Um dos últimos
filmes que vi nesta ultima edição do DocLisboa foi a nova monumental obra de
Frederick Wiseman, In Jackson Heighs, onde este mestre do cinema documentário vira o seu olhar para o bairro
mais multicultural de Nova Iorque.
Frederick Wiseman
tem-se cimentado ao longo da sua carreira como um mestre do cinema
documentário, tanto que, hoje em dia, para apreciadores de documentários a sua
imagem é quase a de uma lenda viva. Um dos aspetos mais impressionantes da sua
filmografia é a sua surpreendente consistência de qualidade alcançada a partir
de um estilo que parece quase manifestar-se contra o toque autoral no cinema
documental. Wiseman é um observador, e os seus filmes, longe de parecerem
forçados, moldados ou manipulados por uma perspetiva de autor, têm sempre a
formidável característica de parecerem incríveis retratos de pessoas,
comunidades e instituições em que toda a glória do cinema provém da simples e
direta observação sem floreados ou manipulações desnecessárias.
Com composições
discretas e muitas vezes estáticas, recusa de som não diegético e de qualquer
manifestação textual do olhar do realizador, Wiseman explora o bairro de
Jackson Heighs em Brooklyn. Para um realizador que, especialmente nas suas mais
recentes obras, tem mostrado um colossal interesse em explorar as dinâmicas internas
de comunidades e instituições, este bairro, o mais diversificado dos EUA e
talvez do mundo, é um sujeito de miraculosa perfeição. E, na perfeita
continuação do seu trabalho recente, o filme consegue em pouco mais de três
horas estabelecer uma visão coletiva que pulsa de um humanismo latente e raro
no panorama do cinema contemporâneo.
O filme inicia-se com orações muçulmanas
seguidas de uma sequência numa sinagoga onde uma organização de seniores
homossexuais se reúne, e termina com um apelo à tolerância durante uma reunião
de uma organização de imigrantes latinos a discutirem os direitos dos
trabalhadores. Algo que se verifica logo nesta minha introdução é o modo como o
filme não retrata concretamente uma comunidade unificada e idilicamente
interligada mas sim uma conjunção de micro comunidades e grupos que coexistem
entre si.
Ao longo de In Jackson Heights seguimos uma
imensidão de indivíduos e grupos e inúmeras vezes ouvimos essas mesmas pessoas
a descreverem como se integram nesses mesmos grupos. O realizador consegue
estes momentos de apresentação e exposição pessoal não pela entrevista
tradicional, mas por uma fixação nesses momentos comunitários em que os
diversos indivíduos interagem com a sua comunidade e consequentemente interagem
e apresentam-se à audiência que os observa a partir da construção de Wiseman.
Vamos, por consequência, começando a identificar histórias de vida nas várias
pessoas que por vezes apenas aparecem no background dos momentos gravados pelo
realizador. E é precisamente aí que eu julgo estar o génio do filme.
Atualmente aclamamos
noções de igualdade enquanto, paradoxalmente, fechamos as pessoas em caixas
cada vez mais específicas de identificação social. Etnicidades, heranças
culturais, línguas, sexualidades, géneros, classes sociais, etc. O que Wiseman
acaba por fazer, como que subvertendo a ideia de uma comunidade criada por um
conjunto de grupos e microcosmos sociais, desenvolvendo como que uma celebração
da diversidade que foge às falácias desinteressantes e clichés da retórica que
parecem corroer as conversas sobre igualdade que hoje em dia temos. Ao retratar
Jackson Heights, numa derradeira análise, mais que uma comunidade ou um
conjunto de comunidades, Wiseman cria uma visão de uma imensidão de vidas
individuais e diferentes. Não admira, portanto, que o autor termine o filme num
apelo à tolerância e, de certo modo, à diferença.
Mas In Jackson Heights não é somente uma
luminosa construção de humanismo cinematográfico mas também uma perfeita
exemplificação de subtileza e eficiência autoral. Fazer um filme tão preso à
observação simples e com tal vastidão e ambição, sem deixar toda a experiência
cair no aborrecimento ou em momentos mortos é uma prova do génio absoluto de
Wiseman. O realizador, que também editou o filme, cria um ritmo de precisa e
magnífica leveza, pontuado por discursos compridos, momentos musicais, e
surpreendentes momentos de comédia humana, nunca tornando o filme numa
experiencia de maçadora documentação.
In Jackson Heights é tão impressionante e
miraculoso como National Gallery e At Berekely e talvez essa seja a única coisa
que possa deixar uma audiência reticente, Wiseman, por muito genial que seja,
encontrou o seu registo e continua a usá-lo em repetição consistente
simplesmente virando o seu olhar para diferentes sujeitos, substituindo a
grandiosidade artística e ancestral de um museu pela belissimamente grosseira existência
de um bairro em Brooklyn. Eu diria, no entanto, que tal tipo de pensamento é
desnecessário, senão simplesmente estúpido. Quando os resultados são tão
consistentemente perfeitos e quando a sua visão, por muito dissimuladamente
simples que seja, é tão única e característica no panorama cinematográfico
atual, o cinema de Wiseman é uma preciosidade que nunca deveria ser
menosprezada e In Jackson Heights é
mais uma joia a acrescentar à luminosa filmografia deste mestre do
documentário.
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