Penso que o cinema e
o teatro são artes com linguagens bastante, se não totalmente, diferentes. Uma
afirmação um pouco radical e mesmo possivelmente anacrónica se olharmos bem o
panorama teatral atual, em que tais barreiras parecem ser bastante fúteis. Mas,
apesar disso, tenho de me manifestar em relação ao odiado espetáculo filmado,
ou a filmes que se limitam a ser espetáculos filmados. Não que não hajam
notáveis e incrivelmente cinemáticos exemplos de espetáculos filmados, mas na
sua grande maioria não o são, limitando-se à mais básica forma de filmar a cena
sem terem em consideração o que considero um dos grandes elementos de separação
entre teatro e cinema, o olhar da câmara.
Não só a minha
perspetiva poderá parecer um pouco desatualizada ou mesmo redutiva, mas também
há que mencionar que, possivelmente, terei escolhido um estranhíssimo exemplo
para explorar esta corrente de pensamento. Muitos poderiam acusar esta obra
tardia de Ingmar Bergman, de ser um filme irremediavelmente teatral que pouco
se separaria da peça filmada. Pois bem, eu teria de enormemente discordar com
esses indivíduos e suas opiniões.
Para tentar expor de
modo mais específico esta minha posição, gostaria de referir um momento próximo
do meio desta breve criação. Durante uma longa conversa, com uma das atrizes
(Lena Olin) numa encenação d’ O Sonho de
Strindberg, um velho e cansado encenador (Erland Josephson, aqui quase no
papel do próprio Bergman) invade o nosso espaço de visão num grande plano em
movimento, que vai seguindo o seu rosto no espaço. Isto não é estranho para a
linguagem visual do filme que, sendo um filme de Bergman, idolatra a imagem do
rosto humano na composição de cinema. Sendo natural na linguagem do filme, passa-nos
despercebido. A câmara passa para a atriz que agora nos aparece em criança. Não
há qualquer corte e não há qualquer aparato vistoso. A câmara movimenta-se de
novo para a a face do encenador e, perto do fim das suas falas, passa de novo
para a atriz, novamente na sua representação adulta. Bergman comanda o nosso
olhar com a sua câmara.
Outro momento
parecido ocorre perto do final do filme. Já no final desta atribulada conversa,
a câmara movimenta-se de modo intimista perto dos rostos dos atores. Vemos-lhes
a cara e, apesar de não o conseguirmos bem definir, temos noção que os dois
ainda se encontram no espaço do palco cheio de adereços. Apenas quando a atriz
se vai embora, é que saímos dos grandes planos dos atores e passamos a um plano
geral do palco, onde o filme tem decorrido. De repente reparamos que o palco se
esvaziou. Depois de perdermos qualquer noção espacial através do olhar da câmara,
somos expostos, através da montagem, a um espaço que mudou por completo, da
confusão de adereços espalhados, a um palco desnudo.
Tal seria impossível
de concretizar no teatro, em que por muito que o mais criativo dos encenadores
tentasse, nunca nos conseguiria fixar de tal modo na face do ator. Isto de modo
subtil e impercetível, que, repentinamente, permitisse que nos encontrássemos
num espaço completamente alterado, quase a acompanhar a turbulenta viagem de
autorreflexão do protagonista. O olhar da câmara foi aqui essencial. É disso
que falo quando chamo a esta obra de Bergman, uma obra verdadeiramente cinemática
e longe de ser um espetáculo filmado.
Mais do que isso, o filme
parece expor-se mais como que uma conversa depois de um ensaio, por vezes
parece ser um ensaio para um espetáculo ou mesmo um espetáculo filmado. Bergman
não nos vai mostrando o outro lado do palco, faz-nos permanecer como audiência,
destruindo a nossa certeza como público de cinema. Para além disso o modo como
vai quebrando linhas temporais e de realidades e memória, leva-nos a questionar
qualquer realidade física do próprio filme. Será tudo isto uma encenação mental
do seu velho protagonista? O que é interessante de verificar aqui, é que é
necessário o afastamento do cinema para que estas questões se exponham no seu
absoluto. Nunca temos aqui a certeza se vemos um espetáculo teatral ou não,
algo que se fosse encenado em palco perderia logo essa pátina de incerteza.
