Como um grande fã de
um realizador como Ingmar Bergman, poderá parecer um pouco estranho dizer isto,
mas sempre sinto uma grande reticência e dúvida quando me deparo com uma obra
que admitidamente vive dos seus extensos diálogos, como se de uma peça de
teatro de câmara se tratasse. Não que não exista na mais recente obra de Nuri
Bilge Ceylan, que ganhou a Palme D’Or deste ano com este mesmo filme, uma
preocupação e um exímio trabalho visual e formal. Mas apesar de podermos
apreciar e salientar, por exemplo, o modo como as rochosas paisagens invernais
permeiam o filme e quase se impõem e abatem sobre os pontos humanos que
envolvem, há que honestamente admitir que este é um filme grandemente
desenvolvido à base do seu texto, nomeadamente os seus extensos diálogos.
E há que salientar
essa extensão e a duração dela resultante, não fosse este o mais longo filme a
alguma vez arrecadar a máxima honra no festival de cinema mais célebre dos
nossos dias. A sua duração foi, aliás dos aspetos que mais dúvidas me criou.
Admito que se reduzíssemos o tempo do filme, algum do seu efeito poderia ser
perdido, especialmente a exaustão e devastação dos últimos minutos, mas continuo
a refletir sobre o filme e a pensar que teria sido necessária uma maior
redução, uma maior síntese das ideias do realizador, que por vezes parecem
começar a revelar uma certa redundância e repetição com o passar do tempo. Se
bem que, antes de apontar os pontuais problemas que tive com o filme, talvez
fosse mais apropriado falar um pouco mais sobre o filme em si e alguns dos seus
aspetos mais marcantes de um ponto de vista positivo.
O filme, cujo texto
terá sido fortemente influenciado pela obra de Tcheckhov, desenvolve-se
principalmente à volta da figura de Aydin (Haluk Bilginer), um velho
proprietário de terras e de um hotel, que em tempos terá sido um ator e que
agora é apenas um esquecido dono de um hotel onde vive com a sua muito mais
jovem e inegavelmente infeliz mulher, Nihal (Melisa Sözen), e a sua amarga
irmã, Necla (Demet Akbag). Aydin parece assemelhar-se a um senhor feudal
cansado e aparentemente benevolente, entretido em passar o tempo a escrever
artigos para um pequeno e praticamente desconhecido jornal, e em fazer pesquisa
para a suposta escrita de um livro sobre a história do teatro turco. Um dia,
enquanto era guiado através da aldeia em que o seu hotel se insere, como um
castelo de rocha de um rei acima do seu povo, um rapaz atira uma pedra contra o
vidro do carro, despoletando uma passiva-agressiva confrontação entre o seu
empregado Hidayet (Ayberk Pekcan) e a família do rapaz. Família essa que vive
numa casa cujo senhorio é o nosso protagonista, e que num passado recente terão
sido visitados por cobradores enviados pelos advogados de Aydin. Essa visita
teria resultado numa altercação física e humilhação do pai do rapaz, um ex-presidiário
com problemas de alcoolismo. A família vive em abjeta miséria e este confronto
será apenas um ponto no quadro criado por Ceylan na sua criação de um retrato
do velho senhorio.
Apesar de
inicialmente parecermos partilhar a visão do próprio Aydin de si mesmo, a de um
benevolente senhor, preocupado com a crítica social e moral nos seus artigos e
afastado de qualquer miséria ou de qualquer culpa dessa mesma miséria, depressa
começamos a ver para além dessa fachada, dessa ficção talvez inconscientemente
criada. Veja-se o modo como, durante a discussão entre Hidayet e Ismail (Nejat Isler), o pai do rapaz, Aydin
se mantém à distância, nunca se envolvendo diretamente, supostamente ele nem
sabia da sua responsabilidade sobre a casa dessa família. Chega mesmo a ser
filmado por detrás do vidro partido, uma barreira invisível que o separa dessa
gente, uma barreira tornada visível pelas rachas criadas pelo ataque da
criança. Essa imagem de um vidro a separar um observador de um observado é
bastante repetida pelo filme e mais do que visualizar uma separação meramente
social e económica, parece estabelecer algo ainda mais abrangente uma alienação
de Aydin, e mais tarde de Nihal. Tanto entre si como para com o resto do mundo,
figuras isoladas e sozinhas, separados por uma barreira invisível do mundo.
