terça-feira, 18 de novembro de 2014

PRIDE (2014) de Matthew Warchus



 Normalmente, tenho que confessar, quando vou ver um filme que se publicita como uma história inspiradora baseada num caso verídico, entro sempre na sala de cinema com uma predisposição para detestar o filme. Fico sempre à espera de personagens santificadas, de fórmulas irritantes, de um filme desnecessariamente solene cheio de momentos forçosamente inspiradores que só me dão vontade de revirar os olhos na escuridão da sala. Mas é claro que há que ter em consideração as expetativas criadas pela leitura de críticas de cinema, que neste caso eram de um estranho e quase desmesurado positivismo. Digo isto, porque quando entrei para este filme não ia com as minhas usuais e destrutivas baixas expetativas, na verdade entrei na sala com uma grande disponibilidade para apreciar o filme.

 Acrescenta-se a tudo isto o facto de que a temática da história tratada no filme é algo que me interessa, mesmo a nível pessoal, e temos os dados lançados para o inverso do que normalmente acontece comigo. Se em situações semelhantes poderia ser vítima de uma subjetividade negativa, neste caso tenho medo de me ter deixado levar em demasia pelo filme, talvez perdendo um ponto de vista objetivo sobre a obra à minha frente.

 Tudo isto para dizer que, apesar de algumas dúvidas iniciais, eu adorei este filme. Pode não ser uma das mais complexas obras que vi nos últimos tempos, nem um filme com uma técnica formal interessante ou complexa, mas há já bastante tempo que não tinha uma tão agradável experiência numa sala de cinema. Como uma forma de entretenimento jovial, o filme é um absoluto triunfo, ou pelo menos foi para mim, e como um filme com fortes mensagens políticas, mesmo que viradas para o passado, penso que o filme também alcança um modesto triunfo.

 Antes de continuar a minha ode ao filme, há que falar um pouco da história por detrás do filme, pois se há um filme que necessita de uma contextualização em termos de história e enredo, será este. Em 1984, em plena Inglaterra sob o regime conservador de Margaret Thatcher, um grupo de lésbicas e gays forma um grupo de apoio aos mineiros, que nesse ano começaram uma greve que iria durar quase um ano, depois de uma conclusão que teria havido uma redução no assédio policial à comunidade gay, sendo que as novas vítimas seriam os mineiros em greve. Inicialmente, o grupo LGSM (Lesbians and Gays Support the Miners) sido recusado pelo sindicato dos mineiros, apesar de repetidas tentativas, até que acabam por contactar com uma vila específica de mineiros no País de Gales, Onllwyn, escolhida de modo quase acidental, e para onde irão focar os seus esforços. O filme trata do espaço de quase um ano que marcou esta relação de solidariedade, observando a difícil integração e aceitação da comunidade gay por parte dos mineiros, assim como os vários contratempos e derrotas que marcaram esta associação que por vezes parece apenas tentar angariar dinheiro para combater a fome das famílias de mineiros. Esta estrutura é emoldurada por duas Pride Parades, uma em 1984 e outra em 1985, sendo que nesse espaço de tempo vai acompanhando um enorme elenco de personagens, ativistas, mineiros, as suas famílias, etc.

 Pride é um filme sem protagonista, um filme que, a partir de um prodigioso guião da autoria de Stephen Beresford, consegue gerir um grande elenco de personagens, sendo que algumas delas têm apenas algumas sugestões de uma sub-plot. O filme não se investe em demasia em nenhuma das suas personagens, criando um retrato de uma comunidade, onde apesar de haver algumas personagens tornadas mais relevantes, também pela sua posição no enredo, quase todos têm o seu dito “momento para brilhar”. Talvez as personagens mais próximas dessa, neste caso, inadequada classificação como protagonista sejam Mark (Ben Schnetzer), um jovem ativista politico que acaba por dar origem e quase liderar o movimento LGSM, e Joe (George MacKay), um jovem que completa os seus 20 anos no dia da Pride Parade em Londres de 1984, sendo que se acaba por envolver quase inadvertidamente com a organização de apoio aos mineiros, tornando a sua viagem no filme, uma viagem de autodescoberta, e quase uma história de coming of age, no sentido em que no final o vemos a afirmar-se como um indivíduo, especialmente em relação à sua família, que não parece conseguir aceitar a sua sexualidade.
 Uma das sequências de maior sucesso do filme, pelo menos para mim, é a que abre o filme após uma breve contextualização histórica a partir de imagens televisivas da violência contra os mineiros durante os inícios da greve. Falo da sequência que retrata a Pride Parade de 1984 em Londres e que nos apresenta a praticamente todos os membros iniciais da LGSM, nomeadamente Mark que nos é apresentado olhando fixamente uma entrevista televisiva de Thatcher, e saindo apressadamente de casa após o que nos parece ser um one night stand, e Joe que após sair da sua casa onde celebrou o seu vigésimo aniversário com a sua aparentemente conservadora família, decide ir ao desfile, sendo que acompanhamos os seus movimentos abortados enquanto se decide ou não a entrar no desfile. A câmara acompanha estes movimentos, observando o modo como ele parece entrar no desfile, sai, finge ser um espetador, olha o ódio de alguns transeuntes homofóbicos, é quase forçado a segurar um cartaz por Mike (Joseph Gilgun), um amigo de Mark e também um ativista, e acaba por voltar ao desfile, já com alguma certeza e inicia o seu envolvimento com a LGSM ao segurar num balde para recolher dinheiro para os mineiros. Veja-se o modo como segue Joe, e como a montagem parece tentar colocar-nos no seu nervosismo e dúvida. É um momento de simples técnica, mas que é inequivocamente eficaz, criando no simples mudar de direção do andar de Joe, mostrado num rápido plano dos seus pés, um pequeno triunfo pessoal. Aqui vemos o balanço que o filme está sempre a criar entre uma preocupação comunitária e uma preocupação com o indivíduo, abordando temas sérios mas sempre com uma leveza que impede o filme de cair numa seriedade forçosa e aborrecida.

