Trazer obras teatrais para o cinema é
sempre algo que traz consigo complicações e problemas de adaptação, e isto é,
talvez, muito mais certo, quando olhamos para adaptações de musicais, que, na
sua maioria, têm em si uma teatralidade inerente que se estende à sua própria
estrutura. Não estou aqui a dizer que musicais são normalmente as mais
arrojadas criações teatrais cuja linguagem é difícil de adaptar ao ecrã, mas o
facto é, que muitos musicais, nomeadamente este, requerem, pelo seu texto base,
o edifício e a estrutura teatral para realmente funcionarem, ou pelo menos os
códigos da representação teatral que não se encontram aqui presentes em forma
de filme.
Stephen Sondheim, o
ilustre criador de Into the Woods, é
um autor particularmente difícil de adaptar, pelo menos pelo que indica os
resultados das adaptações que têm sido feitas das suas obras. Há o seu uso de
estruturas que se separam em atos distintos, de comédia negra, atores a falar
diretamente para a audiência, comentário meta-textual de um narrador presente,
números musicais de grupo que não respeitam quaisquer barreiras físicas que o
enredo pareça indicar, mas que aproveitam a coletividade permitida pelo palco,
etc.
E acrescente-se a
tudo isto, uma intenção satírica, que necessita de um toque leve e cómico e que
parece, neste filme, ser quase que completamente devastado por uma seriedade e
aura de tragédia melodramática que tanto parecem pertencer ao cinema de prestígio
que se abate sobre as salas de cinema nesta altura do ano.
Esta é uma obra de
sátira musical que vai dissecando, explorando e levemente desconstruindo, ou
tentando desconstruir, os clichés e fórmulas narrativas dos contos de fadas que
tanto ocupam o imaginário infantil do mundo ocidental. O musical une, portanto,
Rapunzel (Mackenzie Mauzy), a Cinderella (Anna Kendrick), a Jack (Daniel
Huttlestone) com o seu feijoeiro, a capuchinho vermelho (Lilla Crawford), a uma
bruxa (Meryl Streep) e até a um casal originalmente criado para esta obra, um
padeiro (James Corden) e a sua esposa (Emily Blunt), que, apesar dos seus
desejos, não conseguem ter filhos devido a uma maldição lhes imposta pela bruxa,
após um roubo do pai do padeiro (Simon Russell Beale).
Tal como a adaptação
de Tim Burton de Sweeney Todd, esta adaptação parece perder a maioria da
comédia presente no original. O que se revela particularmente preocupante
quando unido a uma sanitização efetuada sobre o texto e que retiram algum do
dramatismo e motivações que são essenciais para a segunda metade do musical.
Metade esta que, já no texto original se parece revelar como um problemático e
prolongado epílogo, e que aqui vai perdendo o rumo e o impacto quando se começa
a cortar partes essenciais como a morte de Rapunzel. O reprise de Agony, o número final com todo o elenco,
etc. Obtemos assim um filme que trocou o humor negro por drama comum e a
violência temática por uma simplicidade fácil e irritantemente constante neste
tipo de cinema, que parece tão interessado em audiências como em troféus
dourados.
E o realizador Rob
Marshall certamente não ajuda nada com a sua realização, que transforma o filme
num seguimento de números musicais completamente inconsistentes em tom e
intenção, e que parecem estar sempre a testar as águas e ver até onde é que
podem ir em termos de estilização e teatralidade. E esta inconsistência
estende-se a quase todos os componentes do filme, especialmente o visual que
oscila entre um realismo fantasioso e uma artificialidade flagrante, entre
figurinos estilizados do século XVIII e zoot
suits cobertos de pelo, entre bosques que parecem, não intencionalmente,
revelar a sua falsidade cenográfica, e quartos cobertos de flores e raios de
luz que parecem, intencionalmente e maravilhosamente, criados com a intenção de
transferir para a fisicalidade tridimensional, a estética normalmente
encontrada em versões animadas de contos de fadas.
Junte-se a isto, um
maravilhosamente competente elenco, em que praticamente todos os atores parecem
perfeitamente confortáveis no registo musical, e uma banda-sonora que adapta de
forma robusta e majestosa as melodias do original de palco, e temos um filme
que varia entre a mediocridade aborrecida e o esplendor de cinema de
entretenimento que, por vezes, se revela no filme.
Agony, por exemplo, é um milagre de adaptação do humor satírico das
letras de Sondheim, tornando o dueto entre os dois príncipes charmosos, uma
competição de poses dramáticas e exaltações heroicas que fazem dos dois homens
uma caricatura em movimento de todas essas capas de romances históricos em que
vemos heróis românticos com a camisa aberta e ares de herói sofredor. O
prólogo, também se revela como um triunfo do cinema musical, trazendo a difícil
estruturação de Sondheim diretamente para o cinema, a partir de um soberbo
elenco e de uma encenação surpreendentemente boa, da parte de Marshall, que
nunca me impressionou muito, apesar do seu atual estatuto como o realizador de
escolha para as adaptações musicais de Hollywood.
Por outro lado,
temos, por exemplo, Witch’s Lament
que devido a cortes, adaptações narrativas e uma filmagem desinspirada, retira
qualquer impacto que o número pudesse ter e, sinceramente, qualquer
consistência à maioritariamente energética interpretação de Meryl Streep. Ou It Takes Two, filmado de modo estranho e
errático e que parece desrespeitar quaisquer normas de montagem, e que confere
ao cenário, a partir de uma incrivelmente mal escolhida iluminação, uma
artificialidade quase risória, apesar de parecer querer insistir num realismo
inapropriado no modo de filmar a cena. Até o devaneio visual em flashback que ocorre em I Know Things Now, salienta a
inconsistência do filme, especialmente em termos de registo estilo.
Um filme
estilisticamente anárquico, indisciplinado e desenxabido, que apesar de tudo
isto chega a grandes momentos e números musicais, principalmente devido ao
elenco, o que não pode deixar de me desapontar, quando a equipa técnica inclui
nomes como Dion Beebe e Colleen Atwood. Anna Kendrick como Cinderella e Chris
Pine como o seu príncipe, são particularmente eficientes e prodigiosos na sua
interpretação e modulação de estilo e registo, trazendo as suas personagens de
contos de fada a uma modernidade satírica, tudo isto não sacrificando o seu
impacto dramático, que existe, apesar do modo como estas personagens são
intencionalmente arquétipos e superficialmente bidimensionais numa inicial
inspeção. O resto do elenco também é bom, sendo que Daniel Huttlestone me
surpreendeu com a maturidade com que interpretou Jack, sem esquecer a
imaturidade inerente à juventude impetuosa do rapaz. Sreep, que é quem tem
recebido maior admiração e respeito da crítica, também é bastante dinâmica na
sua interpretação, trazendo uma estilização bem-vinda ao papel da bruxa, não
deixando de imbuir os seus números musicais com a tristeza, raiva e energia
necessárias para a sua bruxa, tudo isto com uma fantástica rendição das canções
que apenas me traz tristeza quando penso nas poucas ocasiões em que esta atriz
realmente aproveitou os seus talentos vocais.
Apesar dos meus
problemas com o filme, tenho que dizer que foi uma experiência agradável de
cinema, é ao fim ao cabo, uma peça de entretenimento mais do que uma sátira
musical, pelo menos nesta interpretação cinemática com aspirações a prestígio e
a estatuetas de um careca despido e banhada em oiro.
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