domingo, 16 de novembro de 2014

SAINT LAURENT (2014) de Bertrand Bonello

      




 O único critério de julgamento de um ato é a sua elegância.
- Jean Genet   



 Antes de dizer o que quer que seja sobre este filme, tenho de confessar, que, antes de o ver pela primeira vez, tinha imensamente grandes expetativas em relação ao mesmo, especialmente após o meu visionamento da medíocre tentativa de Jalil Lespert de capturar em filme a vida de Yves Saint Laurent. Expetativas estas, que, foram ao mesmo tempo uma bênção mas que também acabaram por se revelar como um terrível obstáculo, pelo menos ao meu pessoal apreciamento do filme.

 Haverá pouco a apontar na prodigiosa realização de Bonello, mas o guião à volta do qual o filme é construído é de uma irritante convenção, de uma típica e por vezes confusa estrutura de filme biográfico que nada fazem para melhorar o filme, e que se acabam por revelar como um peso mortal que tenta arrastar o filme para as suas profundezas de mediocridade, enquanto a realização parece tentar levar o filme a altas glórias formalísticas e de estilo cinematográfico.

 Tal como o primeiro filme sobre Saint Laurent, que estreou neste ano nas salas de cinema internacionais, o filme de Bonello tenta focar-se em algumas décadas específicas na vida do criador, focando grande parte do seu clímax no desfile da YSL de 1976, que acabou por marcar um dos maiores sucessos na carreira deste. Ambos os filmes se focam também, em parte, na relação que marcou tanto a vida pessoal como profissional do criador francês, a que estabeleceu durante décadas com Pierre Bergé, assim como um caso de vários anos com Jacques de Bascher, num período da sua vida marcado pela decadência e toxicodependência. Ambos os filmes apresentam estruturas bem convencionais, chegando este mesmo filme a insistir em sempre nos mostrar o ano em que a ação se vai decorrendo, quase que marcando capítulos temporais, sendo que o ultimo terço do filme parece perder qualquer noção de estrutura linear, caindo numa caótica mistura de linhas temporais que lembra os esforços de Olivier Dahan na sua biografia de Edith Piaf.

 Mas antes de mencionar mais alguma parte dessa estrutura e desse texto que, para mim, tanto prejudicam o filme em geral, penso que seria de muito maior importância e, sem dúvida para mim, de muito maior prazer, falar um pouco do assombroso estilo que marca o filme. Se à obra de Lespert faltava a elegância e sofististicação de Saint Laurent aplicado a uma linguagem cinematográfica, na obra de Bonello isso é o que está mais presente. Aqui, Bonello terá conseguido estabelecer uma linguagem de opulência visual, de exuberância dinâmica, e de precisão e detalhe, que mesmo em cenas em que nenhumas das criações de Saint Laurent estão presentes, conferem ao filme uma linguagem, sempre intrinsecamente relacionada com o mundo do seu protagonista.

 Para ser sincero, existem tantos momentos de exímio trabalho plástico neste filme, que me é difícil escolher alguns momentos específicos para sublinhar. Tentarei ter algum controle e apenas falar de alguns, mas asseguro quem quer que esteja a ler, que será difícil neste ano se encontrar um filme de tamanho esplendor visual e que de tal modo seja um festim de elegância e estilo para os olhos da sua audiência.

 Veja-se os primeiros encontros de Saint Laurent (Gaspard Ulliel) com Betty Catroux (Aymeline Valade), e com Jacques (Louis Garrell). Em ambas as ocasiões sentimos a excitante atração que se estabelece entre estas figuras. Na primeira, a música e o trabalho de câmara parecem acompanhar, quase que deliciando a figura coberta de cabedal preto de Valade, estabelecendo-a imediatamente como uma figura visual, um objeto de maravilhosa beleza e sensualidade. A câmara segue-a para a pista de dança, focando-se na sua cara em êxtase, ela desprende o cabelo e nós percebemos a tentação de a obter, que Saint Laurent imediatamente apresenta. A própria câmara nos leva nesta sedução visual e sonora, criando nesta mulher uma imagem de inegável beleza. O facto de grande parte da conversa entre a modelo e o criador se fazer olhando um espelho não é acaso, reforçando ainda mais a completa preocupação com a glória da beleza vazia. Aqui a beleza visual impõe-se a tudo.

