Por vezes aparecem
filmes que me deixam feliz pelo simples facto de existirem, que a mim me
justificam a existência de cinema. Filmes que me deixam de tal modo feliz, de
tal modo extasiado, que me é extremamente difícil olhar para trás e refletir
sobre eles de modo frio e objetivo sem deixar que o afeto que ainda tenho da
minha visionação do filme contamine a minha perspetiva. Tudo isto para dizer
que Mommy, a quinta e mais recente
obra do jovem prodígio canadiano Xavier Dolan, é um desses filmes, mas que,
apesar de tudo isto, tentarei escrever um pouco sobre o filme.
Tal como as obras
anteriores de Dolan, com a possível exceção de Tom à la Farme, Mommy expõe-se
como um turbilhão de emoções fortes, personagens que parecem ter uma predileção
por gritar em vez de conversar, um estilo visual e auditivo cheio de
exuberância e extravagância estilística, e uma utilização prodigiosa da música,
especialmente de pop songs. Mas
enquanto em obras anteriores, o estilo de Dolan poderia mostrar uma certa
imaturidade estilística ou mesmo uma indulgência na sua ostentação, uma certa
experimentação emocionalmente caótica como em J’ai Tué ma mère ou uma exuberância idiossincrática e operática
como em Laurence Anyways, neste filme
o estilo de Dolan parece sempre estar em perfeita sintonia com a história
humana que Dolan se propõe a retratar e numa simbiótica relação com o próprio
desenvolvimento de personagem que tanto parece ser fulcral para o filme.
Essa história de que
falo desenvolve-se à volta de duas principais figuras, Diane (Anne Dorval)
conhecida como Die, e Steve (Antoine-Olivier Pilon). Uma mãe exuberante, quase white trash, e seu filho, cujo pai
morreu há alguns anos e que sofre de problemas psicológicos e problemáticos
ataques de uma grande agressividade e violência física mesmo contra a sua
adorada mãe, da qual parece, por vezes, doentiamente dependente. Forçados a
estarem juntos na mesma casa depois da expulsão de Steve de uma instituição
onde terá provocado um fogo na cantina, e onde já apresentaria um historial de
semelhantes incidentes violentos. Ambos encontram-se numa situação
economicamente precária, a conviver e a tentar viver com os problemas de Steve,
controlando-os e tentando alcançar uma vida melhor para ambos.
A acompanhar esta
aparentemente fútil luta por um futuro idealizado e por uma vida estável, vem
uma estranha vizinha de ambos, Kyla (Suzanne Clément), uma professora numa
pausa sabática que sofre de uma incapacitante gaguez, possivelmente originária
duma tragédia familiar que é aludida mas nunca exposta pelas personagens. Uma
figura que completa um trio de figuras problemáticas, de humanos difíceis e
abrasivos, mas que durante um certo espaço de tempo exposto no filme parecem
encontrar uma harmonia nas suas vidas apesar das mágoas que os atormentam e que
os levam muitas vezes a caminhos de aparente autodestruição.
E referindo essa
tragédia familiar que marca a personagem de Kyla, esse aspeto trágico é algo
que assombra todo o filme como uma nuvem negra sobre um mundo de exuberância e
dinamismo energético, algo que se abate sobre o filme desde a primeira
introdução textual de Dolan, em que o realizador contextualiza o filme num
Canadá semifictício em que uma lei imaginada por Dolan nos diz logo qual será o
destino de Steve e sua relação com Die. O final do filme é particularmente
melancólico, mas antes de falar mais sobre esses momentos finais acho bem
referir um pouco do estilo único de Dolan, que neste filme parece ter alcançado
uma enorme maturidade em relação a obras anteriores, como já referi
anteriormente.
Talvez o mais falado
elemento da mise-en-scène seja mesmo o seu formato 1:1, um quadrado perfeito,
algo que, admito, me deixou um pouco amedrontado quando vi as primeiras imagens
do filme. Tinha grandes dúvidas acerca dessa experiência, antecipando um filme
de uma desastrada claustrofobia visual e de grande superficialidade. O que
temos no filme não é de todo desastrado, sendo que Dolan parece completamente
dominar a composição no aspeto 1:1, alcançando, por vezes um filme bastante
claustrofóbico, mas de modo completamente controlado e deliberado. Basta
observarmos o modo como ele filma os seus atores, por vezes encurralando-os no
ecrã de tal modo que nenhum espaço vazio existe para além da imagem das suas
faces. Se tivermos em conta as emoções e o registo incrivelmente histriónico de
Dolan e Pilon, o ecrã parece por vezes não aguentar os seus protagonistas,
parecendo sempre estar em risco de explodir para fora da tela.
Também o som e a
música existem como modo de realçar estas emoções fortes das personagens, sendo
que a inescapável banda-sonora parece maioritariamente composta por canções
compiladas num CD para Die, pela parte do falecido pai de Steve. A própria
sonoridade do filme demonstra uma grande ostentação mas sempre em auxílio das
personagens e da criação do mundo em que elas habitam, nem que seja nas suas
conturbadas e desesperadas mentes. A música acompanha a intensidade emocional
dos atores e do guião, sendo impossível separar o filme da sua música tal como
é comum no trabalho do realizador.
Mas essa intensidade,
que parece demasiado grande para a tela de cinema reduzida a um quadrado
perfeito, é algo que nunca parece fugir para o registo operático de Laurence Anyways ou para a frieza
superficial e estilizada de Les Amours
Imaginaires, quase lembrando o idiossincrático mas sempre bizarramente
vivido e verossímil trabalho de Mike Leigh nos seus filmes. Quase que
apresentando este drama familiar como um filme do autor britânico filtrado pela
exuberância formal de Wong Kar Wai, uma das claras influências do jovem
realizador canadiano.
