quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

THIS HAPPY BREED (1944) de David Lean




  O uso de cor, tal como o uso de novas tecnologias na elaboração de projetos cinematográficos, sofreu vários tipos de utilizações aquando do seu aparecimento, sendo muitas delas apenas originárias de fins económicos e quase mercenários. A cor vendia e embelezava os filmes. Por vezes, bastante longe de qualquer intenção artística do autor, a cor era apenas uma ferramenta dos estúdios para obter mais fácil sucesso.

 Em Inglaterra, aquando dos anos de Guerra, os realizadores Michael Powell e Emeric Pressburger começaram a criar as suas obras em cores de uma intensidade sonhadora. Este par de autores realmente utilizavam a cor como parte de uma dramaturgia cinematográfica na criação das suas obras. Mas, se a cor dos filmes destes dois realizadores para a produtora Archers, era uma cor de tons luxuriantes e de uma beleza sobrenatural, então a cor utilizada por David Lean nesta sua primeira obra colorida é um parente bastante pobre dessas outras criações britânicas.

 Tenho de admitir que foi um choque para mim, aquando do meu primeiro visionamento do filme, observar o que seria o primeiro trabalho a cores do realizador de Summertime, Lawrence of Arabia e Doctor Zhivago. Onde estava a beleza estonteante dessas obras futuras? Neste filme as cores são mortas, ainda levemente irreais devido aos processos agora arcaicos de onde se conseguia este filme a cores, e para além disso são sujas e incrivelmente pouco atraentes. Mas é nessa mesma falta de beleza superficial que se esconde o génio de Lean, que, pelo menos no meu entender, terá sido dos primeiros realizadores a ver e utilizar a cor, não como uma ferramenta de beleza e luxo na criação de mundos quase irreais, mas sim na criação de um cinema realista mais perto da realidade que outras obras de estúdio filmadas sob a simplicidade atraente do preto-e-branco.

 Para ajudar nesse aspeto realista, a cenografia e figurinos também seguem uma linha de austeridade cromática, nunca “glamourizando” em demasia o espaço ou os humanos que nele se inserem. Há uma predileção por papel de parede feio e em cores mortas e por padrões pouco atraentes que apenas parecem saturar o espaço visual em que a ação se insere. Para além disso, até a caracterização dos atores parece ter sido trabalhada de modo a evitar as atraentes faces rosadas das grandes estrelas de Hollywood quando filmadas em luxuriante Technicolor.

 A cor como ferramenta do realismo será algo quase impensável quando olhamos para esta era do Technicolor em grandes produções de estúdio. Este uso da cor foi algo que mais tarde se veio a perder durante o realismo britânico dos anos 60 e sua predileção pela simplicidade do monocromo.

 Pois bem, depois de toda esta exploração dos méritos do uso da cor neste filme, talvez convenha falar um pouco do enredo do filme para que este não se pareça neste texto com uma suja mancha de cor sem qualquer contexto.

 Tenho de admitir que avancei para este filme com muito baixas espectativas. Para quem desconhece, este filme explora a vida de uma família tipicamente britânica durante três décadas, focando-se no período em que viveram numa modesta vivenda em Londres. Acompanhamos a família ao longo de vários percalços incluindo mortes inesperadas e de caráter trágico assim como a precipitação da 2ª Guerra Mundial sobre a população inglesa. O filme termina com a saída da família de casa, sendo que já só acompanhamos pelo final o marido e mulher que abriram o filme, tendo as histórias de seus filhos já se ramificado para fora dos limites da vivenda. O argumento terá sido criado a partir de uma peça de Noel Coward, sendo que as raízes teatrais do filme ainda se encontram bastante visíveis no produto final. É nesse nome de Noel Coward que se abatiam as minhas baixas espectativas.

 Já antes havia visto uma adaptação de outra peça de Coward acerca de décadas na vida de uma família tipicamente britânica e tenho de dizer que terá sido uma das mais sofredoras experiências que já tive como cinéfilo. E, verdade seja dita, não tinha grande vontade de repetir tal sofrimento. Mas este filme não é Cavalcade, e algo faz de This Happy Breed, uma obra infinitamente superior, esse algo é a realização de Lean que evita cair na funérea procissão de dignidade britânica do filme anterior, criando aqui um tocante, se bem que por vezes simplista, retrato de uma família da classe média inglesa.

 Basta olharmos para o modo como o jovem Lean inicia e encerra esta sua segunda longa-metragem (se contarmos o seu trabalho em Major Barbara, esta é a sua terceira longa). O filme começa então com um golpe de génio no modo como mostra em primeiro lugar e numa visão aérea, uma imensidão de vivendas nos subúrbios de Londres. São todas iguais, mas a câmara parece ter-se interessado por uma dessas casas em particular. A partir de uma série de dissolves vamo-nos aproximando da casa, acabando mesmo por entrar nesta através de uma janela do primeiro andar. Já no interior da habitação, os dissolves cessam e entramos num plano em movimento, sendo levados pelas escadas até estarmos defronte da porta principal da casa. O nosso olhar vai assim flutuando pelo espaço à medida que a música na banda-sonora se vai precipitando, parecendo anteceder a chegada triunfal de uma figura heroica. Mas não é nenhum herói mítico que entra pela porta em que nos focámos, mas sim uma família modesta e em nada incomum ou, diga-se, de particular interesse. Lean eleva assim a simplicidade do quotidiano a um nível de discreto heroísmo, sem nunca esquecer a sua condição como uma família no meio de tantas outras semelhantes nessa infinidade de casas iguais.

 O filme termina com um inverso deste plano. Aí vemos a família abandonar a casa pela porta principal, e com o fechar desta a câmara afasta-se, subindo as escadas e flutuando para longe da vivenda numa série de dissolves, em tudo o espelho do começo do filme.

 Mas não será só trabalho do realizador que torna esta uma obra exemplar do cinema britânico do período de guerra, também os atores fazem um excelente trabalho na concretização desta família de classe trabalhadora. Celia Johnson é particularmente eficaz, especialmente no modo como vai mudando a sua postura, velocidade e movimentos ao longo do filme. Aqui ela parece envelhecer através de uma fadiga em crescimento, muito mais do que a partir de quaisquer trejeitos ou tiques grotescos como, por vezes, acontecia no trabalho de outros atores, veja-se Greer Garson em Mrs. Parkington, do mesmo ano. Esta criação de Johnson está bem longe da elegância trágica que caracteriza o seu trabalho em Brief Encounter, a sua terceira colaboração com Lean.

 O filme não é perfeito, estando bastante preso a uma teatralidade que, por vezes, parece restringir negativamente os impulsos dramáticos da sua estrutura. Para além disso, existe uma tentativa de criar uma obra de valorização patriótica que tem tendência a cair no lugar-comum, sendo essa exaltação patriótica um dos aspetos menos bem conseguidos do filme.


 Apesar disso, esta é uma tocante obra em que permeia uma melancolia nostálgica, um sentimento de perda de uma vida que a guerra veio destruir. O filme como um retrato de uma família britânica é um relativo sucesso e um belíssimo passo no desenvolvimento da carreira daquele que seria um dos mais célebres realizadores britânicos do século XX.

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