Será que existe algo
na suposta crítica social e moral, neste primeiro filme de Dan Gilroy, que
traga algo de novo ao panorama cinematográfico? Haverá algo de novo ou
revelador neste guião? Penso que, a um nível superficial, a crítica implícita
no desenvolver do enredo e do filme não sejam da mais surpreendente inovação,
sendo mesmo bastante previsíveis e quase que lugares comuns de narrativas
cínicas e urbanas. Mas, apesar de tudo isso, não consigo deixar de olhar com
admiração e com prazer para este filme, sendo que essa mesma apreciação
positiva me acaba por levar a querer encontrar algo mais interessante, talvez
mais rebuscado na interpretação deste filme, que parece ser uma, talvez,
simples sátira moral, negra e sociopática feita a um mundo e a uns media
corrompidos e perdidos numa amoralidade contemporânea.
O filme desenrola-se
à volta de uma amoral figura, Lou Bloom interpretado por um cadavérico Jake
Gyllenhaal cujos olhos esbugalhados e protuberantes o assemelham quase a um
lagarto noturno, uma figura reptícia mais perto de uma bestialidade que de
qualquer impressão de humanidade ou empatia, um monstro bizarro, um sociopata
eficiente e que parece ter encontrado na filmagem de crimes e acidentes
sangrentos nas ruas de L.A. um negócio de sucesso, um lugar para os seus
talentos e habilidades. Existe em toda a sua figura um pragmatismo assustador,
especialmente na sua constante declamação de técnicas de motivação e modos de
agir num ambiente de trabalho, etc. Esta figura é quem devemos seguir e por
quem deveríamos ao mesmo tempo sentir repulsa e um fascínio que nos agarrem ao
enredo do filme.
Lou cai nesta
carreira quase que por acaso, e daí irá formar uma relação profissional e
perversa na sua vampiresca intensidade com Nina Romina (Rene Russo) encarregada
de um noticiário numa das cadeias de televisão de menor sucesso em L.A. Uma
figura de inegáveis ligações à personagem de Faye Dunaway em Network, e que tal
como a sua antecessora cinematográfica, demonstra uma amoralidade e ausência de
escrúpulos que a fazem um assustadoramente eficiente catalisador para a ambição
de Lou. Entre os dois, cria-se uma procura pelas mais sangrentas imagens
possíveis, mis chocantes e perversas, imagens que atraiam espetadores, sendo
questões morais e éticas colocadas de parte nessa procura por audiências. A
crítica do guião é abismalmente óbvia, portanto.
Ao longo do filme
observamos Lou avançar na sua carreira, na sua animalesca procura de sucesso
económico e social, vemo-lo expandir o seu negócio e contratar Rick (Riz Ahmed)
como seu assistente, numa figura que é claramente um cordeiro a ser sacrificado
à monstruosidade do protagonista, e até eliminar a sua competição, no que se
assemelha a um estudo de personagem. O realizador parece querer, por vezes,
explorar mais a sociopatia e a frieza de Bloom do que realizar qualquer
manifesto contra os media. A esteticização e composição da violência também
parecem manifestar-se no comportamento de Bloom, sendo que o clímax final o
eleva a um estatuto de realizador da realidade. Uma posição de enorme
perversidade como que um orquestrador da violência e do horror real para a sua
câmara.
Mais não irei dizer
sobre o enredo, não querendo revelar todos os desenvolvimentos do filme, mas
tenho a dizer que não são muito surpreendentes, sendo que talvez o que mais me
surpreendeu foi o modo aparentemente abrupto de como o filme se encerra. Não
que não haja uma lógica temática por detrás desse final, mas não deixa de
existir um certo aspeto de repentino cessar nessa exploração de Bloom, sendo
que os momentos finais e o discurso final do nosso anti-herói nos servem como
um reforço perverso de quase todos os temas do filme, especialmente em relação
a esse pragmatismo vil que tanto caracteriza a criação de Gyllenhaal.
E que criação
soberba! Se o ator tem mostrado ultimamente a abrangência do seu talento com
filmes como Prisoners, End of Watch e Enemy, neste filme demonstra aquela que é talvez a sua maior
criação. Em Bloom, Gyllenhaal cria uma figura de ritmos exatos, uma fria
máquina de discursos de pragmatismo e eficiência. Um sociopata rigoroso e
repugnante, especialmente no seu aspeto com os seus olhos protuberantes, face
encovada e cadavérica, cabelo oleoso e figurino simples e obsessivamente exato.
Só pela sua fisicalidade e concretização visual, a personagem de Bloom seria um
sucesso, mas mesmo a palavra e o modo como Gyllenhaal mostra, em ocasiões, a
raiva e repugnância de Bloom para com os seus parceiros de cena, sem quase mexer
um único músculo na sua cara gélida e rígida. É um grande trabalho da parte do
jovem ator. Um trabalho que só por si, para mim pelo menos, seria uma
justificação para a existência do filme. Mas não será ele a única razão, diria
ainda mais que não será ele o único dos atores criar uma figura formidável.
