Já vamos no
terceiro dia do LEFFEST ’15 mas acho que vale a pena relembrar o filme de
abertura. Anomalisa é o primeiro
filme de animação de Charlie Kaufman, sendo que Duke Johnson também assina a
obra. Apesar de grandes reservas que tenho em relação ao filme, Anomalisa é uma das experiências essenciais deste ano.
Durante os créditos
finais de Anomalisa, a mais recente
obra de Charlie Kaufman e o seu primeiro esforço no cinema de animação,
chegamos a uma porção em que se listam os nomes dos vários contribuidores que,
a partir do Kickstarter, financiaram o filme. Os nomes destes adoradores de
Kaufman são de um imenso número, sendo irrevogavelmente mais numerosos que os
nomes da própria equipa de produção do filme. Enquanto somos expostos a esta
parede de texto, uma cacofonia de vozes assalta os nossos ouvidos. Todas as
vozes são, contudo, do mesmo ator (Tom Noonan) no que é um dos marcos
estilísticos do filme. Durante Anomalisa,
Kaufman tece uma tragédia humana à volta da incapacidade de um homem se
relacionar com o resto do mundo, que ele vê como uma multiplicidade infinita da
mesma cara e voz. Muitas vezes, ao longo da história, várias pessoas proclamam
o seu amor pelo protagonista e neste momento que referi dos créditos, há algo
de inequivocamente inseparável entre o protagonista de Anomalisa e o próprio Kaufman. O autor, com o amor e adoração de
uma imensidão de fãs criou aqui uma obra de insular indulgência, onde nos pede
a pena lacrimosa e a simpatia, ao mesmo tempo que ignora o resto do mundo que
não a sua individual psique e frustrações.
Isto está longe de
ser uma novidade no trabalho de Kaufman. Praticamente todos os filmes escritos
por este autor têm como protagonista um homem bem-sucedido, branco,
heterossexual e solitário que demonstra problemas em se relacionar com a
realidade à sua volta. E, nesses filmes passados, nunca tive um problema com a
limitada perspetiva da sua visão e das suas preocupações mas penso que isso se
deveu maioritariamente a uma dose de humor, surrealismo e criatividade que
fazem dos seus filmes obras tão fascinantes. Em Anomalisa a criatividade regista-se, nem que seja a um nível de
simples técnica, o surrealismo marca presença, mas praticamente nada se vê do
humor que tanto caracteriza o usual trabalho do autor. Em Sinédoque Nova Iorque, a obra-prima máxima da sua voz autoral,
havia uma completa aceitação do ridículo e das limitações do seu protagonista,
e era a partir desse lado mais sardónico e irónico que o filme encontrava a
humanidade pulsante que tanto o caracterizou, como que emergindo do ridículo do
indivíduo. Anomalisa tem pouco tempo
para tais levezas, sendo um filme caracterizado por uma colossal sinceridade e
seriedade, de tal forma que parece forçar a sua tragédia humana na audiência,
ao invés de a deixar emergir do ridículo, do espetacular e do surreal.
Com isto não quero
afirmar que a sinceridade nunca resulta neste filme. De facto, Anomalisa obtém os seus mais gloriosos
momentos durante uma prolongada sequência em que Michael Stone (David Thewlis),
o protagonista, leva uma sua fã para o quarto de hotel em que habita por uma
noite e acaba por dormir com ela. A fã chama-se Lisa e apresenta uma face e voz
distintas da restante população. A sua voz é a de Jennifer Jason Leigh que
nesta alma entristecida encontra um dos melhores papéis da sua carreira
recente. Quando Kaufman e Duke Johnson, o co-realizador, observam estes dois
humanos, uma mulher que não espera o reconhecimento, apreciação ou simpatia do
mundo e um homem que não consegue evitar recusar tais simpatias à humanidade,
há algo de mágico na intimidade conjurada. Aqui sim, a sinceridade e seriedade
resulta, mas, infelizmente, o filme não é apenas uma curta-metragem sobre esta
delicada sedução e consumação, mas sim uma prolongada experiência da hubris de
um autor em aparente crise de meia-idade.
Por muito que me seja
difícil engolir a narrativa, a técnica demonstrada na execução deste filme é
estrondosa. Utilizando impressões em 3D, Kaufman e Johnson constroem um mundo de
figuras tão artificiais quanto humanas. Os corpos são realistas, assim como a
expressão, mas as faces apresentam as marcas da união das várias componentes da
marioneta, e as próprias proporções parecem, ocasionalmente, sugerir algo de
irremediavelmente desumano nas pessoas que povoam o mundo de Anomalisa. E não é só a animação das
figuras humanas a primar, sendo que os cenários, a música, o som e a belíssima
fotografia também demonstram uma impressionante construção formal. No entanto,
toda esta virtuosidade tem o deliberado efeito de provocar uma enorme alienação
entre as audiências e o drama humano que Kaufman quer espremer do seu
protagonista, pelo que longe do filme ser uma experiencia de comovente
humanidade, há algo de controlado e frio exercício estilístico durante toda a
experiência.
Com tudo isto dito,
tenho de admitir que, apesar dos seus numerosos defeitos e problemas, Anomalisa é uma das obras essenciais de
2015. Charlie Kaufman é uma voz imperdível no panorama do cinema contemporâneo,
mesmo quando se mostra indulgente consigo mesmo e estranhamente sério, e com
esta sua primeira obra de animação, o autor demonstra uma formidável nova
possibilidade para o mundo da animação stop-motion. Anomalisa
está longe de ser dos melhores filmes de Kaufman mas, na sua delicada passagem
central entre dois solitários humanos, há algo de efemeramente humano e intenso
e de uma beleza rara e fugaz tanto na totalidade do filme como no cinema
americano atual.
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