quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

GRAND BUDAPEST HOTEL (2014) de Wes Anderson




Se o que alguém procura como um cinéfilo é o equivalente cinemático de uma complexa, incrivelmente detalhada e decorada sobremesa, então não haverá melhor filme no panorama cinematográfico contemporâneo que a ultima criação do autor americano Wes Anderson.

Anderson que parece ter chegado à apoteose do seu característico estilo neste filme em particular. Todos os artificialismos intencionais, todo o detalhe exaustivo, diálogos quase de cartoon condimentados com uma complexidade linguística e com uma melancolia subversiva que os impedem de se transformarem em criações puramente infantis, um gosto por composições centradas e rígidas, uma procura por um estilo próprio e artificial no registo dos seus atores, etc. parecem ter sido perfeitamente cristalizados neste filme.

Será até possível estabelecer a evolução do realizador desde Rushmore, onde o seu caráter estilístico ainda jovem e preso a uma certa realidade, até aqui, onde qualquer dependência de um mundo real relacionado com aquele onde vivemos é apenas uma leve sugestão. A realidade é para este filme, o mesmo que uma maçã natural seria para uma das confeções de pastelaria colorida que aparecem pelo filme.

Para além de toda esta orgia estilística, temos ainda aquele que é talvez o mais complexo e barroco guião de Anderson, onde histórias são contadas dentro de histórias, numa verdadeira ode a esse ato de relatar uma história a outrem ao mesmo tempo que criam uma distância singular de qualquer realidade objetiva, já não fosse o festim visual e sonoro bastante indicação do mesmo afastamento. Mas essa complexidade textual estende-se também ao ridiculamente pormenorizado enredo, cheio de loucos acontecimentos que parecem pedir à audiência o mesmo tipo de aceitação de irracionalidade e fantasia que um sketch dos Loony Toones.

Poderei, com estas palavras estar a falar de um filme vazio, frio, uma sobremesa sem valor nutricional, um ridículo mas superficialmente divertido exercício técnico, mas penso que o filme vai para além de tão redutivas críticas. Para além de ser uma obra essencial para qualquer admirador da obra do autor americano, este filme proporciona em si mesmo uma fantástica e indubitavelmente deliciosa experiência cinematográfica, ou pelo menos foi o que proporcionou a este espetador em particular.

Como disse antes, o filme depende de uma estrutura em que observamos o contar de histórias dentro de histórias, sendo que o início é situado num cemitério em que uma jovem rapariga que nunca profere uma palavra no filme, observa um busto do autor de um livro que carrega. O livro tem o título deste filme e é a única indicação de tal denominação dentro do filme. Dessa cena passamos para Zweig (Tom Wilkinson) a relatar o livro, enquanto ainda estava vivo na década de 80, de onde passamos aos anos 60, quando um jovem Zweig (Jude Law) habitando o outrora célebre e luxuoso Grand Budapest Hotel, tem o seu interesse capturado pelo velho e misterioso proprietário desse mesmo hotel, Mr. Zero Moustafa (F. Murray Abraham). Dentro dessa narrativa passamos a outra, onde Moustafa nos relata, agora já dentro da principal narrativa do filme, a história de como passou de um refugiado de guerra na posição de lobby boy a proprietário do hotel e milionário.

Dentro dessa narrativa principal, o protagonista, para além do jovem Zero (Tony Revolori), é o mentor do jovem refugiado, o concierge do hotel, uma figura de proporções quase lendárias, M. Gustave (Ralph Fiennes). Esta brilhante criação de Anderson, apresenta-se como um homem de tempos passados, com um charme impossivelmente decadente e implausível, um gosto pelas melhores coisas que a vida e o dinheiro têm para oferecer, assim como um gosto, um tanto ou quanto oportunista, pelas mais velhas, ricas, loiras e solitárias hóspedes do hotel.
Uma destas mulheres é Madame D. (Tilda Swinton), que após morrer em circunstâncias bastante duvidosas, que apenas se tornam mais suspeitas depois de um vislumbre à sua família, especialmente ao seu repugnantemente vilanesco filho Dmitri (Adrien Brody), deixa a Gustav uma valiosíssima pintura, apesar das disputas dos seus outros herdeiros. Esta pintura e seu subsequente roubo vão levar as personagens a um delicioso enredo de sociedades secretas, homicídio, guerra eminente, monges misteriosos, e obras notáveis de pastelaria, sendo que explicar muito mais do enredo seria algo cruel da minha parte e uma tentativa fútil de condensação, grande parte do prazer do guião vem dos detalhes minúsculos que se espalham pelo filme.

Mas, pondo esse enredo para trás, há que falar da concretização da visão de Anderson, que nesta produção reuniu uma equipa composta, em grande parte, por personalidades com quem já havia trabalhado e que, em muitos casos, alcançam aqui, sob a direção de Anderson, algum do melhor trabalho das suas carreiras.