Também no encontro com Jacques a câmara, a cor, o movimento, tudo, criam uma atmosfera de sedução, sendo que a câmara vai fazendo travellings horizontais ao longo de uma discoteca, seguindo o olhar dos dois homens, num jogo de sedução sofisticada que quase se assemelha a um lento e erótico jogo de ténis com o olhar. Haverá imagem mais luminosamente erótica em todo o filme que a imagem de Louis Garrel, envergando um luminoso smoking branco que o realça em comparação a toda a multidão e mesmo ao espaço em que a negrura límpida e as cores vivas das luzes parecem dominar? Ele aparece-nos, mordendo o dedo, numa provocação estabelecida com o olhar, criando aqui um momento de absoluto triunfo no filme. O filme pode relatar uma narrativa de decadência e desgraça, mas é impossível em momentos como este não sermos também seduzidos por essa mesma gloriosa existência.

 O filme realmente encontra o seu triunfo quando se deixa levar pelos excessos das suas personagens, pelos excessos e pelo luxo que a tudo se parecem impor, suplantando tudo o resto. Em momentos chave do filme, o realizador parece contrastar a glória das criações de Saint Laurent com o horror do mundo em que o rodeia, veja-se uma inteligente montagem em split screen que mostra o passar dos anos e que contrapõe imagens reais do mundo em conflito da época, como de Maio de 1968, com as várias coleções de Saint Laurent, sendo que, apesar das filmagens de arquivo ocuparem maior espaço na composição, o nosso olhar é sempre atraído para a beleza, abandonando esses horrores históricos. Outra ocasião, aquando do clímax do filme, será quando Bonello corta entre a glória do desfile de 76, usando split screens que imitam as composições de Mondrian e o movimento da camara como modo de tornar o próprio movimento dos tecidos algo digno de êxtase, com os trágicos destinos que acompanharam algumas das figuras do filme, fruto da sua decadência. Vemos, por exemplo, o moribundo Jacques, cheio de manchas pela cara e morrendo de complicações consequentes da sua seropositividade, a coser um urso de peluche velho. Existe aqui o perigo de se cair num certo registo didático e moralista, mas a glória da moda é tão grande na apresentação de Bonello, que a existência das imagens trágicas parece apenas realçar a glória plástica das outras.

 E não será essa imagem de suplantação do conteúdo face ao estilo e à sofisticação algo apropriado a um filme sobre Saint Laurent e sobre a moda em geral? Não serão as detalhadas sequências em que acompanhamos o trabalho minucioso do atelier de Saint Laurent na criação das roupas muito mais interessante e fascinante que as variadas cenas do moribundo Saint Laurent? Uma crítica que tenho lido várias vezes em relação a este filme terá a ver com a sua suposta superficialidade, a sua frieza e falta de complexidade psicológica. Para mim o oposto ocorre, sendo que desejaria que o filme fosse ainda mais superficial, e que essa suplantação do conteúdo biográfico e convencional face a um estilo e a uma sofisticação superficiais existisse em ainda maior exagero e evidência. Algumas tentativas de exploração psicológica, como as alucinações de Saint Laurent, parecem-me aliás bastante óbvias e até desinteressantes.

 Este não é um filme perfeito e padece de grandes males relacionados com o seu caráter biográfico, mas mesmo assim, nos seus momentos altos, o filme chega a glórias imensas, a um excesso estilístico que é refrescante na sua completa entrega à beleza e à elegância, que a meu ver, é um triunfo num filme que tanto explora a obra de um dos mais icónicos e célebres criadores de moda do século XX.



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