Independentemente da sua reflexão, esta obra sobre o teatro, quando apresentada
como acontecimento teatral, seria invariavelmente uma representação teatral e
nós a audiência desse espetáculo. Com o afastamento do cinema, Bergman consegue
colocar-nos essa hipótese, assim como outras que também se poderão revelar
válidas, se não ainda mais aliciantes.
Apesar de vários
filmes de Bergman explorarem a ligação do realizador com o teatro, uma arte que
normalmente punha, a um nível pessoal, acima do cinema, nenhum deles o fez de
modo tão explícito e incisivo como esta obra que nem terá inicialmente sido
criada para cinema, sendo que o realizador teria pretendido que, o fortemente
autobiográfico, Fanny och Alexander
fosse o seu filme derradeiro. Nada disso se acabou por registar tendo em conta
a existência de Saraband, mas pouco
disso interessa na análise desta magnífica e magistralmente simples obra
daquele que será, possivelmente, o meu realizador preferido.
Há no entanto, que
referir que o jovem ator de Fanny och
Alexander aparece neste filme, vendo a ação de cima, de uma das varandas
técnicas do teatro, uma posição descrita por Bergman na sua autobiografia. A Lanterna Mágica de Bergman será na
verdade, quase que uma pedra de roseta na descodificação destas duas obras que
parecem refletir em si duas fases completamente diferentes da sua vida. No
filme de 1982 vemos uma ficcionalização de Bergman e sua família, na obra de
1984 vemos Bergman e seus atores, uma descrição bastante redutiva destes filmes
que não deixa por isso de conter alguma verdade. Aqui Bergman quase que
abertamente cria um autorretrato, bastante reminiscente de obras como 8 ½ ou até All That Jazz e Zerkalo.
Se nos anos 60, o realizador tinha pegado nesta mesma intenção autobiográfica e
criado uma comédia satírica, aqui vemos algo bastante diferente, uma reflexão
de um mestre cansado sobre a sua própria vida.
Apesar do que poderá
transparecer no que escrevi acima, este filme não se trata singularmente de uma
reflexão de Bergman sobre a sua relação com o teatro e com o palco, mas também
é uma incrivelmente pessoal dissecação da sua relação com essa estranha figura
do ator.
Bergman terá sido um dos grandes realizadores de atores na
história do cinema e ao longo da sua careira foi-se afeiçoando a atores e
atrizes, chegando a ter profundamente importantes relações amorosas com algumas
das suas atrizes, algo que Bergman parece quase dissecar nesta obra. Veja-se a
figura de Ingrid Thulin, cuja mera presença em cena parece transpor o filme
para uma imediata irrealidade, para essa distorção do espaço-tempo, dessa
relação memória e realidade, etc.
Thulin, representando
a mãe da personagem de Olin, aparece-nos quase como um símbolo das várias musas
de Bergman e no seu mais importante diálogo com o encenador parece desconstruir
a relação dele com os seus atores, com o teatro e até com arte em geral.
Para além disso a
própria personagem de Olin, tem um fabuloso diálogo com o encenador em que os
dois ponderam ter um caso amoroso, chegando mesmo a atuar o seu possível caso,
levando-o quase à realidade e, a partir da ficção, vivem-no e descartam essa
hipótese. Em minutos, o seu caso amoroso é resolvido, minutos estes em que a
barreira entre a realidade do filme e a sua ficção teatral se parecem fundir em
algo estranho, quase indescritível que o próprio Bergman parece tentar capturar
com a sua câmara.
Bergman consegue, no
entanto, não cair na ode romantizada à figura do ator, quase que chegando a
reforçar o caráter pessoal desta reflexão. Nunca assumimos ver aqui um
manifesto de Bergman sobre cinema e teatro, mas mais uma exploração de si mesmo
e da sua própria mentalidade. Um cinema íntimo e longe, pelo menos na opinião
deste muito pouco objetivo fã, de ser uma manifestação dogmática de verdades
entendidas como absolutas ou universais. Bergman criou assim, com esta obra
tardia, algo que pode não chegar aos píncaros de outras das suas mais célebres
criações, mas que se pode chamar de obra-prima cinematográfica pelo seu mérito
próprio apesar da sua simplicidade e teatralidade.
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