O elenco está recheado de caras reconhecíveis da obra passada do realizador e todos os intervenientes parecem dominar na perfeição o registo extremamente específico do filme e da obra geral do seu realizador. Ralph Fiennes como Gustav, concede ao filme uma prestação de absoluta perfeição, dando ao realizador a sua mais completa personagem e performance desde que este dirigiu Gene Hackman em The Royal Tenenbaums. É impossível imaginar outro ator a deliciosamente proferir o texto de Anderson e ao mesmo tempo a dominar o charme artificial da sua personagem, que para além de tudo parece sempre um homem cuja era já há muito passou e que, mesmo dentro do universo do filme, parece ser uma figura fantasiosa e cujo comportamento parece ir para além da realidade em que este existe.

Tilda Swinton como Madame D. tem apenas alguns momentos para estabelecer a presença da velha senhora que vai proporcionar o desenrolar do filme. Coberta de maquilhagem que a transforma na antiga mulher, Swinton é mais presença que atriz no filme, tornando a sua figura inesquecível no panorama de excentricidades do filme. Saoirse Ronana aparece-nos como uma visão de inocência e pureza, mais boneca de porcelana idealizada que ser humano, mas tudo isso funciona dentro do filme. Brody e Willem Dafoe apresentam-se como vilões a que apenas falta um comprido e requintado bigode para retorcerem entre os dedos. Jeff Goldblum mostra, tal como Fiennes, um talento delicioso para o diálogo de Anderson. F. Murray Abraham traz uma melancolia e um peso necessários ao filme, sem nunca resvalar do equilíbrio estilístico de que o sucesso do filme depende. Estes são apenas alguns dos atores que demonstram brilhante trabalho neste extenso elenco, mas falar de cada membro individual do elenco, gastaria mais palavras do que aquelas que seriam apropriadas este texto.

Para além do elenco, toda a concretização visual do filme é sublime, sendo que a cenografia é um milagre cinematográfico, apresentando o hotel em diferentes partes da sua existência com um luxo e uma atenção ao detalhe que parecem criar no enorme edifício um enorme bolo de várias camadas, cada uma mais maravilhosa que a outra. Os figurinos de Milena Canonero trazem ao elenco o visual de quase desenhos animados, em cores fortes e inescapáveis, mas que nunca descuram na elegância ou no luxo que permeia o filme como uma pátina reluzente e perfumada. Até o trabalho de maquilhagem é exemplar, quer seja na transformação de Swinton referida acima, quer seja nas cabeleiras elegantes da década de 30, ou na mancha que pinta a cara de Saoirse Ronan.

Todo este mundo visual é capturado pela câmara de Robert D. Yeoman, que alcança nesta sua colaboração com Anderson, sendo que esta tem sido uma associação que já dura há anos, um inegável triunfo. Para diferenciar as diferentes épocas e diferentes camadas de narrativa, são usados diferentes formatos, sendo que a maioria do filme é apresentada em 4:3. As cores, especialmente na narrativa principal, apresentam-se como a paleta cromática de uma embalagem de doçaria, cores fortes acompanhadas de pastéis agradáveis ao olhar, mas sempre bastante afastadas de qualquer realidade presente, basta olharmos para uma cena dentro do elevador do hotel, por exemplo, em que o vermelho das paredes e da indumentária de Tilda Swinton, parecem arder para fora da tela sem nunca desequilibrarem a imagem geral ou a composição. Há que dizer, aliás, que em toda a carreira de Anderson, este autor que filma os seus filmes com uma característica composição geométrica e rígida, preferindo centrar os elementos visuais e ter os atores a falar quase que diretamente para a câmara, nunca terão sido alcançadas tão belos exemplos do seu estilo visual, nem tão grandes sucessos de composição do frame.

 Acompanhando todo esta euforia para os olhos, vem ainda a banda-sonora, composta pelo bastante prolífero Alexandre Desplat, que vai acompanhando os ritmos do filme com aquele que é, talvez, um dos seus mais prodigiosos trabalhos.

Todo este palavreado para descrever a maravilha técnica e narrativa que é o filme, sem falar grandemente sobre o modo como Anderson equilibra tons e temáticas contrastantes. Pois para além da construção de uma deliciosa comédia, Anderson conseguiu colocar sobre o filme uma enorme melancolia, e uma tristeza que nunca se tornam melodramáticas ou trágicas. O filme começa num cemitério, como já disse, situando logo uma realidade narrativa em que todos os principais intervenientes já morreram há bastante tempo, e em que o mundo descrito no filme, uma Europa de luxo e de turismo requintado, há muito se perdeu nas chamas da História e do tempo. As próprias personagens, sendo Gustav o principal exemplo, parecem viver separadas do seu tempo, como se vivessem numa teatralidade consciente, interpretando uma fantasia nostálgica de uma realidade que já se extinguiu, algo que é, aliás, ponderado por Mustafa perto do final da sua melancólica história de uma vida passada.

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