Completam-se
hoje quarenta anos da morte violenta de Pier Paolo Pasolini, pelo que decidi
revisitar o seu mais polémico e controverso filme. Salò ou os120 Dias de Sodoma foi a sua derradeira
obra e talvez também a sua mais importante e indispensável, por muito horrendas
que sejam as visões aí contidas.
Com a sua Trilogia da
Vida composta por Decameron, Contos de Canterbury e As Mil e Uma Noites, Pier Paolo Pasolini
criou uma luxuriante exploração celebradora da vida, da sexualidade e da rudeza
de um passado primitivo, criando os mais leves e acessíveis filmes na sua filmografia
cheia de gritantes reflexões políticas. Depois de tal felicidade
cinematográfica Pasolini virou-se, no entanto, para aquele que seria o seu último
filme, assim como o seu mais violento e difícil de ver. Supostamente adaptado
da derradeira obra, que nunca foi terminada, do Marquês de Sade, Salò ou os 120 Dias de Sodoma revelou-se
como uma das mais controversas obras na história do cinema, e deveria também
ter sido o início de uma segunda Trilogia, desta vez sobre a Morte, que o autor
italiano nunca conseguiu completar tendo sido assassinado pouco tempo depois da
finalização desta formidável e aterradora obra.
Mais do que seguindo
uma narrativa adaptada da obra de Sade, Pasolini, tal como aponta na
bibliografia que recomenda para o filme, parece extrair mais ideias de várias
obras de teoria académica que foram escritas sobre as perversidades do aristocrata
francês. No final, o que observamos é como uma peça académica do próprio
Pasolini, que no seu cinema sempre expôs as suas ideias e teorias a partir de
brutais e magnificamente cruas construções. Salò,
que explora o poder e a perversa visão de uma Itália Fascista, é o seu mais
violento e repelente filme, sendo, talvez por isso mesmo, o mais importante da
sua filmografia.
O filme retrata a
tortuosa história de um grupo de poderosos fascistas italianos que, nos últimos
dias do regime, levam um grupo de jovens, tanto rapazes como raparigas, para
uma propriedade em Salò onde durante vários dias, estes homens vão como que
jogando uma brincadeira de perversidades e controlo sobre estes seus
convidados/prisioneiros. A acompanhá-los está um pequeno grupo de prostitutas
envelhecidas que, numa precisa e mecânica ordem, vão contando histórias do seu
lúrido passado sexual. No final desta celebração horrenda, os jovens
prisioneiros são cruelmente mortos, mutilados e destruídos sob o olhar poderoso
e distante dos seus mestres.
As intenções de
Pasolini estão bem documentadas pela sua escrita e teoria, sendo que o autor
aqui usa o fascismo italiano como um sujeito para o seu mordaz julgamento, mas
também como um símbolo. Mais que uma reflexão chocante e alienante da história
política italiana, Pasolini desenvolve aqui um último grito de fúria para com o
mundo capitalista e desumano em que ele se encontrava. Um mundo em que a vida
humana parece regida pelos obscenos jogos de poder dos mais poderosos para com
os mais fracos e vulneráveis e onde o próprio sofrimento humano é tornado num
grotesco espetáculo de horrores.
A franqueza sexual,
que, por vezes, parece ser mais criticada que os horrendos atos de mutilação ou
escatologia, é do mais diferente que se possa imaginar dos seus filmes
anteriores. Na Trilogia da Vida, a sexualidade era inocente e prazerosa, como
que o fruto de uma existência segundo os ideias de Rousseau, enquanto nestes 120 Dias de Sodoma a sexualidade deixa
de ser uma manifestação física humana ou uma fonte de prazer, para se tornar
numa manifestação aterradora da posse de seres humanos por outros humanos. A
sexualidade diabólica e forçosa dos senhores é como que uma violenta metáfora
para o mundo que Pasolini via à sua volta. Se em Teorema, Accatone, Porcile e outras obras, a crítica do
autor tinha sido óbvia e violenta, meras palavras não conseguem completamente
descrever a força malévola por detrás das visões que Pasolini conjura neste
filme.
Há algo, no entanto,
de profundamente artificial e distante na construção da depravada história como
se as olhássemos de uma perspetiva fria e afastada pelo filtro da interpretação
puramente intelectual. Um formalismo rígido e desumano que impede a
visceralidade dos atos de atingirem um potencial de realismo insuportável. No
entanto, essa mesma falsidade palpável ajuda à consideração deste desfile de
horrores como um espetáculo para a audiência de cinema. No final, devido a tudo
isto, há algo de horrendamente acusatório no filme que oferece um cruel
julgamento sobre, não só as suas personagens, mas também sobre uma nação, sobre
o autor e sobre os próprios espetadores que se disponibilizam a observar esta
obra cinematográfica.
Isto devém
principalmente de uma precisão quase desumana na apresentação estilística de Salò. Composições que tornam as salas em
palcos completos com proscénios, uma brilhante construção cenográfica que
mistura um modernismo surpreendente com a arte fascista de geometrizações
precisas e impulsos futuristas, uma iluminação bela, figurinos teatrais na sua
elegância, música sedutora e leve, tudo isto cria uma das mais elegantes
criações do autor. Há uma opulência que quase relembra uma produção glamorosa e
respeitável dos estúdios europeus, mas que aqui é concedida a uma narrativa de
horrores humanos, e que é aqui empregue por um autor famoso pela crueza
primitiva do seu cinema. A própria elegância e agradável ambiente sonoro e
visual, se torna em sublime tortura para uma audiência que observa este
espetáculo de armadilhados prazeres e titilantes massacres.
O filme é imensamente
criticado, proibido e recriminado, mesmo por quem admira a retórica de
Pasolini, e tem sofrido acusações de amoralidade desde os seus primeiros dias,
fazendo desta talvez das mais conhecidas, se infames, obras do autor. É
difícil, e mesmo tolo, separar a reação quase física de nojo e fúria que uma
audiência tem de uma pura apreciação da obra como objeto cinematográfico, mas
quando isto se consegue fazer, Salò
emerge como das mais formidavelmente concretizadas visões de Pier Paolo
Pasolini. Raramente se viu um realizador mergulhar de modo tão controlado e
decidido na negrura absoluta do potencial do ser humano para o mal, assim como
no modo como as sociedades são construídas a partir de construções de poder e
subjugação, mesmo quando a liberdade se mostra como uma ilusória e atraente
fachada. Mas, ainda mais raro que tudo isto é observar-se a precisão
ensandecida de um mestre de cinema no píncaro das suas capacidades, onde tudo,
da montagem à caracterização, está marcado por um controlo de absoluta mestria.
Mesmo para quem odeie
o filme e se sinta repugnado pela sua mera existência, penso que Salò é uma obra essencial, uma cruel
exposição do lado diabólico da humanidade, tanto a que está presente no
comportamento das personagens, a que está presente na beleza desumana da
construção formal, e a que está latente na admiração ou no choque enfurecido do
seu público.
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