
por vezes repetitiva, dissecação, que o filme tenta realizar sobre a figura de
Cave, se manifesta como uma exploração do que está por detrás desta música,
desta obra final. O filme parece revelar-se como um filme sobre a criação
artística, sobre os caminhos de Cave para obter as suas obras. No final todas
as peças parecem montar-se num mecanismo perfeitamente funcional e dinâmico.
Talvez até terá sido essa exuberância energética e conceptualmente unificadora
que fez com que, para mim, as cenas musicais, nomeadamente o final,
empalidecessem em relação ao filme que se desenrola para além destes momentos.
De qualquer modo,
independentemente das minhas objeções ou dúvidas em relação ao filme, que acho
que se limita estruturalmente a si próprio, nunca explorando o que a sua
inicial premissa realmente parece propor, acabando por cair numa recorrente
repetição, penso que esta é uma fascinante obra documental. É interessante
verificar os limites do documentário, mesmo que num modo mais convencional como
esta obra, bem longe das grotescas encenações de The Act of Killing por exemplo. Talvez isso seja uma falta de
objetivismo pessoal e uma sedução da música de Cave face ao filme e à minha
perspetiva da obra, mas não consigo negar que penso neste, como um documentário
de mérito, em que existe um potencial, infelizmente não completamente explorado
pelos seus criadores.
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