quarta-feira, 5 de novembro de 2014

THE BABADOOK (2014) de Jennifer Kent


 O género do cinema de terror é um dos mais fáceis de nos apaixonar e, paradoxalmente, um dos que, de modo mais consistente, nos vai desiludindo, especialmente no panorama cinematográfico contemporâneo. A recorrência a fórmulas cansadas e pútridas, a falta de imaginação, a falta de virtuosismo na execução, etc. Mas, por vezes, uma obra lembra-nos por que razão um cinéfilo se consegue tão facilmente apaixonar por este particular género.

 Apesar de recorrer a muitas fórmulas e convenções do cinema de terror, Jennifer Kent conseguiu alcançar com este filme uma exemplar obra do cinema de terror contemporâneo. Por vezes, especialmente no último ato do filme, parece haver uma certa derivação de outros grandes filmes do género, mas, de modo geral, Kent consegue pegar em vários clichés do cinema de terror e manobrá-los de modo a criar uma obra final de grande eficácia e que realmente funciona como um perturbador filme que tenta amedrontar a sua audiência.

 O filme retrata uma magnificamente perturbada relação entre mãe, Amelia (Essie Davis), e o seu jovem filho, Robbie (Daniel Henshall). Ela vive atormentada pela perda do marido, que morreu num acidente de viação quando conduzia a mulher ao hospital para o nascimento do seu filho, filho este que vive num mundo de fantasia em que não parece ser capaz de distinguir a fantasia da realidade, por vezes com consequências violentas. Ambos parecem quase estar numa competição para ver qual dos dois está mais irreparavelmente psicologicamente danificado. A mãe, por exemplo, nunca deixa o filho festejar o aniversário no dia do seu nascimento. A relação dos dois já é apresentada, inicialmente como algo estranho e com potenciais ramificações nocivas para os dois, algo que é apenas exacerbado com o aparecimento de um estranho livro.

 O livro conta a horrenda história do Sr. Babadook e do modo como este entra dentro de tua casa e te consome por dentro, devorando os seus habitantes. O livro parece tornar-se numa mancha de horror dentro do filme, lentamente destruindo qualquer sanidade que o par de mãe e filho ainda pudessem ter. Em muitos momentos do filme questionamos a veracidade dos horrores que vemos, que parecem ser, em parte, uma manifestação da loucura dos protagonistas, especialmente da instável figura maternal. Dependendo da cena em que nos encontramos conseguimos observar, ora no filho ora na mãe, a verdadeira monstruosidade do filme, enquanto em outras ocasiões parece que o parasítico Babadook é real e apenas vai aumentando o caos criado pelas duas instáveis figuras que compõem esta disfuncional unidade familiar.

 Este questionamento da realidade, dentro do filme, dos horrores sobrenaturais apresentados não é algo novo no panorama do cinema de horror, mas neste filme, Kent consegue, em grande parte a partir do prodigioso trabalho da atriz Essie Davis, criar um ambiente em que independentemente da realidade do monstro intruso, o que vemos não deixa de ser terrivelmente assustador, nem que seja apenas o rápido colapso mental de uma mãe e filho, que ao longo do filme acabam por se tornar os violentos agressores um do outro.

 Como já disse, parte do sucesso do filme deve-se ao trabalho da sua atriz principal. Davis consegue tornar Amelia um monstro, uma vítima e uma mulher a colapsar sobre si mesma, sem deixar de salientar a conturbada e errática relação desta com o filho. Amelia é sempre protetora do filho, mas por vezes vemo-la como a maior ameaça para o filho, algo que talvez até vejamos como compreensível quando olhamos o modo como o filme quase que bestializa a criança, especialmente a partir do uso do som e dos seus constantes gritos.

