domingo, 1 de novembro de 2015

IN JACKSON HEIGHTS (2015) de Frederick Wiseman

 Um dos últimos filmes que vi nesta ultima edição do DocLisboa foi a nova monumental obra de Frederick Wiseman, In Jackson Heighs, onde este mestre do cinema documentário vira o seu olhar para o bairro mais multicultural de Nova Iorque.


 Frederick Wiseman tem-se cimentado ao longo da sua carreira como um mestre do cinema documentário, tanto que, hoje em dia, para apreciadores de documentários a sua imagem é quase a de uma lenda viva. Um dos aspetos mais impressionantes da sua filmografia é a sua surpreendente consistência de qualidade alcançada a partir de um estilo que parece quase manifestar-se contra o toque autoral no cinema documental. Wiseman é um observador, e os seus filmes, longe de parecerem forçados, moldados ou manipulados por uma perspetiva de autor, têm sempre a formidável característica de parecerem incríveis retratos de pessoas, comunidades e instituições em que toda a glória do cinema provém da simples e direta observação sem floreados ou manipulações desnecessárias.

 Com composições discretas e muitas vezes estáticas, recusa de som não diegético e de qualquer manifestação textual do olhar do realizador, Wiseman explora o bairro de Jackson Heighs em Brooklyn. Para um realizador que, especialmente nas suas mais recentes obras, tem mostrado um colossal interesse em explorar as dinâmicas internas de comunidades e instituições, este bairro, o mais diversificado dos EUA e talvez do mundo, é um sujeito de miraculosa perfeição. E, na perfeita continuação do seu trabalho recente, o filme consegue em pouco mais de três horas estabelecer uma visão coletiva que pulsa de um humanismo latente e raro no panorama do cinema contemporâneo.

  O filme inicia-se com orações muçulmanas seguidas de uma sequência numa sinagoga onde uma organização de seniores homossexuais se reúne, e termina com um apelo à tolerância durante uma reunião de uma organização de imigrantes latinos a discutirem os direitos dos trabalhadores. Algo que se verifica logo nesta minha introdução é o modo como o filme não retrata concretamente uma comunidade unificada e idilicamente interligada mas sim uma conjunção de micro comunidades e grupos que coexistem entre si.

 Ao longo de In Jackson Heights seguimos uma imensidão de indivíduos e grupos e inúmeras vezes ouvimos essas mesmas pessoas a descreverem como se integram nesses mesmos grupos. O realizador consegue estes momentos de apresentação e exposição pessoal não pela entrevista tradicional, mas por uma fixação nesses momentos comunitários em que os diversos indivíduos interagem com a sua comunidade e consequentemente interagem e apresentam-se à audiência que os observa a partir da construção de Wiseman. Vamos, por consequência, começando a identificar histórias de vida nas várias pessoas que por vezes apenas aparecem no background dos momentos gravados pelo realizador. E é precisamente aí que eu julgo estar o génio do filme.

 Atualmente aclamamos noções de igualdade enquanto, paradoxalmente, fechamos as pessoas em caixas cada vez mais específicas de identificação social. Etnicidades, heranças culturais, línguas, sexualidades, géneros, classes sociais, etc. O que Wiseman acaba por fazer, como que subvertendo a ideia de uma comunidade criada por um conjunto de grupos e microcosmos sociais, desenvolvendo como que uma celebração da diversidade que foge às falácias desinteressantes e clichés da retórica que parecem corroer as conversas sobre igualdade que hoje em dia temos. Ao retratar Jackson Heights, numa derradeira análise, mais que uma comunidade ou um conjunto de comunidades, Wiseman cria uma visão de uma imensidão de vidas individuais e diferentes. Não admira, portanto, que o autor termine o filme num apelo à tolerância e, de certo modo, à diferença.

 Mas In Jackson Heights não é somente uma luminosa construção de humanismo cinematográfico mas também uma perfeita exemplificação de subtileza e eficiência autoral. Fazer um filme tão preso à observação simples e com tal vastidão e ambição, sem deixar toda a experiência cair no aborrecimento ou em momentos mortos é uma prova do génio absoluto de Wiseman. O realizador, que também editou o filme, cria um ritmo de precisa e magnífica leveza, pontuado por discursos compridos, momentos musicais, e surpreendentes momentos de comédia humana, nunca tornando o filme numa experiencia de maçadora documentação.

 In Jackson Heights é tão impressionante e miraculoso como National Gallery e At Berekely e talvez essa seja a única coisa que possa deixar uma audiência reticente, Wiseman, por muito genial que seja, encontrou o seu registo e continua a usá-lo em repetição consistente simplesmente virando o seu olhar para diferentes sujeitos, substituindo a grandiosidade artística e ancestral de um museu pela belissimamente grosseira existência de um bairro em Brooklyn. Eu diria, no entanto, que tal tipo de pensamento é desnecessário, senão simplesmente estúpido. Quando os resultados são tão consistentemente perfeitos e quando a sua visão, por muito dissimuladamente simples que seja, é tão única e característica no panorama cinematográfico atual, o cinema de Wiseman é uma preciosidade que nunca deveria ser menosprezada e In Jackson Heights é mais uma joia a acrescentar à luminosa filmografia deste mestre do documentário.

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