O filme, de toda a
obra de Dolan, é claramente aquele que apresenta mais complexas criações no que
diz respeito às personagens, sendo que o estilo de Dolan não é necessário para
as definir completamente, sendo mais um complemento, uma extensão da própria
trama do filme, acentuando e moldando as vidas dentro do filme num turbilhão de
dramatismo humano e formal. Veja-se os dois momentos no filme em que o ecrã se
estende, numa das ocasiões quase que fisicamente aberto por Steve numa sequência
em que tudo se parece ir resolver, em que a esperança reina e onde o trio
principal parece ter encontrado um equilíbrio de felicidade e de liberdade, sendo
isto interrompido por notícias que vão voltar a encurralar os protagonistas
numa situação ainda mais precária que no início do filme, pelo que o ecrã fecha
de novo no formato 1:1, encurralando a figura de Anne Dorval, confinando-a a
esse espaço reduzido, a essa cela visual.
Outro momento em que
o filme é “aberto” ocorre mais perto do final do filme que acima referi. Die
observa Steve e Kyla e começamos a ver uma montagem onde observamos o passar
dos anos e o aparente desfecho positivo da trama do filme. Observamos esse
ilusivo futuro melhor a ser alcançado por Steve, essa estabilidade, essa
felicidade tão desejada, essa liberdade. Mas começamos a apercebermo-nos que na
realidade, o que observamos não é o fim do filme, que tudo é demasiado
idealizado. A câmara está a desfocar demasiado, tudo parece demasiado abstrato.
O que vemos é apenas uma visualização dos desejos de Die, de um futuro
imaginário, de uma concretização de todos esses sonhos maternais em relação ao
seu filho. Não há nenhum momento mais destroçador em todo o filme como o
momento em que o ecrã se volta a fechar nesta montagem, destruindo qualquer
esperança de que o que vemos ser a realidade, anunciando a crueldade do mundo
real e suas consequências para as personagens. Se há algo que esta sequência
consegue é, para além de estabelecer esse sonho essa esperança avassaladora, a
de visualizar o amor maternal que o filme parece invariavelmente determinado a
elevar, a glorificar.
O filme não se
encerra, portanto, com essa montagem, sendo o seu real final uma literal e
vertiginosa corrida por uma liberdade talvez imaginária, talvez apenas
fictícia. Uma corrida desenfreada, cujo combustível parece ser uma simples e
intensa esperança por algo melhor, algo diferente. Um final que pode ser ora
trágico, ora esperançoso, pelo menos para mim, dependendo da nossa
interpretação e, sinceramente, do que queiramos observar na sua ambiguidade.
Ambiguidade que
parece um pouco incompatível com o que tenho referido em relação a exuberância
estilística e a intensidade emocional, mas uma ambiguidade que existe e que
também se manifesta em alguns momentos em que Dolan se parece retrair, não
explorando e expondo por completo o passado de Kyla, por exemplo. Mas apesar
disto, tenho de confessar que o filme poderá em certos momentos mostrar um
pouco de manipulação emocional, parece apelar por vezes a um grande
sentimentalismo, que, apesar de tudo, para mim acaba por resultar nessa
exaltação da figura maternal e do próprio amor de um filho por sua mãe.
Se em J’ai tué ma mère, Dolan explorou a
crueldade numa relação entre mãe e filho, mostrando rasgos de amor entre os
dois, obscurecidos pela abrasiva amargura dos dois, aqui vemos uma perspetiva
diferente, talvez mais amadurecida e mais vivida. Em Mommy observamos quase uma ode à figura da mãe, algo sempre
presente na obra de Dolan, mas que aqui atinge o seu expoente máximo, sendo que
essa ligação entre mãe e filho, essa conexão humana que parece desafiar toda a
lógica e que pelo final do filme é tudo o que nos permite agarrar à esperança
desesperada de Die pela felicidade de Steve. Mas apesar de tudo isso, Dolan
conseguiu aqui alcançar uma certa complexidade textual suficiente, em que Die
nunca nos é apresentada como uma santa, nunca é uma imagem distante e
glorificada, mas mais uma heroína comum e cheia de defeitos, uma criação humana
mas inegavelmente louvável e admirável no seu desespero de mãe e na sua
aparentemente contínua luta por um futuro melhor para si e para seu filho.
Há quem pense que
Dolan deveria atenuar o seu estilo exuberante, mas para mim, esta mais recente
obra, expõe o completo domínio de Dolan sobre as suas próprias ferramentas,
sendo capaz de criar o que no final se parece revelar como uma história de uma
procura incessante e talvez fútil por uma liberdade inalcançável, por vezes
apenas apoiada na esperança incessante de Die, essa maravilhosa protagonista de
Dolan. O filme está cheio de momentos que se recusam a desabitar o meu crânio,
perdurando ainda nos meus pensamentos, apesar do tempo que já passou desde que
vi o filme. Um filme portanto inesquecível, pelo menos para mim. E no final,
apesar de perceber que muitos vão olhar o filme como mais uma indisciplinada e
indulgente criação estilística de Dolan, continuo feliz pela existência de Mommy e pela experiência que me
proporcionou nessas surpreendentemente velozes duas horas que compõem esta
bizarra e inequivocamente tragédia humana de uma mãe e seu filho.
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