O uso de cor, tal como o uso de novas
tecnologias na elaboração de projetos cinematográficos, sofreu vários tipos de
utilizações aquando do seu aparecimento, sendo muitas delas apenas originárias
de fins económicos e quase mercenários. A cor vendia e embelezava os filmes.
Por vezes, bastante longe de qualquer intenção artística do autor, a cor era
apenas uma ferramenta dos estúdios para obter mais fácil sucesso.
Em Inglaterra,
aquando dos anos de Guerra, os realizadores Michael Powell e Emeric Pressburger
começaram a criar as suas obras em cores de uma intensidade sonhadora. Este par
de autores realmente utilizavam a cor como parte de uma dramaturgia
cinematográfica na criação das suas obras. Mas, se a cor dos filmes destes dois
realizadores para a produtora Archers, era uma cor de tons luxuriantes e de uma
beleza sobrenatural, então a cor utilizada por David Lean nesta sua primeira
obra colorida é um parente bastante pobre dessas outras criações britânicas.
Tenho de admitir que
foi um choque para mim, aquando do meu primeiro visionamento do filme, observar
o que seria o primeiro trabalho a cores do realizador de Summertime, Lawrence of
Arabia e Doctor Zhivago. Onde
estava a beleza estonteante dessas obras futuras? Neste filme as cores são
mortas, ainda levemente irreais devido aos processos agora arcaicos de onde se
conseguia este filme a cores, e para além disso são sujas e incrivelmente pouco
atraentes. Mas é nessa mesma falta de beleza superficial que se esconde o génio
de Lean, que, pelo menos no meu entender, terá sido dos primeiros realizadores
a ver e utilizar a cor, não como uma ferramenta de beleza e luxo na criação de
mundos quase irreais, mas sim na criação de um cinema realista mais perto da
realidade que outras obras de estúdio filmadas sob a simplicidade atraente do
preto-e-branco.
Para ajudar nesse
aspeto realista, a cenografia e figurinos também seguem uma linha de
austeridade cromática, nunca “glamourizando” em demasia o espaço ou os humanos
que nele se inserem. Há uma predileção por papel de parede feio e em cores
mortas e por padrões pouco atraentes que apenas parecem saturar o espaço visual
em que a ação se insere. Para além disso, até a caracterização dos atores
parece ter sido trabalhada de modo a evitar as atraentes faces rosadas das
grandes estrelas de Hollywood quando filmadas em luxuriante Technicolor.
A cor como ferramenta
do realismo será algo quase impensável quando olhamos para esta era do
Technicolor em grandes produções de estúdio. Este uso da cor foi algo que mais
tarde se veio a perder durante o realismo britânico dos anos 60 e sua
predileção pela simplicidade do monocromo.
Pois bem, depois de
toda esta exploração dos méritos do uso da cor neste filme, talvez convenha
falar um pouco do enredo do filme para que este não se pareça neste texto com
uma suja mancha de cor sem qualquer contexto.
Tenho de admitir que
avancei para este filme com muito baixas espectativas. Para quem desconhece,
este filme explora a vida de uma família tipicamente britânica durante três
décadas, focando-se no período em que viveram numa modesta vivenda em Londres.
Acompanhamos a família ao longo de vários percalços incluindo mortes
inesperadas e de caráter trágico assim como a precipitação da 2ª Guerra Mundial
sobre a população inglesa. O filme termina com a saída da família de casa,
sendo que já só acompanhamos pelo final o marido e mulher que abriram o filme,
tendo as histórias de seus filhos já se ramificado para fora dos limites da
vivenda. O argumento terá sido criado a partir de uma peça de Noel Coward,
sendo que as raízes teatrais do filme ainda se encontram bastante visíveis no
produto final. É nesse nome de Noel Coward que se abatiam as minhas baixas
espectativas.
Já antes havia visto
uma adaptação de outra peça de Coward acerca de décadas na vida de uma família
tipicamente britânica e tenho de dizer que terá sido uma das mais sofredoras
experiências que já tive como cinéfilo. E, verdade seja dita, não tinha grande
vontade de repetir tal sofrimento. Mas este filme não é Cavalcade, e algo faz de This
Happy Breed, uma obra infinitamente superior, esse algo é a realização de
Lean que evita cair na funérea procissão de dignidade britânica do filme
anterior, criando aqui um tocante, se bem que por vezes simplista, retrato de
uma família da classe média inglesa.
Basta olharmos para o
modo como o jovem Lean inicia e encerra esta sua segunda longa-metragem (se
contarmos o seu trabalho em Major Barbara,
esta é a sua terceira longa). O filme começa então com um golpe de génio no
modo como mostra em primeiro lugar e numa visão aérea, uma imensidão de
vivendas nos subúrbios de Londres. São todas iguais, mas a câmara parece ter-se
interessado por uma dessas casas em particular. A partir de uma série de dissolves vamo-nos aproximando da casa,
acabando mesmo por entrar nesta através de uma janela do primeiro andar. Já no
interior da habitação, os dissolves
cessam e entramos num plano em movimento, sendo levados pelas escadas até
estarmos defronte da porta principal da casa. O nosso olhar vai assim flutuando
pelo espaço à medida que a música na banda-sonora se vai precipitando,
parecendo anteceder a chegada triunfal de uma figura heroica. Mas não é nenhum
herói mítico que entra pela porta em que nos focámos, mas sim uma família
modesta e em nada incomum ou, diga-se, de particular interesse. Lean eleva
assim a simplicidade do quotidiano a um nível de discreto heroísmo, sem nunca
esquecer a sua condição como uma família no meio de tantas outras semelhantes
nessa infinidade de casas iguais.
O filme termina com
um inverso deste plano. Aí vemos a família abandonar a casa pela porta
principal, e com o fechar desta a câmara afasta-se, subindo as escadas e
flutuando para longe da vivenda numa série de dissolves, em tudo o espelho do começo do filme.
Mas não será só
trabalho do realizador que torna esta uma obra exemplar do cinema britânico do
período de guerra, também os atores fazem um excelente trabalho na
concretização desta família de classe trabalhadora. Celia Johnson é
particularmente eficaz, especialmente no modo como vai mudando a sua postura,
velocidade e movimentos ao longo do filme. Aqui ela parece envelhecer através
de uma fadiga em crescimento, muito mais do que a partir de quaisquer trejeitos
ou tiques grotescos como, por vezes, acontecia no trabalho de outros atores,
veja-se Greer Garson em Mrs. Parkington,
do mesmo ano. Esta criação de Johnson está bem longe da elegância trágica que
caracteriza o seu trabalho em Brief
Encounter, a sua terceira colaboração com Lean.
O filme não é
perfeito, estando bastante preso a uma teatralidade que, por vezes, parece restringir
negativamente os impulsos dramáticos da sua estrutura. Para além disso, existe
uma tentativa de criar uma obra de valorização patriótica que tem tendência a
cair no lugar-comum, sendo essa exaltação patriótica um dos aspetos menos bem
conseguidos do filme.
Apesar disso, esta é
uma tocante obra em que permeia uma melancolia nostálgica, um sentimento de
perda de uma vida que a guerra veio destruir. O filme como um retrato de uma
família britânica é um relativo sucesso e um belíssimo passo no desenvolvimento
da carreira daquele que seria um dos mais célebres realizadores britânicos do
século XX.
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