Apesar do que o que
alguém poderá deduzir dos outros textos que tenho aqui publicado, eu não tenho
um invariável ódio ou aversão por filmes de cariz biográfico. Por vezes existem
obras que conseguem realmente capturar algo interessante a partir de uma estrutura
biográfica, filmes que retratam uma personalidade e que realmente parecem
explorar essa figura utilizando à sua disposição as várias especificidades e
possibilidades da arte cinematográfica. A nova obra de Mike Leigh, um dos meus
favoritos realizadores a trabalharem atualmente, será um exemplo deste segundo
tipo de filme biográfico.
Em obras anteriores,
Leigh terá explorado realidades contemporâneas a partir de um estudado trabalho
de ator com um grande apelo ao realismo, sendo que alguns desvios como Topsy-Turvy e Vera Drake, apesar de serem filmes de época, continuavam a
apoiar-se numa visão sobre um enorme elenco de interpretações naturalistas. Mesmo
Vera Drake acaba por se tornar um
retrato coletivo de uma família. Neste novo filme, Leigh parece quebrar com
alguns dos seus usuais cânones, criando uma obra que se desenvolve à volta de
uma única personalidade, de uma única figura, uma figura que provém, aliás, de
uma realidade histórica, sendo que o próprio modo como o filme é filmado,
parece olhar o mundo como uma extensão da perspetiva singular do seu
protagonista.
Deixem que me
esclareça um pouco. O filme explora o último quarto de século, os últimos
capítulos se preferirem, da vida daquele que é uma das mais célebres figuras na
história da pintura europeia, Joseph Mallord William Turner. O mestre da luz e
da atmosfera na pintura romântica do século XIX, que nas suas obras tardias
quase pareceu anteceder o impressionismo na sua quase abstrata visão de luz e
cor na composição das suas, por vezes, turbulentas e indefinidas paisagens.
Apesar de uma
proposta biográfica, o filme, mesmo assim, nunca parece estar interessado num
seguimento solene de marcos históricos na vida do seu sujeito de protagonismo,
preferindo ir capturando momentos na vida do pintor, muitas vezes sem aparente
seguimento lógico, e acompanhando os seus últimos anos, através de uma vida sem
grandes aparentes glórias ou momentos de inspiradora magnitude, como é usual
neste tipo de filme. Se há algo que me incomoda na maioria dos filmes
biográficos será, aliás, esta predileção por uma visão glorificada ou pelo
menos de óbvia dramatização das figuras retratadas, sempre acabando por apelar
a fórmulas e a marcos históricos.
Pelo desenvolver do
filme, nas suas deliberadamente lânguidas duas horas e meia, Leigh vai
apresentando figuras novas à volta de Turner, nunca, no entanto, perdendo de
vista o foco singular do filme. Assim acabamos por obter o usual elenco de
grandes dimensões em que personagens menores são aparentemente criadas com o
mesmo tipo de atenção, usualmente dado a protagonistas.
Alguns dos mais
marcantes membros desse elenco serão, por exemplo, Timothy Spall no papel
central, numa interpretação cheia de grunhidos e de rudes maneirismos,
capturando uma crueza e uma animalesca fisicalidade no pintor, e que arrecadou
o prémio de Melhor Interpretação Masculina na edição de 2014 do festival de
Cannes; Dorothy Atkinson como uma doméstica de Turner, padecendo de uma
estranha doença de pele e cheia de trejeitos e maneirismos bizarros e que
parece ter uma estranha e dependente relação com o pintor; Paul Jesson como
William Turner, o velho e cansado pai do pintor, com quem tem uma jovial
relação até à sua inevitável morte; e Marion Bailey como Sophia Booth, dona de
uma estalagem numa região costeira e com quem Turner, estabelece uma relação
romântica até à morte sofrida do pintor. Para além destes atores, um prodigioso
elenco estende-se em papéis de menores dimensões, em que muitos dos atores
usuais do trabalho de Leigh voltam a trabalhar aqui com o realizador, como
Lesley Manville, tão magnífica em Another
Year, Ruth Sheen e Martin Savage entre muitos outros.
Este elenco com as
suas magnificas interpretações e a estrutura narrativa do filme, possibilitam
logo aqui um retrato um tanto ou quanto impressionista da vida de Turner, não
se focando tanto na historicidade da sua vida, mas sim numa coleção de momentos
a partir dos quais obtemos uma impressão, bastante filtrada através da própria
perspetiva de Leigh, tanto do pintor como do mundo em que este se insere. Mas a
ajudar tudo isto virá a concretização plástica do filme, que demonstra aqui um
nível de exímia realização e esplendor que não são assim tão usuais nas obras
passadas do realizador.
O filme convirá
referir, assemelha-se quase a uma pintura, sendo que o grande culpado desta
magnificência visual será Dick Pope, o diretor de fotografia do filme, um veterano
da obra de Leigh, que ganhou, aliás, um prémio especial em Cannes pelo seu
inegavelmente impressionante feito técnico. O filme é banhado, através do trabalho
de Pope, numa quase contínua luz dourada, um apelo à luz natural e rica das
pinturas de Turner. Tanto interiores como exteriores assemelham-se a
representações pictóricas, sendo o céu e a luz natural uma constante presença
na composição. O mundo é visto como quase filtrado através do olhar do
protagonista, ganhando uma absoluta riqueza visual que poucos filmes alcançam.
Um visual em particular que gostaria de referir seria o modo como Pope e Leighj
filmam os interiores da casa da senhora Booth, aonde todas as janelas parecem
abrir-se para uma paisagem marítima, criando o efeito, conseguido através do
foco profundo e de uma magistral captura da luz, de uma casa trespassada por
pinturas vivas em constante e lento movimento ao mesmo tempo que o filme se
parece focar nas vidas humanas que no se inserem no ambiente.
Esse exemplo em
particular é bom de referir, não só pelo magnífico trabalho de fotografia, mas
também pela cenografia, que juntamente com os figurinos e mesmo a
caracterização, criam em Mr. Turner um
mundo de rudes texturas e luz filtrada por tecidos e vidros sujos, um mundo do
qual quase conseguimos deduzir o aroma. Esta criação de um panorama de grande
fisicalidade textura cria um ambiente de curiosos paradoxos onde até um teto de
musselina rasgada coberto de varejeiras mortas ou a face manchada e doente de
uma velha mulher, são capturados com a delicadeza de uma pintura pela câmara de
Leigh. Um mundo assente na realidade mas filtrado por um olhar subjetivo e
particular.
Isto é quase um
resumo de todo o filme, especialmente do modo como explora essa figura de
Turner, animalesca e rude, por vezes repulsiva, mas sempre fascinante, sempre
humano, e sempre com a promessa de mestria e luz no seu olhar envelhecido.
Leigh pode não ter criado uma prestigiosa exposição dos mais importantes
eventos na vida de Turner expondo o seu génio, mas com a sua característica
abordagem criou algo muito mais especial, um retrato, uma pintura em forma de
filme, em que o olhar de Leigh poderá trair a realidade histórica, revelando ao
mesmo tempo uma maior humanidade e realidade que qualquer abordagem mais
convencional revelaria.
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