terça-feira, 3 de novembro de 2015

THE REMAINS OF THE DAY (1993) de James Ivory

Um Quarto com Vista sobre a Cidade, Regresso a Howards End e agora Os Despojos do Dia. Este trio representa o píncaro do trabalho da dupla Merchant Ivory e, apesar da sua convencionalidade, detém um impressionante poder na sua melancolia. Emma Thompson e Anthony Hopkins foram raramente tão devastadores.


 Duas figuras, um homem e uma mulher, estão sentadas à mesa de um salão numa região costeira de Inglaterra nos anos 50. Apesar da sua aparência severa e cinzenta, as pessoas à sua volta vestem-se coloridamente e algumas dançam numa pista visível da mesa dos dois indivíduos que conversam. Eles são Miss Kenton (Emma Thompson) e Mr. Stevens (Anthony Hopkins), ambos foram em tempos colegas de trabalho em Darlington Hall, uma casa aristocrática inglesa onde ambos ocupavam as posições de governanta e mordomo respetivamente. Os dois têm entre si o peso de uma relação que nunca chegou a acontecer, ambos mostram uma absoluta reticência e repressão nas suas palavras e ações, nunca dizendo realmente o que querem expressar, ambos calcificados nas posições e regras a que uma sociedade hierarquizada e anacrónica os condenou. A meio da sua conversa, em que Stevens tenta sondar e atrair Kenton a voltar ao seu posto em Darlington, ouvimos que uma personagem pela qual a audiência já estabeleceu uma relação próxima morreu. A informação é dada sem emoção ou importância dramática, a tragédia algo que se confunde com a negrura e melancolia que parecem consumir a atmosfera tanto do espaço como dos humanos que nele habitam.

 Essa magnífica cena é, talvez, o meu predileto momento em Os Despojos do Dia, um filme da célebre equipa formada pelo realizador James Ivory, produtor Ismail Merchant e argumentista Ruth Prawer Jhabvala que adaptou o romance de Kazuo Ishiguro para o filme sobre o qual aqui falamos. O filme em si, não se resume apenas ao encontro dos dois protagonistas nessa região costeira nos anos 50, passando-se principalmente nos anos que antecederam a 2ª Guerra Mundial e em que Stevens e Kenton trabalhavam juntos em Darlington Hall, servindo o perigosamente ingénuo e orgulhoso Lord Darlington (James Fox).

 Figuras silenciosas e sem opiniões próprias, em abnegação da sua própria condição como seres humanos, servos subservientes ao seu mestre, Kenton e Stevens são imagens dos perfeitos membros da classe servil, sendo que Stevens é mais mecanismo desumano que pessoa na sua fanática devoção ao seu dever como mordomo. Lord Darlington vai, ao mesmo tempo que a relação dos dois protagonistas se vai desenvolvendo em reticentes silêncios, vai-se aliando com a causa nazi, procurando uma suposta paz entre Inglaterra e Alemanha e organizando reuniões diplomáticas em sua propriedade. A sua trajetória é a de um tolo que vê na filosofia fascista uma validação da sua superioridade e posição na hierarquia social, um homem com ilusões de grandeza e perigosa ambição, a quem Stevens é completamente subserviente, que se define grandemente pela sua relação com Darlington. A queda de graça de Darlington corresponde a uma destruição de Stevens, que julgava cumprir o seu papel na História a partir do seu amo, ambos validando-se a partir de ingénuas estruturas e filosofias de poder e subserviência.

