- Jean Genet
Antes de dizer o que quer que seja sobre este filme, tenho
de confessar, que, antes de o ver pela primeira vez, tinha
imensamente grandes expetativas em relação ao mesmo, especialmente após o meu
visionamento da medíocre tentativa de Jalil Lespert de capturar em filme a vida
de Yves Saint Laurent. Expetativas estas, que, foram ao mesmo tempo uma bênção
mas que também acabaram por se revelar como um terrível obstáculo, pelo menos
ao meu pessoal apreciamento do filme.
Haverá pouco a
apontar na prodigiosa realização de Bonello, mas o guião à volta do qual o
filme é construído é de uma irritante convenção, de uma típica e por vezes
confusa estrutura de filme biográfico que nada fazem para melhorar o filme, e
que se acabam por revelar como um peso mortal que tenta arrastar o filme para as
suas profundezas de mediocridade, enquanto a realização parece tentar levar o
filme a altas glórias formalísticas e de estilo cinematográfico.
Tal como o primeiro filme sobre Saint Laurent, que estreou
neste ano nas salas de cinema internacionais, o filme de Bonello tenta focar-se
em algumas décadas específicas na vida do criador, focando grande parte do seu
clímax no desfile da YSL de 1976, que acabou por marcar um dos maiores sucessos
na carreira deste. Ambos os filmes se focam também, em parte, na relação que
marcou tanto a vida pessoal como profissional do criador francês, a que
estabeleceu durante décadas com Pierre Bergé, assim como um caso de vários anos
com Jacques de Bascher, num período da sua vida marcado pela decadência e
toxicodependência. Ambos os filmes apresentam estruturas bem convencionais,
chegando este mesmo filme a insistir em sempre nos mostrar o ano em que a ação
se vai decorrendo, quase que marcando capítulos temporais, sendo que o ultimo
terço do filme parece perder qualquer noção de estrutura linear, caindo numa
caótica mistura de linhas temporais que lembra os esforços de Olivier Dahan na
sua biografia de Edith Piaf.
Mas antes de mencionar mais alguma parte dessa estrutura e
desse texto que, para mim, tanto prejudicam o filme em geral, penso que seria
de muito maior importância e, sem dúvida para mim, de muito maior prazer, falar
um pouco do assombroso estilo que marca o filme. Se à obra de Lespert faltava a
elegância e sofististicação de Saint Laurent aplicado a uma linguagem
cinematográfica, na obra de Bonello isso é o que está mais presente. Aqui,
Bonello terá conseguido estabelecer uma linguagem de opulência visual, de
exuberância dinâmica, e de precisão e detalhe, que mesmo em cenas em que
nenhumas das criações de Saint Laurent estão presentes, conferem ao filme uma
linguagem, sempre intrinsecamente relacionada com o mundo do seu protagonista.
Para ser sincero,
existem tantos momentos de exímio trabalho plástico neste filme, que me é
difícil escolher alguns momentos específicos para sublinhar. Tentarei ter algum
controle e apenas falar de alguns, mas asseguro quem quer que esteja a ler, que
será difícil neste ano se encontrar um filme de tamanho esplendor visual e que
de tal modo seja um festim de elegância e estilo para os olhos da sua
audiência.
Veja-se os primeiros encontros de Saint Laurent (Gaspard
Ulliel) com Betty Catroux (Aymeline Valade), e com Jacques (Louis Garrell). Em
ambas as ocasiões sentimos a excitante atração que se estabelece entre estas
figuras. Na primeira, a música e o trabalho de câmara parecem acompanhar, quase
que deliciando a figura coberta de cabedal preto de Valade, estabelecendo-a
imediatamente como uma figura visual, um objeto de maravilhosa beleza e
sensualidade. A câmara segue-a para a pista de dança, focando-se na sua cara em
êxtase, ela desprende o cabelo e nós percebemos a tentação de a obter, que
Saint Laurent imediatamente apresenta. A própria câmara nos leva nesta sedução
visual e sonora, criando nesta mulher uma imagem de inegável beleza. O facto de
grande parte da conversa entre a modelo e o criador se fazer olhando um espelho
não é acaso, reforçando ainda mais a completa preocupação com a glória da
beleza vazia. Aqui a beleza visual impõe-se a tudo.