 É difícil falar do filme, devido à sua imensidão de personagens e pequenas histórias pessoais, mas há que salientar essa abordagem leve que acima referi. Não é que o filme não consiga abordar com seriedade a sua trama, especialmente a um nível político, mas o filme nunca deixa de ser uma comédia, não martirizando nem os ativistas nem os mineiros, nunca os reduzindo a uma só coisa. A personagem de Maureen (Lisa Palfrey) é o que mais se aproxima no filme de uma figura de vilão, se bem que o verdadeiro vilão é sempre um governo conservador liderado por Thatcher, mas apesar disso é uma personagem complexa, uma viúva de um mineiro com dois filhos mineiros e pontos de vista conservadores e preconceituosos, que mesmo assim não nos é apresentada como um monstro, sendo que uma visita noturna do irmão do seu falecido marido, Lee (Bill Nighty), nos expõe ao orgulho magoado desta mulher, e à sua perda, não nos permitindo reduzi-la a um monstro preconceituoso e bidimensional. É verdade que talvez fosse necessária uma mais complexa criação de personagem em alguns destes casos, mas o filme parece preencher as suas duas horas com todos os detalhes necessários para a criação de uma comunidade de indivíduos e personalidades, sem cair em redutivismos falhados.

 Esta preocupação com as personagens não é algo que seja necessário em todos os filmes, mas neste caso é algo essencial, e há que mencionar que, para além do texto e da realização, também o trabalho de ator é de salientar, sendo que penso estar aqui um dos melhores elencos do ano, onde não existe uma única nota em falso. Ninguém parece querer roubar protagonismo, sendo que todos parecem trabalhar na criação dessa ideia de comunidade que prevalece pelo filme, criando complexidades onde até o guião não parece apontar. Seria um pouco fútil falar de cada um dos membros individuais do elenco, mas gostaria de mencionar alguns nomes específicos.

 Imelda Staunton volta, neste filme, a um seu conhecido registo de quase caricatura, criando sempre um comic relief neste papel de membro do concelho de apoio aos mineiros de Onllwyn, que mesmo assim não cai na bidimensionalidade que esta descrição possa indicar. Uma cena que partilha com Bill Nighty, em que ambos conversam enquanto preparam comida para os mineiros, é de particular relevância, revelando nessa figura uma inesperada complexidade e vivência. Jessica Gunning, uma desconhecida pelo menos para mim, é particularmente notável no papel de Sian, a mulher de um mineiro, que acaba por se tornar membro do concelho e que também se torna uma das mais importantes figuras no movimento de ajuda aos mineiros. Se o filme se torna uma viagem de autodescoberta e afirmação para Joe, também o faz com esta personagem, se bem que de modo um pouco mais discreto, sempre possibilitado por um bom trabalho da atriz. E ainda há que referir Andrew Scott, que já conhecia previamente da célebre adaptação da BBC dos livros de Sherlock Holmes. Se como Jim Moriarty em Sherlock, Scott explorou uma bizarra e grotesca exuberância, no papel de Gethin, o namorado de longa data de um dos mais exuberantes membros da LGSM, Jonathan (Dominic West) que terá sido o segundo caso registado de SIDA no Reino Unido, e dono de uma livraria, assim como um homem de origens galesas, há já muitos anos afastado tanto da sua família como das suas origens. A sua fisicalidade cansada e o seu progressivo regresso às suas origens e à sua família, marcam este trabalho, que no meio de toda a exuberância e jovialidade do filme, se revela como uma agradavelmente matura e calma presença.
 É verdade que o filme tem alguns problemas, sendo talvez estes a sua ocasional recorrência a técnicas e mecanismos desinspirados e dependentes de fórmulas, como o texto que aparece no final do filme revelando o que aconteceu a algumas das personagens verídicas, assim como uma bizarramente energética cena de dança protagonizada por Dominic West e que parece por momentos sacrificar a verosimilhança da evolução da relação entre os mineiros e os membros do LGSM por um momento musical exuberante. Também há por vezes uma criação demasiado perfeita entre as várias vidas que compõem o elenco de personagens do filme. Basta olharmos duas confrontações entre homens homossexuais e suas mães para nos apercebermos como o filme nos está a estabelecer, de modo bastante deliberado e até obvio, uma ponte entre estes dois tipos de relacionamento e de aceitação.

 Mesmo assim, para mim, o filme foi um triunfo. Modesto e simples, sim, mas mesmo assim um triunfo com uma forte mensagem de comunidade e de ativismo político que parece apelar a uma solidariedade que muitas vezes parece ser sacrificada, especialmente no panorama política e económico da nossa atualidade. Mesmo para quem se queira apenas divertir numa comédia leve, o filme está recheado de momentos e de falas de inegável valor cómico, sendo que escolher as melhores falas entre esta tão vasta multitude seria quase impossível. Uma grande obra de entretimento, maravilhosamente concretizada que funciona quase como um instantâneo antidepressivo cinematográfico, mesmo tendo em conta a seriedade e tragédia de alguns dos temas e vidas no filme explorados.

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