Pergunto-me por
vezes, o que é que compele os grandes mestres a recorrerem à simplicidade e à
depuração do estilo nas suas obras finais. Vejam-se Bergman ou Dreyer. Não que
o filme de que pretendo escrever aqui seja o filme final do mítico enfant terrible do cinema americano
Orson Welles. O seu último filme completo viria apenas em 1978 com a sua
reflexão acerca da filmagem do seu Otelo.
The Immortal Story ou Histoire Immortelle foi uma produção criada para a televisão
francesa em 1968 e que consiste numa breve adaptação de uma das obras de Karen
Blixen. Nela, um velho e decrépito americano a viver em Macau, utiliza o seu
dinheiro e poder para encenar uma história que já tinha ouvido antes, decidido
a transpor a ficção falsa para a realidade. Um homem rico convida um marinheiro
a visitar a sua casa, jantam e o marinheiro é conduzido à mulher do velho
miserável, fazem amor durante a noite e o marinheiro parte de manhã. O velho
americano, o Sr. Clay (Orson Welles) consegue criar esta ficção na sua
realidade, mas ao amanhecer do dia e do seu triunfo vazio, morre, enquanto, por
sua vez, o marinheiro promete nunca contar a sua história a ninguém, tornando
ocos os últimos momentos triunfantes da vida do obsessivo e estranho encenador
de vidas alheias.
Repare-se na
expressão de encenador que usei acima. De uma perspetivo pessoal, este trata-se
de um filme sobre um encenador, ou mesmo sobre um velho e cansado realizador,
talvez um leve autorretrato de Welles? Clay cria em si a figura magistral de um
autor, que manipula os seus atores de modo a obter a sua ficção desejada.
Existe mesmo, dentro do texto do próprio filme uma comparação dos atores de
Clay a marionetas nas suas mãos, com o que ele criaria a sua história. Esta história imortal que nunca teria passado
de uma história se não fosse a mão de Clay na sua transposição para a
realidade.
A própria
estruturação do filme lembra uma certa teatralidade, com o seu elenco limitado
e grande ênfase no texto, chegando mesmo o filme a abrir com um voz-off
expositivo que descreve a medonha figura de Clay. Há que não esquecer a ligação
forte de Welles para com o teatro, apesar de ser hoje em, dia maioritariamente
lembrado pelo seu trabalho em celuloide, Welles tinha uma certa presença no
teatro americano. O seu gosto por Shakespeare, por exemplo, levaria a três
adaptações cinematográficas de obras do bardo, Macbeth, Othello e Chimes at Midnight.
Essa última adaptação
de Shakespeare é de particular interesse. Foi a obra que imediatamente antecede
o filme explorado neste texto, tendo sido estreado em 1965. Tal como este
filme, também foi uma produção apoiada por fundos europeus, nesse caso
espanhóis e tal como esse filme, apresenta uma visão quase monstruosa e decididamente
grotesca do velho e corpulento Welles. Se bem que ao olharmos para o filme de
65, vemos uma figura simpatética e francamente patética, enquanto na figura de
Clay apenas vemos um miserável velho, patético sim, mas quase assustador na sua
apresentação.
Clay aparece
maioritariamente sentado, quase nunca de pé, É maioritariamente uma figura
estática à volta da qual os seus atores se movimentam. Vestido de negro parece
quase derreter para os seus acentos, é uma figura que já não parece pertencer
ao mundo dos vivos, um corpo embalsamado que ainda tem pretensões de viver a
partir da encenação da vida de outros no seu perverso teatro.
Estas suas marionetas
são um jovem e relativamente inocente marinheiro dinamarquês, Paul (Norman
Eshley), e a bela mas trágica Virginie (Jeanne Moreau) cujo pai havia
encontrado a miséria nas mãos de Clay e se havia suicidado, deixando a sua casa
vazia para Clay. A casa que outrora pertencera à família de Virginie é o espaço
onde maioritariamente decorre a ação. É-nos descrito através do diálogo de
alguns coscuvilheiros homens nas ruas de Macau, que antes de se ter suicidado,
o pai de Virginie, terá destruído todas as obras de arte que enchiam a sua
casa, deixando apenas os luxuosos espelhos franceses, para que Clay vivesse numa
casa povoada de retratos de um carrasco.
Nesta casa, Welles
cria um ambiente quase teatral, temos o quarto cuja decoração lembra o
barroquismo visual de outros filmes de Welles, e que funciona como a nossa área
de representação, o nosso palco. Os bastidores são onde Virginie se maquilha e
prepara de modo a esconder as marcas dos anos e a sua face cansada e matura.
Aqui é particularmente evidente a sua condição como atriz. O seu papel é o de
uma inocente jovem, algo que Moreau com a sua enigmática mas decididamente
matura beleza, estava longe de representar.
A zona da audiência,
a plateia, é o terraço de onde Clay observa a noite dos amantes, através das
janelas para o exterior, cobertas de rendas, quase como uma cortina de cena.
Clay é a perversão de uma audiência, um voyeur da sua própria criação. Aliás, o
espetáculo parece escorregar por entre os seus dedos quando as naturezas
humanas dos atores entram em jogo, quase destruindo a meticulosa e fria criação
do encenador.
Welles filma o
encontro dos amantes de um modo que, apesar da estruturação do próprio guião,
parece fugir a quaisquer limitações teatrais, chegando a um pequeno e simples
triunfo de adaptação de teatralidade estilística a uma linguagem
cinematográfica. Os corpos e faces dos dois atores são filmados
maioritariamente em planos apertados, sendo que à sua volta se encontra uma
forte e quase sufocante brancura proveniente das cortinas de tule branco que
envolvem a cama. A câmara move-se através das cortinas e através dos corpos,
quase que reduzindo os humanos a paisagens vivas. A montagem expressiva e o ênfase
nos olhos de Moreau reforçam ainda mais a condição cinemática da situação.
Apesar de simples, este continua a ser um filme do mestre Welles.
No final do filme, a
Clay é deixado um búzio, à volta do qual se encerra o filme. Clay morreu no seu
triunfo oco e apenas lhe foi deixado um objeto liso e reluzente, que no seu som
quase irreal, parece realçar a futilidade do trabalho de Clay na concretização
da ficção na realidade. Na sua morte, o encenador vê o seu trabalho completo,
mas condenado a nunca ser verdadeiramente conhecido pelo mundo. Estaria Welles
a se retratar a si mesmo, a se condenar ao esquecimento de Clay?
Este é, como já
disse, um filme relativamente simples quando comparado a outras obras de
Welles. Parece que aqui observamos um mestre cansado e em possível fim de vida,
algo que não aconteceu, sendo que F for
Fake de 1973 seria uma das suas mais energéticas obras. Mas apesar disto o
filme é fascinante na sua simplicidade. Moreau é uma presença inescapável nesta
terceira colaboração com Welles e o filme parece despertar várias reflexões
sobre o próprio trabalho do realizador.
Se há uma forte crítica
a fazer ao trabalho do realizador nesta obra, será no demasiadamente lânguido e
lento ritmo que parece arrastar o filme pelos seus curtos 60 minutos sem grande
propósito. Talvez o filme ficasse demasiado vazio se tivesse um mais fugaz
ritmo, mas o que acontece na obra que temos presente não me parece funcionar da
melhor maneira possível.
Apesar de
essencialmente esquecido face a outras mais célebres obras de Welles, penso
neste filme como uma obra essencial na sua filmografia, se não for por outra
razão que é talvez a sua mais pessoal reflexão sobre a sua relação com o teatro
e com o seu trabalho com a figura do ator.
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