Também no encontro com Jacques a
câmara, a cor, o movimento, tudo, criam uma atmosfera de sedução, sendo que a
câmara vai fazendo travellings horizontais ao longo de uma discoteca, seguindo
o olhar dos dois homens, num jogo de sedução sofisticada que quase se assemelha
a um lento e erótico jogo de ténis com o olhar. Haverá imagem mais luminosamente
erótica em todo o filme que a imagem de Louis Garrel, envergando um luminoso
smoking branco que o realça em comparação a toda a multidão e mesmo ao espaço
em que a negrura límpida e as cores vivas das luzes parecem dominar? Ele
aparece-nos, mordendo o dedo, numa provocação estabelecida com o olhar, criando
aqui um momento de absoluto triunfo no filme. O filme pode relatar uma
narrativa de decadência e desgraça, mas é impossível em momentos como este não
sermos também seduzidos por essa mesma gloriosa existência.
O filme realmente
encontra o seu triunfo quando se deixa levar pelos excessos das suas
personagens, pelos excessos e pelo luxo que a tudo se parecem impor,
suplantando tudo o resto. Em momentos chave do filme, o realizador parece
contrastar a glória das criações de Saint Laurent com o horror do mundo em que
o rodeia, veja-se uma inteligente montagem em split screen que mostra o passar
dos anos e que contrapõe imagens reais do mundo em conflito da época, como de
Maio de 1968, com as várias coleções de Saint Laurent, sendo que, apesar das
filmagens de arquivo ocuparem maior espaço na composição, o nosso olhar é
sempre atraído para a beleza, abandonando esses horrores históricos. Outra
ocasião, aquando do clímax do filme, será quando Bonello corta entre a glória
do desfile de 76, usando split screens que imitam as composições de Mondrian e
o movimento da camara como modo de tornar o próprio movimento dos tecidos algo
digno de êxtase, com os trágicos destinos que acompanharam algumas das figuras
do filme, fruto da sua decadência. Vemos, por exemplo, o moribundo Jacques,
cheio de manchas pela cara e morrendo de complicações consequentes da sua
seropositividade, a coser um urso de peluche velho. Existe aqui o perigo de se
cair num certo registo didático e moralista, mas a glória da moda é tão grande
na apresentação de Bonello, que a existência das imagens trágicas parece apenas
realçar a glória plástica das outras.
E não será essa
imagem de suplantação do conteúdo face ao estilo e à sofisticação algo apropriado
a um filme sobre Saint Laurent e sobre a moda em geral? Não serão as detalhadas
sequências em que acompanhamos o trabalho minucioso do atelier de Saint Laurent
na criação das roupas muito mais interessante e fascinante que as variadas
cenas do moribundo Saint Laurent? Uma crítica que tenho lido várias vezes em
relação a este filme terá a ver com a sua suposta superficialidade, a sua
frieza e falta de complexidade psicológica. Para mim o oposto ocorre, sendo que
desejaria que o filme fosse ainda mais superficial, e que essa suplantação do
conteúdo biográfico e convencional face a um estilo e a uma sofisticação
superficiais existisse em ainda maior exagero e evidência. Algumas tentativas
de exploração psicológica, como as alucinações de Saint Laurent, parecem-me
aliás bastante óbvias e até desinteressantes.
Este não é um filme
perfeito e padece de grandes males relacionados com o seu caráter biográfico,
mas mesmo assim, nos seus momentos altos, o filme chega a glórias imensas, a um
excesso estilístico que é refrescante na sua completa entrega à beleza e à
elegância, que a meu ver, é um triunfo num filme que tanto explora a obra de um
dos mais icónicos e célebres criadores de moda do século XX.
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