O quarto filme da
jovem maravilha do cinema canadiano Xavier Dolan parece-me tratar-se de um
pequeno desvio ou então um sinal de maturação na filmografia crescente do
autor. Nesta obra, Dolan abandona as suas histórias apaixonantes e românticas
com dois protagonistas, o seu estilo parece mais dormente, mais calmo que nas
suas últimas criações. A própria escolha do thriller como género a trabalhar é
curiosa, assim como o facto de este ser o primeiro filme de Dolan adaptado a
partir de material previamente existente.
Mas para quê dizer
tanto sobre o contexto do filme? Quero que se perceba que este filme se tratou
de uma surpresa na ainda curta filmografia do realizador, e que, ao contrário
das suas outras obras, mesmo a húbris estilística de Les Amours Imaginaires, esta sua criação apresenta-me grandes e
inescapáveis problemas.
Dolan é um realizador
que expõe as suas origens e suas influências em todos os frames do seu trabalho. Se a influência de Wong Kar Wai, por
exemplo, em filmes anteriores era bem explícita, neste filme, parece que caímos
numa imagética “hitchcockiana”. E tal como o celebérrimo autor britânico, Dolan
parece querer injetar no seu elenco de personagens psicoses e estranhezas psicológicas,
desconcertando e desorientando a audiência, ao mesmo tempo que criando uma
atmosfera de sufocante opressão.
E há que dizer,
independentemente das minhas objeções em relação ao filme, Dolan demonstra
nesta obra um controle magistral da sua câmara. Se anteriormente tinha
explorado um romanticismo luxuriante, que terá, talvez, atingido o seu
exponente máximo em Laurence Anyways,
aqui Dolan mostra um domínio prodigioso da linguagem visual e sonora do
thriller.
Os primeiros momentos
do filme serão suficientes para justificar esta admiração pelo seu engenho como
realizador de imagens e sons. O filme inicia-se com um apertado plano de uma
caneta, escrevendo um elogio fúnebre para um namorado falecido, um elogio um
pouco romantizado e focado mais no sofrimento do escritor do que na vida que se
perdeu, mas mesmo assim um elogio. Cortamos para planos aéreos que nos mostram
um carro, um ponto a avançar numa paisagem campestre, campos agrícolas que se
estendem na composição com uma maravilhosa beleza pictórica, um grande trabalho
de André Turpin. Tom (Xavier Dolan), o nosso protagonista, chega a uma quinta,
onde ninguém parece estar, vagueia um pouco e decide entrar na casa, apesar de
ninguém lá estar.
A quinta é aqui
filmada como um pesadelo emergindo da bruma, Uma visão saída de Hitchcock. O
ambiente campestre é sempre retratado como sujo, húmido, opressivo, uma prisão
que se abate sobre Tom desde os primeiros momentos. A câmara move-se com o
olhar do protagonista, prendendo-nos na sua perspetiva. Dolan mostra quase que
uma demonização da quinta neste momento e ao longo do filme, algo que quase
levanta alguns problemas de representação de comunidades agrícolas que relembra
o trabalho de John Boorman em Deliverance
e a sua simplista, grotesca e redutiva visão.
O próprio som da
quinta parece transpirar uma opressão quase transplantada da linguagem de
filmes de terror, o que é apenas intensificado pela maravilhosa música de
Gabriel Yared. Uma banda-sonora que ao mesmo tempo lembra um classicismo
tradicional como parece retirada de um operático thriller, e que durante o
filme se vai revelando como aquele que é talvez a melhor escolha estilística de
Dolan neste filme.
