sexta-feira, 28 de novembro de 2014

BOYHOOD (2014) de Richard Linklater



 Será possível, quando deparado com um projeto tão ambicioso como esta mais recente obra de Richard Linklater, um crítico, ou mesmo um cinéfilo comum, separarem o produto final que vêem diante de si do conhecimento que têm da ambiciosa construção desse mesmo produto? Como é possível neste caso separar a realidade do filme final, da história e do conceito que acompanharam a sua longa filmagem? Será necessária, ou mesmo adequada, essa separação? Não será praticamente impossível ter uma opinião sobre este filme sem considerar a imensa ambição do seu realizador?

 Para quem não saiba, e francamente não sei quem é que já ouviu falar deste filme, sem ter conhecimento da proeza de Linklater. O filme foi filmado ao longo de mais de uma década, usando o mesmo elenco, incluindo membros deste que eram ainda crianças no início das filmagens. Nomeadamente, o filme acompanha de modo bastante íntimo e efetivo, o crescimento do seu jovem protagonista interpretado por Ellar Coltrane. Tal criação é de uma imensa ambição, tanto em termos de produção efetiva do filme durante um tão longo espaço de tempo, como em termos de ritmo e desenvolvimento narrativo de um tão extenso retrato do crescimento de uma criança aos primeiros anos da idade adulta, aqui quase marcado com a entrada na faculdade e a saída da casa dos pais, ou da mãe neste caso.

 Apesar desse lado em que o filme retrata intimamente o crescimento de um rapaz, devo dizer que, tendo em conta o filme final e seu desenvolvimento narrativo, o título de Boyhood é bastante infeliz. É um título que cria uma imensidão de expetativas e que parece pertencer a um filme mais generalista e universal, e ao mesmo tempo mais redutivo do que a obra que temos diante de nós.

 Talvez “A Family” ou o inicial “The Twelve-Year Project” tivessem sido títulos mais apropriados, pois apesar do inegável foco do filme no rapaz, no seu centro existe uma exploração bastante cuidada da vida de, pelo menos, três dos membros da família relativamente disfuncional no âmago do filme. Há que dizer que a jovem irmã do protagonista interpretada por Lorelei Linklater, a filha do próprio realizador, não é , nem de longe, tão desenvolvida ou explorada como as outras figuras presentes no filme, o que terá tido origem numa falta de interesse da própria atriz aquando de meados do projeto.

 Como já disse, o filme retrata a vida de Mason Evans Jr. Durante doze anos de existência, focando-se também, de modo bastante substancial, na sua relação com a sua mãe, Olivia (Patricia Arquette), com quem vive e o seu pai, Mason Evans, Sr. (Ethan Hawke), que durante o filme, apesar de carinhoso e caloroso, é uma figura de uma certa ausência e quase distância. Observamos dois desastrosos casamentos da sua mãe, um deles caindo mesmo numa relação abusiva e numa apressada fuga, assim como o aparentemente bem-sucedido segundo casamento do pai. Observamos Olivia passar de precariedade económica e desemprego a uma professora do ensino superior. O filme termina com a entrada de Mason na faculdade, depois de uma separação da namorada de liceu (Zoe Graham), cuja relação ocupa um lugar de relevo no filme, abrindo-se assim, no final do filme, um novo capítulo na vida do protagonista, um novo capítulo que não seguimos, terminando o filme com um passeio durante o dia da chegada de Mason aos seus dormitórios.

 Uma das coisas que tenho já de dizer é que este é um filme que, apesar do seu ambicioso processo de filmagens, mostra no seu modo de retratar a vida das suas figuras, uma grande modéstia e um caráter de calmo observador, não forçando à vida desta família um ritmo dramático ou mesmo dramaturgicamente funcional, sendo que tenho de apontar este filme como um dos melhores retratos do ritmo errático, que muitas vezes marca o passar dos anos nas nossas vidas. É um filme, cujo enorme impacto, pelo menos para mim, não proveio de uma assombração técnica ou ideológica com cenas específicas, mas sim com a observação acumulativa de doze anos de vidas fictícias, que, aquando do fim das quase três horas do filme, deixam no espectador um impacto arrasador.

 Quando falo da modéstia formal do filme, não pretendo criticar negativamente o trabalho de Linklater, que julgo ser dos mais prodigiosos observadores do ser humano comum no panorama do cinema americano contemporâneo. A simplicidade do filme coloca afincadamente a atenção do espectador no desenrolar das vidas nelas retratadas, que nunca parecem retratadas por Linklater de forma demasiado sentimentalista, mas que também nunca caem numa frieza distante. O filme consegue manter esse equilíbrio de uma intimidade calorosa e não sentimentalista. Para além disso, presumo que o estilo simples do filme, tenha permitido um maior disfarce e controle do seu aspeto final, cujas filmagens se expandem por mais de uma década de avanços técnicos.