Mas antes de me
adiantar, há que referir mais algumas ramificações dessa altercação no que diz
respeito à nossa perspetiva em mudança sobre Aydin, esse antigo ator, que chega
a utilizar o que viu da família para fazer uma crítica social a homens que se
deixam cair em desleixo, defendendo o Islão como uma religião de cultura, onde
tal não deveria acontecer. De uma visita educadamente desesperada do tio do
rapaz, Hamdi (Serhat Mustafa Kiliç), o nosso protagonista parece continuar a se
colocar completamente afastado dos problemas e do desespero que parece estar a
causar, se bem que inadvertidamente, tudo o que tem a dizer mais tarde sobre o
homem será que os seus pés cheiravam mal. Não parece existir empatia neste
gélido mundo criado por Ceylan, ou pelo menos nem uma básica compaixão se
parecem manifestar no protagonista e suas ações. Numa das mais bizarras e
enervantes cenas do filme, após uma discussão moral e ética com a irmã e com a
mulher, Aydin é visitado por Hamid e seu sobrinho, para que o rapaz beije a mão
ao velho senhorio, quase que num pedido de perdão. Aydin acaba por permitir
isso, levando tudo quase que num tom de brincadeira jovial, um ser superior e
condescendente face ao par que terá caminhado uma enorme e difícil distância a
pé, já por duas vezes, para que o rapaz pedisse o perdão. Apesar dessa
disponibilidade e superioridade quase paternalista de Aydin, o miúdo desmaia
antes de qualquer coisa acontecer, Até uma sequência fulcral no final do filme,
não vamos mais saber do rapaz nem da sua família, esquecidos por Aydin e
deixados para trás no filme.
Entretanto uma série
de discussões vão-se desenrolar entre os três habitantes da casa, sendo que o
filme parece culminarem duas amargas e psicologicamente violentas discussões. A
primeira bastante mais ténue que a segunda, é entre Aydin e sua amarga e
infeliz irmã, que o critica na sua posição de superioridade moral, apesar de
ela também parecer padecer de tais problemas. Aí apercebemo-nos, ou pelo menos
eu me apercebi, da condição destes seres ociosos, sem nada para fazer a não ser
exercer a sua superioridade uns sobre os outros e criar ideias de si mesmos que
os apaziguem. Se os aristocratas ociosos de Chordelos de Laclos enchiam as suas
vidas ociosas e paradas com intrigas e com perversidade, estas personagens
ricas de Ceylan parecem recorrer à moral e à caridade.
Falando então dessa
caridade. Há que referir a discussão entre marido e mulher que funciona como um
choque sísmico no filme, destruindo qualquer ilusão de felicidade ou de paz
psicológica e mental dentro do universo miserabilista do filme. Será a caridade
apenas um artifício deliberada ou inconscientemente criada de modo a
conseguirmos viver com a nossa consciência? Uma consequência de um invariável
egoísmo? Será a moralidade apenas uma criação de modo a nos sentirmos
superiores sobre outros? Será a caridade, um modo de preenchermos algum vazio
na nossa vida, apenas algo para abafar os gritos de uma consciência egoísta?
Será que usamos a moralidade, a ética, a cultura, como elementos de separação,
como modo de nos impormos sobre outros indivíduos que nos parecem inferiores em
relação a esses aspetos?
Ceylan parece
responder em afirmativo a todas estas questões, criando uma negra visão de uma
humanidade deficiente, onde a esperança da empatia e da compaixão humana
parecem fúteis e criações vazias no seu artifício. Tudo isto principalmente
exposto em duas cenas. A primeira, a discussão acima referida, uma devastadora
confrontação entre marido e mulher, onde Aydin, com um tom constante de
superioridade intelectual e paternalista vai, talvez inadvertidamente,
destruindo a ultima coisa que a mulher tinha para lhe encher o vazio da vida. O
projeto de caridade de Nihal, que acaba por nos parecer revelado no seu egoísmo
e ausência de caridade apenas com o propósito de caridade.
A outra cena em que
isto parece enfaticamente exposto, é um encontro entre três homens, sendo Aydin
um deles, completamente bêbados e caídos de qualquer estatuto de superficial
superioridade. Entram numa discussão de ética e moral, explorando
explicitamente as temáticas do filme, quase que as ridicularizando no modo como
as reduzem à discussão desajeitada de três velhos embriagados.
Não vou explorar
muito mais do filme, incluindo uma visita, um tanto ou quanto inesperada de
Nihal à família da criança do início do filme. O desfecho desta visita é
previsivelmente catastrófico, se bem que nunca saindo de um registo de sombria
quietude sonora e de movimento. Sendo que encerramos esse encontro com planos
da face acusatória no seu desespero do miúdo, e de um plano de Nihal, em
lágrimas, completamente perdida e sem qualquer ilusão de sentido na sua vida.
Há que dizer que este
não é um filme sem defeitos. Já falei na desmesurada duração e na possível
repetição persistente dos mesmos temas e mensagens. Gostaria também de referir
o modo como o realizador parece variadas vezes recorrer a imagens de uma
natureza animal, chegando mesmo à inegável crueldade animal, assim como a
outras imagens de claro simbolismo, e que me parecem um pouco desnecessárias no
modo como destoam violentamente do resto do filme, chegando quase a lugares
comuns que me parecem desapropriados a tão moralmente complexo filme.
Como um apelo a uma
humanidade em extinção ou como uma ode fúnebre a um mundo miserável onde
nenhuma empatia ou humanidade existe, o filme é um moderado triunfo. Encerra
com um devastador uso de voz-off, o único no filme. Palavras nunca ditas de
marido a mulher, ambos acabando o filme sozinhos, mas presos um ao outro na sua
solidão. Ambos afogados numa ilusão de companhia, numa tentativa de não se
permitirem a cair no vazio das suas vidas, nessa paisagem invernal, que encerra
o filme em todo o seu devastador desespero visual.
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