Enquanto espera a
chegada de alguém, adormece, fade to
black, e é abruptamente acordado pelas perguntas de uma mulher, a mãe do
seu falecido namorado, que se havia surpreendido com a presença de um estranho
em sua casa, um intruso. Nesta interação vemos uma metódica e deliberada
reticência de Dolan na apresentação de Agathe, interpretada pela maravilhosa
Lise Roy, que primeiro nos aparece como uma voz na escuridão, de seguida apenas
na distância fria do plano geral (contraste com os constantes grandes planos da
face de Dolan) e que apenas completamente revelada durante uma cena de jantar,
em que a sua proximidade de Tom é inescapável. Agathe, tem assim uma reticente
entrada, que logo a expõe como a mais interessante figura do filme, algo pouco
inesperado se considerarmos a mestria de Dolan na criação de personagens
maternais nos seus passados trabalhos.
O outro membro que
completa a estranhamente perversa unidade familiar no centro do filme, é
Francis (Pierre-Yves Cardinal) o irmão do namorado de Tom, que parece ter
sabido da existência de Tom e da sexualidade do irmão, algo que Agathe
desconhece. Em Francis, Dolan cria uma figura de agressão masculina, em que a
sua imposição sobre Tom ganha um tom erótico e agressivamente sexual com o
decorrer do filme. Também ele é primeiro introduzido como uma voz na escuridão,
se bem que numa cena muito mais agressiva e prolongada que o breve momento de
Agathe. Apenas vemos a sua cara na terceira vez que aparece em cena, primeiro
voz, depois corpo, depois face, numa cena em que interrompe Tom no duche,
ordenando-lhe que não use perfume no funeral.
A câmara de Dolan
parece fascinada por esta família, mas ao mesmo tempo mantém uma grande
distância em que o filtro do mistério nos impedem de realmente entender estas
figuras disfuncionais. As duas figuras são como paredes que se abatem sobre
Tom, prendendo o quase masoquista jovem na sua quinta de atmosfera um tanto
fantasmagórica.
O filme apoia-se,
portanto, numa perspetiva da vítima, a de Tom, sendo que o filme raramente se
desvia dessa mesma perspetiva e quando tal acontece, o filme parece entrar em
risco de desmoronar sobre a sua própria construção. Pressupõe-se que a
audiência se apoiaria então na personagem de Tom face ao mundo que o envolve e
às misteriosas figuras que o oprimem mas tal não acontece. O protagonista de
Dolan nunca passa de uma cifra cujo comportamento parece indicar um estranho
masoquismo, as suas motivações ou escondidas da audiência ou incompetentemente
transmitidas no trabalho de Dolan como ator. Considero, aliás, esta escolha de
Dolan como seu próprio protagonista como das piores escolhas do filme, o que
resultou outrora em Les Amours
Imaginaires e J'ai tué ma mère,
não funciona nesta obra.
Tenho a tese que isto
se deva, em parte, ao facto de que neste filme o estilo expressivo de Dolan é
usado na criação de uma atmosfera opressiva. O estilo é uma extensão do
ambiente, como que as paredes que prendem o protagonista. Enquanto nos seus outros
filmes, as personagens eram principalmente desenvolvidas a partir do estilo do
filme e sua exuberância, aqui essa mesma exuberância estilística manifesta-se
em oposição a um protagonista que sem essa extensão estilística da sua
psicologia nos aparece como uma figura indefinida e vaga onde parece necessário
um ser humano definido. É necessária uma oposição entre Tom e o mistério do seu
ambiente. Ao invés disso temos um filme de cifras com pretensões de alcançar os
píncaros dos thrillers clássicos. Talvez isto provenha do texto de que o guião
foi adaptado, como nunca li tal obra, não sei.
Mas, de novo,
relembro que o trabalho, em geral, de Dolan como realizador continua a ser
exemplar nesta sua exploração de uma linguagem cinematográfica diferente, ao
mesmo tempo que tenta manter o seu estilo próprio. Veja-se, por exemplo, a sua
manipulação do formato da imagem em momentos de grande tensão ou a cena de
tango que marca um triunfo na junção desorientadora entre movimento de câmara e
montagem. Sim, este é um prodigioso trabalho que talvez precisasse de outro
protagonista ou de um guião diferente que apoiassem o primor técnico em algo
que não fosse a cifra vazia em que o filme se apoia na sua presente existência.
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