terça-feira, 25 de novembro de 2014

DEUX JOURS UNE NUIT (2014) d. Jean-Pierre & Luc Dardenne



 A nova fracassada aposta de Marion Cotillard ao prémio de Melhor Atriz em Cannes… Sei que não deveria começar este tipo de texto com uma referência à fome de prémios, mas tenho de dizer que, com o passar dos anos, a contínua falta de reconhecimento em Cannes ao trabalho desta atriz está a começar até a mim me deixar levemente irritado, por muito que aprove a performance da vencedora.

 Bem, agora que comecei de modo tão pouco apropriado, e tão pouco relacionado com a qualidade do filme, acho melhor referir algo como facto de que não sou, e duvido que alguma vez seja, um grande fã do trabalho destes dois irmãos belgas, que tanto sucesso têm tido internacionalmente. A obra dos Dardenne é usualmente caracterizada por uma grande procura pelo naturalismo, muitas vezes à custa de qualquer interesse visual. Os seus filmes são focados num estudo humano, focados no trabalho de ator e este filme não difere em nada do que acabei de referir.

 Em Deux Jours Une Nuit, os irmãos Dardenne trabalham pela primeira vez com alguém a que se pode dar o título de estrela, a luminosa Cotillard. O seu foco no trabalho de ator ainda se intensifica mais neste filme, pelo que presumo que os mais negativos detratores do filme o apontariam como apenas um exercício da atriz sem grande estilo ou técnicos acrescentados à película. Tais acusações estão parcialmente certas, tenho de admitir, mas não de um ponto de vista negativo.

 O filme é inequivocamente construído em torno da interpretação da sua atriz principal, e é desenvolvido a partir de uma engenhosa estrutura que permite a Cotillard mostrar várias facetas e possíveis reações da sua personagem face ao mesmo tipo de conversa, várias vezes no espaço de tempo do filme.

 Esta estrutura engenhosa de que falo, é intrinsecamente ligada ao guião da autoria dos Dardenne. Nele, a protagonista, Sandra, é informada que, depois de uma votação em que os seus colegas teriam de escolher entre perder os seus bónus ou Sandra perder o emprego, irá perder a sua posição numa fábrica de painéis solares. É-nos rapidamente informado que Sandra terá sofrido de uma depressão, cujas marcas ainda são bastante sentidas no seu comportamento, e que a votação terá sido injusta, pelo facto de terem sido ditas certas informações enganadoras acerca da possibilidade de outra pessoa ser despedida. Sendo assim é decidido que será feita nova votação. Frente a isto, a nossa protagonista, quase que sob coerção do marido e de uma amiga do trabalho, visita os seus colegas durante dois dias e uma noite, tentando convencê-los individualmente a votarem a seu favor.

 Talvez tenha gasto demasiado espaço nesta descrição do enredo, mas penso ser fulcral para a apreciação do filme. Este é um intrínseco e bastante franco retrato do nosso mundo atual e da situação económica europeia. Vemos aqui uma confrontação entre empatia para com outro ser humano e uma quantia de dinheiro, que no nosso clima económico, se revela necessária e indispensável em muitos dos casos visitados. Não se trata apenas de uma dicotomia simplista entre humanidade básica e egoísmo, e por isso tenho de elogiar bastante os Dardenne, que, a partir das várias repetições, conseguem maravilhosamente dissecar esta questão assim como explorar a humanidade inerente nas suas várias personagens, exploradas a partir de compridas cenas de diálogo, em que, apesar do seu estatuto de estrela e protagonista, Cotillard muitas vezes quase que recua para o background a partir do seu relativo silêncio e linguagem corporal.

 Um filme assim construído iria ser um enorme fracasso se a performance no seu âmago não funcionasse, ou pecasse pelo artificialismo óbvio, algo que está bem longe da realidade da interpretação de Cotillard. Se não fossem os píncaros a que a atriz tem chegado nos últimos anos de trabalho poder-se-ia chamar a este filme o grande triunfo, a joia a coroar a carreira desta atriz francesa.

 Ao longo do filme, Cotillard parece quase negar qualquer tipo de superioridade moral ou heroísmo, ela é uma figura bem distante da inspiradora Erin Brokovich de Julia Roberts. Muitas vezes parece que Sandra vai ser completamente paralisada pelo seu medo e pelo desespero, veja-se a sua linguagem incorporal, o modo como se encolhe perante os seus interlocutores mais agressivos. O seu andar cansado, o seu sorriso inescapável quando, a meio do filme um rasgo de boa sorte parece revelar-se no meio da miséria, são tudo elementos que tornam este um trabalho inesquecível desta atriz.

 E os irmãos Dardenne parecem compreender isso mesmo. Por vezes parecem fixar a câmara apenas para observar a atriz existir como a personagem, vejamos portanto uma cena em que Sandra anda de autocarro. Nada acontece, apenas vemos Cotillard beber água e olhar pela janela. Uma presença cansada e vivida, que teme a sua próxima confrontação. Em suma, é um trabalho que justificaria a existência do filme mesmo que os realizadores nada mais fizessem com o material.

 E é bem apontar que, apesar de sofrer de uma simplicidade e displicência visual típica do circuito do cinema independente com pretensões de naturalismo, este filme mostra, de algum modo, uma certa preocupação com a composição e a apresentação da imagem. Exemplo disso mesmo são as confrontações de Sandra com os seus colegas, em que Cotillard parece sempre separada do outro ator por linhas no espaço. Quer sejam esquinas, vedações, paredes de cores diferentes, entre outros, há sempre uma separação de Sandra, sempre uma isolação da protagonista.

 É, mesmo assim, um filme simples, Simples mas eficaz e graças à sua protagonista bastante marcante. Uma obra de cinema humanista, algo que é bastante reforçado no final, que quase funciona como um apelo dos Dardenne à empatia humana no mundo moderno onde vivemos e onde um emprego e a perda deste podem destruir as nossas vidas e levar-nos à miséria. Tenho de dizer que, por vezes, quando penso no final, tenho a impressão de que talvez tenha sido um puco forçado, mas, de novo, Cotillard faz com que funcione. Só no final vemos um verdadeiro ressentimento e fúria no comportamento da protagonista, ultrajada pela posição em que foi colocada pelos seus superiores, algo que não é atirado à cara dos espetadores mas que está presente nas leves escolhas da atriz. Só assim é que o final consegue funcionar sem recorrer a lamechices, sem puxar a lágrima e sem forçar a sua mensagem em demasia à sua audiência.


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