 O som é, aliás, um dos elementos técnicos de maior sucesso no filme. Ao longo do desenrolar da pavorosa trama o som parece ganhar um caráter personalizado, tornando grotescos e assustadores os sons comuns, ou elevando os sons emitidos pelos humanos no filme, a grunhidos e sons quase sobrenaturais. Nenhum som é, no entanto, tão grotescamente digno de pesadelo, como o som da figura monstruosa no centro da trama, cujo chamamento repetido é algo que pertence aos grandes anais da história do cinema de terror.

 O ênfase no som do monstro é algo perfeito, se considerarmos quão pouco vemos essa criatura. O filme nunca nos mostra o Babadook, apenas o definindo a partir da sua silhueta característica com um casaco largo e uma cartola, algo que parece ser uma perversão da imagem de Robbie com as suas roupas de ilusionista que ele tanto veste ao longo do filme. É muitas vezes sugerido pelo próprio filme que o Babadook e o seu livro serão apenas criações da mãe, uma antiga escritora de livros infantis, que numa das cenas do filme, aparece com as mãos cobertas de carvão semelhante àquele usado para desenhar o interior do livro.

O livro que, tenho a dizer, é um triunfo de criação de adereços, muito mais assustador que qualquer monstro. Os seus desenhos crus a preto-e-branco, as suas grotescas imagens que parecem retiradas de uma horrenda obra de expressionismo alemão, o modo como é um livro de pop-ups em que as figuras se vão revelando em movimentos articulados e perturbadoramente simples. A própria capa vermelha do livro consegue perturbar completamente a imagem do filme, que se foca, principalmente, na casa dos protagonistas, onde superfícies frias e escuras parecem dominar e onde o livro se apresenta sempre como um violento e arrepiante rasgo de vermelho, quase que prenunciando uma violência iminente.

 Também a montagem do filme é responsável pela sua particular atmosfera, muitas vezes cortando-nos o desenvolvimento lógico das ações, salientando o seu lado grotesco. Quando o livro é aberto pela primeira vez, por exemplo, Amelia começa a contar a história ao seu filho. A montagem, o som e a fotografia, vão-se precipitando sobre as páginas à medida que ambos os protagonistas se começam a aperceber da natureza sinistra do objeto que têm diante de si. Ao invés de nos mostrar qualquer desenvolvimento lógico na reação do filho, Kent corta imediatamente para algo que pressupomos esteja a acontecer mais tarde no tempo da ação, em que, sob o opressivo som do choro de Robbie, Amelia o tenta acalmar com um conto de fadas. A montagem vai, assim, diluindo as nossas noções de tempo, chegando mesmo a usar mudanças de iluminação para distinguir o dia da noite ou a deixar sons prolongarem-se depois da sua cena de origem ter terminado, criando assim uma perturbadora incerteza temporal que vai, constantemente, desorientando a audiência e colocando-nos no estado de confusão dos protagonistas na sua crescente privação de sono e sanidade.

É um filme, portanto, em que todos os componentes parecem estar a trabalhar em perfeita sintonia uns com os outros criando uma experiência deliberada e eficaz. Talvez o filme sofra de uma simplicidade textual e narrativa, mas mesmo assim, acho bem referir o final que, confesso, me conseguiu surpreender no seu perverso e inesperado compromisso, especialmente depois da noite infernal que marcou o clímax do filme.

The Babadook revela-se assim uma exemplar obra do cinema contemporâneo de terror, trazendo a mim, pelo menos, grandes expetativas no trabalho da sua realizadora e dando-nos uma oportunidade para observar um bem conseguido filme de terror, bem longe da completa incompetência que parecem caracterizar o género nos dias de hoje. O filme também nos oferece uma grande prestação de Essie Davis, que anteriormente me havia chamado a atenção em a Girl with the Pearl Earring, e que aqui se estabelece como uma verdadeira scream queen. Em suma, uma obra essencial para qualquer ávido fã do cinema de terror e mesmo para aqueles que normalmente se afastam desse género temendo a pura mediocridade, algo que, para mim, não se encontra em qualquer minuto deste filme.



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