 Mas, antes de ser qualquer análise política da Inglaterra aquando da ascensão nazi na Europa, o filme de James Ivory é um romance uma tragédia de um amor frágil e silencioso, nunca confessado ou consumado. O mesmo não acontecerá na obra de Ishiguro, pelo que, de modo a manter a sua atenção fixamente na história de amor entre os dois protagonistas, o texto do filme é obrigado a simplificar, por vezes de modo grotesco e simplificador, o lado político e social do romance, acabando a subtileza e complexidade de Darlington e todo esse ângulo da obra literária, por estarem contidos na exímia e louvável interpretação de James Fox. O ator consegue insinuar as complexidades que Ivory, Merchant e Jhabvala parecem intentos em remover da narrativa, ou pelo menos abafar. Seguindo-se esta obra ao seu mais triunfante trabalho, Howards End, isto é uma enorme desilusão, especialmente quando consideramos a cortante precisão do texto e concretização desse filme e suas acídicas observações à sociedade inglesa.

  Apesar dessa relativa simplificação, essa equipa, que é sinónima de adaptações literárias de prestígio, não mostra aqui qualquer desleixo no que é talvez o mais significativo aspeto da sua filmografia conjunta, a criação de personagens complexas maravilhosamente interpretadas por elencos compostos por alguns dos mais ilustres e sonantes nomes do cinema britânico. Hopkins é um particular milagre, criando em Stevens uma tempestade de emoções reprimidas calcificada em forma de estátua humanoide. O modo como modula as suas expressões e linguagem corporal dependendo de quem está com ele em cena é de particular relevância, assim como a curiosa e vital escolha de fazer Stevens progressivamente mais solto e subtilmente energético à medida que envelhece, sendo que na parte do filme passada na década de 30, a sua linguagem corporal é de uma rigidez que, mais do que ser afetada, mostra uma assustadora autorrepressão crónica que se estende ao seu próprio movimento. Thompson tem uma personagem muito menos extrema, mas não por isso menos interessante. Lembro-me em particular do modo como, numa cena de efusiva e furiosa emoção, Thompson demonstra, em silenciosas reações, o modo como Kenton, apear da sua rebeldia superficial e jovialidade, é imóvel e presa por ação própria à sua posição hierárquica e profissional. Peter Vaughn, Christopher Reeve e Hugh Grant interpretam outros papéis cruciais, sendo que este último é particularmente brilhante, usando o carisma e efusiva vitalidade para definir uma figura que aparece apenas brevemente, mas cuja fúria e integridade enraivecida causam choques sentidos por todo o filme.

 Tão importante como o elenco é Darlington Hall, o magnifico casarão da aristocracia, cuja opulência contém em si um legado de história e rigidez social que esmagam todas as figuras humanas em si contidas. O modo como Ivory filma os atores, muitas vezes rigidamente posicionados em relação à arquitetura, em contraluz de modo a serem silhuetas negras contra as paredes requintadamente decoradas, ou vistos através de arcos, pórticos ou janelas, é pouco original mas inegavelmente eficaz. O espaço não é habitado por humanos, mas os humanos funcionam como extensão do espaço. A reconstrução histórica é, como seria de esperar, exímia e evita ser vistosa, tanto a nível de cenografia como de figurinos e caracterização. Na exatidão visual, e também sonora, do filme existe algo de frio e mecânico que é tão apropriado à narrativa como consegue ser um pouco cansativo ou mesmo desconfortável para a audiência, nunca sendo tão bem usado como semelhante exatidão e frieza no filme que antecede Os Despojos do Dia na sua filmografia.

 Tenho certas reservas em relação ao filme, especialmente em relação à abordagem romântica de Ivory e Jhabvala, mas, mesmo na sua distância e frieza, o filme é imensamente tocante. Há uma enorme potência emocional contida em reações silenciosas e pausas reticentes que outros filmes iriam perder ou ignorar, não possuindo a delicadeza exímia desta obra. Certos momentos como o final parecem descambar numa simplicidade nociva e desajeitada, mas na maioria do filme há uma perspicácia e subtileza primorosa pontuada por momentos de gloriosa sentimentalidade reprimida e frieza explosiva como o momento mencionado no início deste texto. Em cenas como essa, é fácil pensar no filme como num dos mais curiosamente arrebatadores e desoladores romances na oeuvre de Ivory, Merchant e Jhabvala.


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