É difícil refletir
sobre Steve Jobs, o mais recente
filme de Danny Boyle, sem irremediavelmente cair numa comparação com The Social Network. Ambos os filmes
partilham o mesmo argumentista e, ao contrário do filme de David Fincher, Steve Jobs é uma obra totalmente
dependente da voz autoral de Aaron Sorkin. E é nesse completo domínio que
Sorkin tem sobre o filme que esta obra se depara com os seus mais colossais
problemas.
No entanto, há que elogiar Aaron Sorkin pela
generalidade do seu guião. A estrutura de Steve
Jobs é uma obra de ostentosa genialidade, construindo um retrato do
lendário fundador da Apple em volta de três longas sequências, todas elas
focadas nos minutos que antecedem a apresentação pública de um novo produto. Primeiro
o Macintosh em 1984, depois o Next em 1988, aquando da separação de Jobs da
Apple, e finalmente o do iMac em 1999. Ao longo deste drama de bastidores, duas
correntes narrativas parecem desenhar os contornos da visão de Sorkin sobre
Jobs. A arrogância megalómana do protagonista em relação aos vários
colaboradores que, de algum modo, o menosprezam ou duvidam da sua visão, e a
relação de Jobs com a sua filha Lisa.
A acompanhar esta brilhante estrutura, cuja
teatralidade é apenas exacerbada pela constante presença de palcos e
bastidores, está uma coleção das mais reconhecíveis características da obra de
Sorkin enquanto argumentista de cinema. Longos diálogos floreados, cheios de
humor inteligente, e irritantemente cientes da sua própria espetacularidade;
discursos feitos pelo protagonista masculino que demonstram e defendem a sua
superioridade; e um toque de perversivo conservadorismo moral que depressa cai
em melodrama sentimentalista. Estas características não são necessariamente
defeitos, mas sem um realizador que esteja disposto a moldar e catalisar o
texto de Sorkin, Steve Jobs acaba por
se tornar um exemplo perfeito das maiores problemáticas no estilo usual dos
textos deste célebre autor.
A narrativa do filme propõe-se a retratar e a
criticar a lendária figura de Steve Jobs, concretizando uma visão que tanto
disseca a humanidade imperfeita do homem como a sua genialidade, mas Steve Jobs não tem uma ponta da
sofisticação e complexidade que The
Social Network conseguiu alcançar. Como um filme, Steve Jobs comete o mesmo erro fulcral do seu protagonista, que é o
de veementemente acreditar na sua grandiosidade e importância, negando qualquer
outro tipo de visão contraditória. Não estou a dizer que Jobs não foi um génio,
mas o que vemos neste filme, apesar de uma estrutura invulgar, é o mesmo tipo
de retrato superficial e vazio que tantos outros filmes biográficos apresentam.
Sorkin nunca desvia o seu retrato de uma visão limitada do arquétipo do génio
arrogante e incompreendido, forçando a sentimentalidade da narrativa paternal
como modo de humanizar, como que por uma formula, a sua figura central. Sorkin
cria mais uma narrativa do anti-herói popular na ficção contemporânea, e
imensamente vazia, apesar de ilusoriamente sugerir alguma complexidade.
Apesar do que tenho afirmado,
Danny Boyle tenta acrescentar algo de cinemático ao texto de Sorkin,
conseguindo nunca perder a energia ao mesmo tempo que demonstra algumas ideias
formais com interesse. O uso da música e da fotografia para diferenciar os três
atos da narrativa é de particular genialidade, mas, como no resto do filme, apenas
a superfície consegue alcançar algo de genuinamente louvável. Flashbacks, montagens de transição e
ridículas projeções, demonstram a usual indisciplina do realizador, que nunca
parece muito interessado em juntar-se a Sorkin na dissecação das suas
personagens, estando contente com a simples ilustração. Para ser mais claro, volto
a lembrar The Social Network, em que
a frieza, distância e sofisticação de David Fincher mitigaram os maiores
problemas do estilo de Sorkin. Fincher evitou o melodrama e chegou à melancolia
de ares subtilmente trágicos, pegou no diálogo e mecanizou-o, retirando a
teatralidade inerente nos discursos grandiosos, e acrescentou ainda mais
complexidade à narrativa ao abordar todos os acontecimentos com uma surpreendente
frieza, que contrapunha as noções de importância pessoal das suas arrogantes
personagens.
Mas isto não é um
texto de celebração do trabalho de David Fincher, mas sim uma análise de Steve Jobs e, por muito que o filme seja
problemático como uma narrativa, ou como um estudo de personagem, na condição
de exercício para os seus atores, Steve
Jobs é um triunfo. Kate Winslet é o claro elo mais forte do elenco, apesar
de um inconsistente sotaque, mas todos estão de parabéns, sendo que Seth Rogen
e Jeff Daniels não eram tão impressionantes há anos. A única interpretação que
provoca algum desapontamento é, curiosamente, a de Michael Fassbender. A sua
presença é de um carisma supremo e os seus diálogos de uma precisão admirável,
não fosse ele um dos melhores atores do cinema atual, mas, no final, a sua
interpretação é tão prisioneira da superficialidade do guião como o resto do
filme. Jobs nunca me pareceu ser um ser humano, ou uma personagem complexa, mas
sim um arquétipo sem subtilezas, sendo que nem mesmo o ator consegue esconder
quão forçados no filme são os últimos momentos entre Jobs e sua filha.
Numa cena, Steve Jobs explica a Lisa o
significado da palavra anomalia e eu recordei-me de outro filme deste ano em
que um protagonista semelhante teve de explicar o mesmo a outra mulher chamada
Lisa. Tal como em Anomalisa, a
incapacidade do protagonista se relacionar normalmente com os seres humanos à
sua volta é um foco do filme, e tal como nessa obra de Charlie Kaufman, Steve Jobs peca pelo modo como cai na
arrogância e noção se superioridade da sua figura central. Ambos os filmes
almejam a uma complexidade humana que nunca conseguem alcançar, ambos se
revelando como primorosos exercícios técnicos, cheios de aspetos louváveis e
performances pulsantes, mas onde por detrás da respeitável e grandiosa
superfície apenas existe um triste vazio de ideias e nuance.
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