O género do cinema de
terror é um dos mais fáceis de nos apaixonar e, paradoxalmente, um dos que, de
modo mais consistente, nos vai desiludindo, especialmente no panorama
cinematográfico contemporâneo. A recorrência a fórmulas cansadas e pútridas, a
falta de imaginação, a falta de virtuosismo na execução, etc. Mas, por vezes,
uma obra lembra-nos por que razão um cinéfilo se consegue tão facilmente
apaixonar por este particular género.
Apesar de recorrer a
muitas fórmulas e convenções do cinema de terror, Jennifer Kent conseguiu
alcançar com este filme uma exemplar obra do cinema de terror contemporâneo.
Por vezes, especialmente no último ato do filme, parece haver uma certa
derivação de outros grandes filmes do género, mas, de modo geral, Kent consegue
pegar em vários clichés do cinema de terror e manobrá-los de modo a criar uma
obra final de grande eficácia e que realmente funciona como um perturbador
filme que tenta amedrontar a sua audiência.
O filme retrata uma magnificamente
perturbada relação entre mãe, Amelia (Essie Davis), e o seu jovem filho, Robbie
(Daniel Henshall). Ela vive atormentada pela perda do marido, que morreu num
acidente de viação quando conduzia a mulher ao hospital para o nascimento do
seu filho, filho este que vive num mundo de fantasia em que não parece ser capaz
de distinguir a fantasia da realidade, por vezes com consequências violentas.
Ambos parecem quase estar numa competição para ver qual dos dois está mais
irreparavelmente psicologicamente danificado. A mãe, por exemplo, nunca deixa o
filho festejar o aniversário no dia do seu nascimento. A relação dos dois já é
apresentada, inicialmente como algo estranho e com potenciais ramificações
nocivas para os dois, algo que é apenas exacerbado com o aparecimento de um
estranho livro.
O livro conta a
horrenda história do Sr. Babadook e do modo como este entra dentro de tua casa
e te consome por dentro, devorando os seus habitantes. O livro parece tornar-se
numa mancha de horror dentro do filme, lentamente destruindo qualquer sanidade
que o par de mãe e filho ainda pudessem ter. Em muitos momentos do filme
questionamos a veracidade dos horrores que vemos, que parecem ser, em parte,
uma manifestação da loucura dos protagonistas, especialmente da instável figura
maternal. Dependendo da cena em que nos encontramos conseguimos observar, ora
no filho ora na mãe, a verdadeira monstruosidade do filme, enquanto em outras
ocasiões parece que o parasítico Babadook é real e apenas vai aumentando o caos
criado pelas duas instáveis figuras que compõem esta disfuncional unidade
familiar.
Este questionamento
da realidade, dentro do filme, dos horrores sobrenaturais apresentados não é
algo novo no panorama do cinema de horror, mas neste filme, Kent consegue, em grande
parte a partir do prodigioso trabalho da atriz Essie Davis, criar um ambiente
em que independentemente da realidade do monstro intruso, o que vemos não deixa
de ser terrivelmente assustador, nem que seja apenas o rápido colapso mental de
uma mãe e filho, que ao longo do filme acabam por se tornar os violentos
agressores um do outro.
Como já disse, parte
do sucesso do filme deve-se ao trabalho da sua atriz principal. Davis consegue
tornar Amelia um monstro, uma vítima e uma mulher a colapsar sobre si mesma,
sem deixar de salientar a conturbada e errática relação desta com o filho.
Amelia é sempre protetora do filho, mas por vezes vemo-la como a maior ameaça
para o filho, algo que talvez até vejamos como compreensível quando olhamos o
modo como o filme quase que bestializa a criança, especialmente a partir do uso
do som e dos seus constantes gritos.