Rene Russo e Riz Ahmed também apresentam aqui, trabalhos exemplares.
Russo, trás ao filme
uma vulnerabilidade que parece sempre em contraste e confronto com a sua sede
sanguinária e o seu lado vampiresco. A relação de Nina com Bloom é algo
retorcido e perverso, e uma reviravolta um tanto ou quanto estranha e até um
pouco inesperada que se dá numa cena num restaurante entre os dois, deixa em
perigo qualquer consistência ou credibilidade da personagem. Nina poderia depois
dessa cena ser apenas uma vítima, mas Russo permite que a audiência observe
alguém muito mais complexo que uma simples vitima de um sociopata. Quando o
filme acaba, já nos apercebemos da qualidade simbiótica na relação entre Bloom
e esta mulher, do modo como os dois se alimentam um do outro e da amoralidade
de ambos. Apesar de inicialmente olharmos Nina sempre como alguém mais humano e
próximo de nós que o protagonista, o seu último diálogo mostra-nos os dois como
as criaturas vampirescas que são, apesar de diferentes e com diferentes
subtilezas na sua sede por essas imagens violentas.
Ahmed, no seu papel
de inocente cordeiro sacrificial, traz ao filme um naturalismo próximo da
perspetiva da audiência completamente distante do jogo de intenções e ambições
de Russo e Gyllenhaal. Rick é, sem dúvida, uma vítima da monstruosidade de
Bloom, mas para elevar esse papel a algo mais que simples “carne para canhão”
narrativo, Ahmed confere a Rick um nervosismo, uma felicidade e alívio quando
consegue um trabalho, uma impaciência, uma naturalidade que o tornam o perfeito
parceiro de cena para a reptiliana e manienta performance de Gyllenhaal. Numa
cena em que Rick tenta negociar com Bloom, Ahmed é particularmente eficaz,
colocando sempre uma tensão e nervosismo na cena sem cair no exagero ou
estilização neste caso desnecessários.
Mas não será só
trabalho do elenco que eleva o filme. Basta olharmos para o filme para nos
apercebermos da sua virtuosidade visual na fotografia digital com que as cenas
noturnas foram capturadas, criando um mundo negro mas perfeitamente claro e
frio. Quase lembra o trabalho de Michael Mann e o modo como este tão
gloriosamente filma a vida noturna de Los Angeles. Também há que louvar a
fotografia diurna feita em filme e não num suporte digital, criando uma
barreira visual entre as duas facetas da vida de Bloom neste inferno urbano,
assim como o trabalho de cenografia e figurinos, que são especialmente eficazes
na criação plástica de Bloom, com as suas roupas exatas e simples, e o seu
apartamento despido com um rasgo de cor e vida numa planta solitária junto à
presença central da televisão.
Este trabalho
exemplar de um ponto de vista plástico, revela aquele que para mim será, um dos,
se não o grande tema do filme. Falo da imagem, essa coisa distante e afastada
de nós, algo superficial e vazio, algo representativo de uma realidade, que
mesmo assim está longe de ser aquilo que expõe e representa. Veja-se a
preocupação do filme em criar imagens de Bloom com o seu figurino rigidamente
constante, o seu vistoso e um pouco incongruente carro vermelho, o seu olhar
estético para a violência, etc. As imagens e o modo como estas nos distanciam
da realidade ao nos mostrarem uma representação distante desta parecem ser algo
tematicamente constante no filme. Até a própria relação de Bloom e Nina parece
até um certo ponto ser uma criação de Bloom de uma relação e de uma imagem que
ele quer transmitir de si mesmo, mesmo que a única pessoa a ver essa imagem
seja ele mesmo.
Bloom e Nina, esses
vampiros noturnos, são, aliás, os que mais sedentos de imagens do que de
sangue, basta olharmos o modo como Bloom parece olhar quase apaticamente para
os horrores à sua frente, mas olha para o visor da sua câmara de modo extático
e quase enlouquecido. Sei que é uma análise um pouco simplista do filme, mas
penso ser mais interessante olhar o filme como uma exploração da distância
entre a imagem e a realidade do que como uma mera crítica social de ideias já
cansadas e repetidas.
É, tendo em conta
tudo isto, um grande primeiro passo para Dan Gilroy, e um grande passo no
desenvolver de Gyllenhaal como ator. Mesmo que se aprecie este filme como um
normalíssimo thriller, continuo a achar que existem variadas virtudes e
complexidades no mesmo, que farão dele uma obra essencial a qualquer amante de
thrillers contemporâneos ou mesmo de cinema americano em geral.
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