 Não é que este tipo de retratos do crescimento já não existam na história do cinema, mas não me consigo lembrar de nenhum que comprima em si doze anos de vida ficcionada, e que acompanhe de tal modo o crescimento dos seus atores. Aliás, o crescimento de Coltrane é um dos aspetos mais curiosos e até mais erráticos do filme, sendo que é bem visível, na sua prestação, a evolução como ator de Coltrane, desde o casual naturalismo inocente do rapaz de seis anos, ao ator mais preocupado e mais adulto que vemos nos momentos finais do filme, passando pelos primeiros anos da adolescência em que se parece verificar uma falta de conforto com a câmara e com o próprio comportamento corporal do ator. Parece alguém que se começa aperceber da sua condição de ator filmado. Compreendo que isso possa ser um aspeto negativo para muitos, mas para mim, manifestou-se como um retrato duplamente interessante da maturação de um indivíduo. O modo desajeitado da interpretação nesses anos que marcam o meio do filme, parece apropriado aos anos retratados nessa mesma parte. O filme alcança assim uma estranha e, diria eu, praticamente única, u simbiose entre ator e personagem sob o olhar de uma câmara.

 Mas se Coltrane mostra uma desajeitada, mas incrivelmente fascinante evolução na sua interpretação de Mason, Hawke e Arquette são simplesmente sublimes na sua evolutiva e imensamente segura interpretação dos pais do protagonista. Arquette em particular, parece ser limitada pela estrutura do filme que vai mostrando partes dos anos que retrata, estando sempre a recorrer a uma imensidão de saltos temporais. Mas essa limitação é por Arquette maravilhosamente usada, criando um complexo retrato, por vezes contraditório, mas sempre reminiscente da vida real. Veja-se a sua fragmentada evolução de uma mulher jovem, solteira, com dois filhos e um péssimo gosto em homens, à professora universitária, cansada, madura, com três casamentos falhados e apercebendo-se da solidão que, possivelmente, a espera com a ausência dos dois filhos. Os seus momentos finais são particularmente exemplares, e lembram ao espetador o passar dos anos e quanto já passámos com a família. Este tipo de identificação alcançada pelo filme será uma das razões que consegue de modo tão particular estabelecer uma intimidade com a audiência e com a família que retrata. Não que Hawke também não seja notável aqui. Ele que já é bastante reconhecível de outros filmes de Linklater, também é bastante beneficiado pelas suas entradas e partidas ao longo do filme, uma presença ora ausente ora essencial e presente, Hawke consegue, de modo bastante mais linear e diferente de Arquette, estabelecer a evolução contínua de Mason Sr., desde um pai despreocupado e até irresponsável, a um pai de família que trocou o seu carro desportivo por uma minivan.

 O resto do elenco tem variáveis níveis de sucesso, sendo que o seu trabalho é sempre dificultado pela estrutura do filme que parece estar continuamente a apresentar figuras novas, algumas pessoas que permanecem e outras que se vão perdendo ao longo dos anos. Talvez o único membro do elenco que eu diria, é bastante prejudicado pela estrutura do filme, seria Marco Perella como o padrasto e marido abusivo que marca o primeiro casamento de Olivia dentro do filme. A sua evolução até chegar aos níveis de abuso e alcoolismo vistos nas suas últimas aparições, é bastante abrupto e parece um pouco redutivo, tendo em conta o modo como os outros humanos nos vão aparecendo no filme. O modo como vamos conhecendo Mason, é particularmente interessante, vamos percebendo a pessoa que ele é, através do seu crescimento e da nossa prolongada observação, quase lembrando o modo como vamos conhecendo Adèle em La Vie d’Adéle do ano passado.

 Um aspeto que gostaria ainda de referir é o modo como Linklater prende o filme aos anos em que foi feito. Enquanto muitos criadores iriam procurar uma intemporalidade, o realizador parece querer procurar uma enorme especificidade temporal. Vejam-se as escolhas de músicas, muitas delas escolhas que eram inescapáveis nos anos em que o filme foi filmado. Veja-se o uso de eventos políticos específicos como a primeira campanha presidencial de Barack Obama. O próprio uso do lançamento do sexto livro da saga de Harry Potter, ou as discussões sobre o último filme das Star Wars, prende o filme temporalmente, e, a partir dessa enorme especificidade, penso que consegue alcançar um realismo e universalidade que de outro modo poderiam não se verificar.

 Admito que é difícil falar deste filme. Grande parte do seu impacto vem do simples facto de o vermos, de o experienciarmos e também do modo como, apesar da sua simplicidade e especificidade, o filme consegue lembrar-nos de momentos na nossa vida, Penso que para cada pessoa, a experiência será bastante distinta. O filme está cheio de momentos tremendamente prodigiosos no seu caráter de observação e penso que mesmo que não apreciemos a intimidade e simplicidade do filme, a ambição do realizador será suficiente para fazer desta obra, algo a não perder, algo a recordar e algo para refletir sobre. Para mim, esta foi uma maravilhosa criação de Linklater que se tem vindo a tornar um dos meus favoritos autores contemporâneos, e no final do filme, o impacto da observação de uma vida, foi tremendo. Talvez isso também provenha da minha proximidade com a própria idade de Mason, mas penso que todos, mesmo quem odeie o filme, conseguirá encontrar algum momento no filme que lhes lembre a sua própria realidade.


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