O som é, aliás, um
dos elementos técnicos de maior sucesso no filme. Ao longo do desenrolar da
pavorosa trama o som parece ganhar um caráter personalizado, tornando grotescos
e assustadores os sons comuns, ou elevando os sons emitidos pelos humanos no
filme, a grunhidos e sons quase sobrenaturais. Nenhum som é, no entanto, tão
grotescamente digno de pesadelo, como o som da figura monstruosa no centro da trama,
cujo chamamento repetido é algo que pertence aos grandes anais da história do
cinema de terror.
O ênfase no som do
monstro é algo perfeito, se considerarmos quão pouco vemos essa criatura. O
filme nunca nos mostra o Babadook, apenas o definindo a partir da sua silhueta
característica com um casaco largo e uma cartola, algo que parece ser uma
perversão da imagem de Robbie com as suas roupas de ilusionista que ele tanto
veste ao longo do filme. É muitas vezes sugerido pelo próprio filme que o
Babadook e o seu livro serão apenas criações da mãe, uma antiga escritora de
livros infantis, que numa das cenas do filme, aparece com as mãos cobertas de
carvão semelhante àquele usado para desenhar o interior do livro.
O livro que, tenho a dizer, é um triunfo de criação de
adereços, muito mais assustador que qualquer monstro. Os seus desenhos crus a
preto-e-branco, as suas grotescas imagens que parecem retiradas de uma horrenda
obra de expressionismo alemão, o modo como é um livro de pop-ups em que as figuras se vão revelando em movimentos
articulados e perturbadoramente simples. A própria capa vermelha do livro
consegue perturbar completamente a imagem do filme, que se foca,
principalmente, na casa dos protagonistas, onde superfícies frias e escuras
parecem dominar e onde o livro se apresenta sempre como um violento e
arrepiante rasgo de vermelho, quase que prenunciando uma violência iminente.
Também a montagem do
filme é responsável pela sua particular atmosfera, muitas vezes cortando-nos o
desenvolvimento lógico das ações, salientando o seu lado grotesco. Quando o
livro é aberto pela primeira vez, por exemplo, Amelia começa a contar a
história ao seu filho. A montagem, o som e a fotografia, vão-se precipitando
sobre as páginas à medida que ambos os protagonistas se começam a aperceber da
natureza sinistra do objeto que têm diante de si. Ao invés de nos mostrar
qualquer desenvolvimento lógico na reação do filho, Kent corta imediatamente
para algo que pressupomos esteja a acontecer mais tarde no tempo da ação, em
que, sob o opressivo som do choro de Robbie, Amelia o tenta acalmar com um
conto de fadas. A montagem vai, assim, diluindo as nossas noções de tempo,
chegando mesmo a usar mudanças de iluminação para distinguir o dia da noite ou
a deixar sons prolongarem-se depois da sua cena de origem ter terminado,
criando assim uma perturbadora incerteza temporal que vai, constantemente,
desorientando a audiência e colocando-nos no estado de confusão dos protagonistas
na sua crescente privação de sono e sanidade.
É um filme, portanto, em que todos os componentes parecem
estar a trabalhar em perfeita sintonia uns com os outros criando uma experiência
deliberada e eficaz. Talvez o filme sofra de uma simplicidade textual e
narrativa, mas mesmo assim, acho bem referir o final que, confesso, me
conseguiu surpreender no seu perverso e inesperado compromisso, especialmente
depois da noite infernal que marcou o clímax do filme.
The Babadook
revela-se assim uma exemplar obra do cinema contemporâneo de terror, trazendo a
mim, pelo menos, grandes expetativas no trabalho da sua realizadora e dando-nos
uma oportunidade para observar um bem conseguido filme de terror, bem longe da
completa incompetência que parecem caracterizar o género nos dias de hoje. O
filme também nos oferece uma grande prestação de Essie Davis, que anteriormente
me havia chamado a atenção em a Girl with
the Pearl Earring, e que aqui se estabelece como uma verdadeira scream queen. Em suma, uma obra essencial
para qualquer ávido fã do cinema de terror e mesmo para aqueles que normalmente
se afastam desse género temendo a pura mediocridade, algo que, para mim, não se
encontra em qualquer minuto deste filme.
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