A nova fracassada aposta de Marion Cotillard
ao prémio de Melhor Atriz em Cannes… Sei que não deveria começar este tipo de
texto com uma referência à fome de prémios, mas tenho de dizer que, com o passar
dos anos, a contínua falta de reconhecimento em Cannes ao trabalho desta atriz
está a começar até a mim me deixar levemente irritado, por muito que aprove a
performance da vencedora.
Bem, agora que comecei de modo tão pouco
apropriado, e tão pouco relacionado com a qualidade do filme, acho melhor
referir algo como facto de que não sou, e duvido que alguma vez seja, um grande
fã do trabalho destes dois irmãos belgas, que tanto sucesso têm tido
internacionalmente. A obra dos Dardenne é usualmente caracterizada por uma
grande procura pelo naturalismo, muitas vezes à custa de qualquer interesse
visual. Os seus filmes são focados num estudo humano, focados no trabalho de
ator e este filme não difere em nada do que acabei de referir.
Em Deux
Jours Une Nuit, os irmãos Dardenne trabalham pela primeira vez com alguém a
que se pode dar o título de estrela, a luminosa Cotillard. O seu foco no
trabalho de ator ainda se intensifica mais neste filme, pelo que presumo que os
mais negativos detratores do filme o apontariam como apenas um exercício da
atriz sem grande estilo ou técnicos acrescentados à película. Tais acusações
estão parcialmente certas, tenho de admitir, mas não de um ponto de vista
negativo.
O filme é inequivocamente construído em torno
da interpretação da sua atriz principal, e é desenvolvido a partir de uma
engenhosa estrutura que permite a Cotillard mostrar várias facetas e possíveis
reações da sua personagem face ao mesmo tipo de conversa, várias vezes no
espaço de tempo do filme.
Esta estrutura engenhosa de que falo, é intrinsecamente
ligada ao guião da autoria dos Dardenne. Nele, a protagonista, Sandra, é
informada que, depois de uma votação em que os seus colegas teriam de escolher
entre perder os seus bónus ou Sandra perder o emprego, irá perder a sua posição
numa fábrica de painéis solares. É-nos rapidamente informado que Sandra terá
sofrido de uma depressão, cujas marcas ainda são bastante sentidas no seu
comportamento, e que a votação terá sido injusta, pelo facto de terem sido
ditas certas informações enganadoras acerca da possibilidade de outra pessoa
ser despedida. Sendo assim é decidido que será feita nova votação. Frente a
isto, a nossa protagonista, quase que sob coerção do marido e de uma amiga do
trabalho, visita os seus colegas durante dois dias e uma noite, tentando
convencê-los individualmente a votarem a seu favor.
Talvez tenha gasto demasiado espaço nesta
descrição do enredo, mas penso ser fulcral para a apreciação do filme. Este é
um intrínseco e bastante franco retrato do nosso mundo atual e da situação
económica europeia. Vemos aqui uma confrontação entre empatia para com outro
ser humano e uma quantia de dinheiro, que no nosso clima económico, se revela
necessária e indispensável em muitos dos casos visitados. Não se trata apenas
de uma dicotomia simplista entre humanidade básica e egoísmo, e por isso tenho
de elogiar bastante os Dardenne, que, a partir das várias repetições, conseguem
maravilhosamente dissecar esta questão assim como explorar a humanidade
inerente nas suas várias personagens, exploradas a partir de compridas cenas de
diálogo, em que, apesar do seu estatuto de estrela e protagonista, Cotillard
muitas vezes quase que recua para o background a partir do seu relativo silêncio
e linguagem corporal.
Um filme assim construído iria ser um enorme
fracasso se a performance no seu âmago não funcionasse, ou pecasse pelo
artificialismo óbvio, algo que está bem longe da realidade da interpretação de
Cotillard. Se não fossem os píncaros a que a atriz tem chegado nos últimos anos
de trabalho poder-se-ia chamar a este filme o grande triunfo, a joia a coroar a
carreira desta atriz francesa.
Ao longo do filme, Cotillard parece quase
negar qualquer tipo de superioridade moral ou heroísmo, ela é uma figura bem
distante da inspiradora Erin Brokovich de Julia Roberts. Muitas vezes parece
que Sandra vai ser completamente paralisada pelo seu medo e pelo desespero,
veja-se a sua linguagem incorporal, o modo como se encolhe perante os seus
interlocutores mais agressivos. O seu andar cansado, o seu sorriso inescapável
quando, a meio do filme um rasgo de boa sorte parece revelar-se no meio da
miséria, são tudo elementos que tornam este um trabalho inesquecível desta
atriz.
E os irmãos Dardenne parecem compreender isso
mesmo. Por vezes parecem fixar a câmara apenas para observar a atriz existir
como a personagem, vejamos portanto uma cena em que Sandra anda de autocarro.
Nada acontece, apenas vemos Cotillard beber água e olhar pela janela. Uma
presença cansada e vivida, que teme a sua próxima confrontação. Em suma, é um
trabalho que justificaria a existência do filme mesmo que os realizadores nada
mais fizessem com o material.
E é bem apontar que, apesar de sofrer de uma
simplicidade e displicência visual típica do circuito do cinema independente com
pretensões de naturalismo, este filme mostra, de algum modo, uma certa
preocupação com a composição e a apresentação da imagem. Exemplo disso mesmo
são as confrontações de Sandra com os seus colegas, em que Cotillard parece
sempre separada do outro ator por linhas no espaço. Quer sejam esquinas,
vedações, paredes de cores diferentes, entre outros, há sempre uma separação de
Sandra, sempre uma isolação da protagonista.
É, mesmo assim, um filme simples, Simples mas
eficaz e graças à sua protagonista bastante marcante. Uma obra de cinema
humanista, algo que é bastante reforçado no final, que quase funciona como um
apelo dos Dardenne à empatia humana no mundo moderno onde vivemos e onde um
emprego e a perda deste podem destruir as nossas vidas e levar-nos à miséria.
Tenho de dizer que, por vezes, quando penso no final, tenho a impressão de que
talvez tenha sido um puco forçado, mas, de novo, Cotillard faz com que
funcione. Só no final vemos um verdadeiro ressentimento e fúria no
comportamento da protagonista, ultrajada pela posição em que foi colocada pelos
seus superiores, algo que não é atirado à cara dos espetadores mas que está
presente nas leves escolhas da atriz. Só assim é que o final consegue funcionar
sem recorrer a lamechices, sem puxar a lágrima e sem forçar a sua mensagem em
demasia à sua audiência.
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