O filme Saint Laurent de Bertrand Bonello será um dos dois filmes que irão abrir o festival de cinema Lisboa&Estoril. Em honra dessa abertura, que ocorrerá hoje à noite, aqui está um texto sobre um outro filme biográfico à volta da figura de Yves Saint Laurent, também estreado em 2014.
Não é a primeira vez que
dois filmes sobre as mesmas personalidades famosas estreiam no mesmo ano, há
que lembrar, por exemplo, Capote e Infamous. Mas não é por não ser inédito
que não é algo que traz consigo um interessante impulso de comparação e de
análise do modo como diferentes realizadores, diferentes produções olham uma
figura da nossa realidade.
Ainda não vi o, por
mim enormemente antecipado, filme de Bertrand Bonello sobre a figura de Yves
Saint Laurent, mas já tive o prazer, ou não, de ver o filme de Jalil Lespert.
Tenho a dizer que espero que Saint
Laurent seja bastante superior à obra sobre a qual aqui me proponho a
escrever.
Yves Saint Laurent, o filme, é uma obra do
subgénero de cinema biográfico que tem uma francamente classicista e
convencional estrutura no modo como nos expõe a figura no seu centro. Ou talvez
fosse mais certo dizer, as figuras, pois não considero este um filme de apenas
um protagonista. Para além do icónico nome da moda francesa, Saint Laurent (Pierre
Niney ), temos também o seu parceiro de longa data Pierre Bergé (Guillaume
Gallienne), cujo contraparte real terá aprovado este filme em contraste com a
sua suposta rejeição da visão de Bonello.
O filme, volto a
lembrar, é de uma extrema convenção e nada nos mostra mais isto que os seus
momentos iniciais e o seu revelar da sua estrutura à volta das lembranças do
velho Bergé. O filme nem sequer parece querer fixar-se num espaço de tempo
específico, sendo que tenta explorar grande parte da carreira do célebre
criador sem grandes preocupações com estrutura dramática, ou mesmo com uma
estrutura um pouco diferente das centenas de outras obras cinematográficas de
cariz biográfico.
Para se verificar
isso basta olharmos o momento “inspirador” que marca o final do filme. Um
desfile luminoso, depois de vários contratempos e da queda em decadência de
Saint Laurent, é-nos mostrado como um triunfo para o criador. Na banda-sonora
passa uma interpretação de Maria Callas de Casta
Diva, só para ainda mais sublinhar o cliché que o final se manifesta como
sendo. Em resumo, um momento forçosamente inspirador de modo a, nos seus
momentos finais, o filme quase canonizar, ou pelo menos glorificar, a figura de
Yves Saint Laurent.
Não que o filme, ao
longo do seu desenvolvimento, não tente dar a Saint Laurent alguma
complexidade, afastando-o dessa imagem mítica e santificada em que o filme
poderia cair. No entanto, isto é principalmente feito a partir dos mais
convencionais métodos possíveis. Abuso de drogas, amantes, decadência moral,
etc. Não que isto não tenha acontecido, mas o filme nada faz com este material
que muitos outros filmes não tenham feito de modo semelhante ou melhor. Para
além disso, o filme nunca parece grandemente investido na criação de qualquer
seguimento dramático nas cenas, apenas nos apresentando sequências letárgicas
de episódios na vida de Saint Laurent. Por vezes, como nos encontros iniciais
de Bergé e Saint Laurent, o filme ainda consegue encontrar alguma elegância
narrativa mas o constante uso de voz-off destrói qualquer pretensão de
sofisticação a que o filme possa almejar, na sua apresentação da vida dos seus
protagonistas.
Mas antes de falar
mais da convencionalidade do enredo, talvez seja interessante falar um pouco do
modo como o filme mostra a obra do criador no seu centro. Uma das cenas no
início do filme revela, para mim, os problemas, assim como os pequenos triunfos
do filme no modo como apresenta as roupas que têm em si um tão central papel.
Nessa cena vemos Yves defronte de uma das suas criações para a casa Dior,
estamos em frente a um espelho, pelo que também a audiência poderia apreciar
numa proximidade da totalidade, o vestido edificado por Yves. Ele rapidamente,
algo salientado pela montagem e pelo uso um pouco exagerado do som, cria uma
faixa que acentua e cinta a silhueta já criada. O momento em que o vestido
final nos é revelado perde, no entanto, o impacto que poderia ter, sendo que o
realizador parece insistir em não nos mostrar em plano afastado o vestido
completo, preferindo permanecer num plano em que ainda consigamos ler
perfeitamente as faces dos atores e em que nunca conseguimos ver completamente
a forma do recentemente aperfeiçoado vestido. Uma filmagem convencional que
parece um pouco em discordância com as intenções do filme como uma obra sobre
um dos grandes criadores de moda.
No entanto, há que
mencionar, os desfiles expostos no filme, são melhor filmados que estas cenas
de criação em ateliê. É certo que caem em cliché, mas pelo menos são eficazes
no modo básico como mostram a elegância das roupas de Saint Laurent. A música
utilizada no segundo desfile do filme é particularmente eficaz no modo como
cria um nervosismo articulado. A música composta por Ibrahim Maalouf é, na
minha opinião, o aspeto técnico mais bem conseguido de todo o filme.
O seu elenco não me
parece mostrar grandes deficiências na sua interpretação, sendo que Niney é
especialmente eficaz no modo como apresenta o jovem Yves num quase constante
registo de nervosismo, de certos modos quase mecanizado. Mesmo assim, nenhuma
das figuras parece particularmente desenvolvida, nunca realmente passando de
uma impressão superficial dessas figuras da história da moda. Charlotte Le Bom
como Victoire Doutreleau e Xavier Latiffe como Jacques de Bascher são, em
particular, praticamente reduzidos a imagens de uma beleza puramente estética,
a serem manipulados como objetos nas mãos dos protagonistas, que também não se
encontram muito longe da condição de imagens vazias.
Mesmo assim o filme
mostra uma certa eficiência e competência que o elevam acima de outros muitos
desastres na esfera do cinema biográfico e, pelo menos, nunca cai num
aborrecimento mortal, como outras obras desse subgénero, estreadas neste mesmo
ano. É, no entanto, importante de salientar que um maior primor técnico e
versatilidade visual poderiam dar alguma elegância e sofisticação a um filme,
que está sempre a levantar esses conceitos no seu diálogo, sem nunca os exibir
na sua própria linguagem formal, a não ser em algumas sequências isoladas ao
longo do filme.
Sem comentários:
Enviar um comentário