quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

NIGHTCRAWLER (2014) de Dan Gilroy

 Neste dia de anúncio das nomeações aos Óscares, uma das ausências que mais senti foi, sem dúvida, a presença deste filme que, com os recentes prémios de sindicatos e críticos, parecia destinado a variadas menções e que acabou com apenas uma menção na categoria de argumento original. Em sinal de elogio ou lamento, aqui está um texto que escrevi há já algum tempo sobre este filme que, por variadas razões, ainda não tinha tido a oportunidade de publicar.





  Será que existe algo na suposta crítica social e moral, neste primeiro filme de Dan Gilroy, que traga algo de novo ao panorama cinematográfico? Haverá algo de novo ou revelador neste guião? Penso que, a um nível superficial, a crítica implícita no desenvolver do enredo e do filme não sejam da mais surpreendente inovação, sendo mesmo bastante previsíveis e quase que lugares comuns de narrativas cínicas e urbanas. Mas, apesar de tudo isso, não consigo deixar de olhar com admiração e com prazer para este filme, sendo que essa mesma apreciação positiva me acaba por levar a querer encontrar algo mais interessante, talvez mais rebuscado na interpretação deste filme, que parece ser uma, talvez, simples sátira moral, negra e sociopática feita a um mundo e a uns media corrompidos e perdidos numa amoralidade contemporânea.

  O filme desenrola-se à volta de uma amoral figura, Lou Bloom interpretado por um cadavérico Jake Gyllenhaal cujos olhos esbugalhados e protuberantes o assemelham quase a um lagarto noturno, uma figura reptícia mais perto de uma bestialidade que de qualquer impressão de humanidade ou empatia, um monstro bizarro, um sociopata eficiente e que parece ter encontrado na filmagem de crimes e acidentes sangrentos nas ruas de L.A. um negócio de sucesso, um lugar para os seus talentos e habilidades. Existe em toda a sua figura um pragmatismo assustador, especialmente na sua constante declamação de técnicas de motivação e modos de agir num ambiente de trabalho, etc. Esta figura é quem devemos seguir e por quem deveríamos ao mesmo tempo sentir repulsa e um fascínio que nos agarrem ao enredo do filme.

 Lou cai nesta carreira quase que por acaso, e daí irá formar uma relação profissional e perversa na sua vampiresca intensidade com Nina Romina (Rene Russo) encarregada de um noticiário numa das cadeias de televisão de menor sucesso em L.A. Uma figura de inegáveis ligações à personagem de Faye Dunaway em Network, e que tal como a sua antecessora cinematográfica, demonstra uma amoralidade e ausência de escrúpulos que a fazem um assustadoramente eficiente catalisador para a ambição de Lou. Entre os dois, cria-se uma procura pelas mais sangrentas imagens possíveis, mis chocantes e perversas, imagens que atraiam espetadores, sendo questões morais e éticas colocadas de parte nessa procura por audiências. A crítica do guião é abismalmente óbvia, portanto.

 Ao longo do filme observamos Lou avançar na sua carreira, na sua animalesca procura de sucesso económico e social, vemo-lo expandir o seu negócio e contratar Rick (Riz Ahmed) como seu assistente, numa figura que é claramente um cordeiro a ser sacrificado à monstruosidade do protagonista, e até eliminar a sua competição, no que se assemelha a um estudo de personagem. O realizador parece querer, por vezes, explorar mais a sociopatia e a frieza de Bloom do que realizar qualquer manifesto contra os media. A esteticização e composição da violência também parecem manifestar-se no comportamento de Bloom, sendo que o clímax final o eleva a um estatuto de realizador da realidade. Uma posição de enorme perversidade como que um orquestrador da violência e do horror real para a sua câmara.

 Mais não irei dizer sobre o enredo, não querendo revelar todos os desenvolvimentos do filme, mas tenho a dizer que não são muito surpreendentes, sendo que talvez o que mais me surpreendeu foi o modo aparentemente abrupto de como o filme se encerra. Não que não haja uma lógica temática por detrás desse final, mas não deixa de existir um certo aspeto de repentino cessar nessa exploração de Bloom, sendo que os momentos finais e o discurso final do nosso anti-herói nos servem como um reforço perverso de quase todos os temas do filme, especialmente em relação a esse pragmatismo vil que tanto caracteriza a criação de Gyllenhaal.

 E que criação soberba! Se o ator tem mostrado ultimamente a abrangência do seu talento com filmes como Prisoners, End of Watch e Enemy, neste filme demonstra aquela que é talvez a sua maior criação. Em Bloom, Gyllenhaal cria uma figura de ritmos exatos, uma fria máquina de discursos de pragmatismo e eficiência. Um sociopata rigoroso e repugnante, especialmente no seu aspeto com os seus olhos protuberantes, face encovada e cadavérica, cabelo oleoso e figurino simples e obsessivamente exato. Só pela sua fisicalidade e concretização visual, a personagem de Bloom seria um sucesso, mas mesmo a palavra e o modo como Gyllenhaal mostra, em ocasiões, a raiva e repugnância de Bloom para com os seus parceiros de cena, sem quase mexer um único músculo na sua cara gélida e rígida. É um grande trabalho da parte do jovem ator. Um trabalho que só por si, para mim pelo menos, seria uma justificação para a existência do filme. Mas não será ele a única razão, diria ainda mais que não será ele o único dos atores criar uma figura formidável. Rene Russo e Riz Ahmed também apresentam aqui, trabalhos exemplares.

 Russo, trás ao filme uma vulnerabilidade que parece sempre em contraste e confronto com a sua sede sanguinária e o seu lado vampiresco. A relação de Nina com Bloom é algo retorcido e perverso, e uma reviravolta um tanto ou quanto estranha e até um pouco inesperada que se dá numa cena num restaurante entre os dois, deixa em perigo qualquer consistência ou credibilidade da personagem. Nina poderia depois dessa cena ser apenas uma vítima, mas Russo permite que a audiência observe alguém muito mais complexo que uma simples vitima de um sociopata. Quando o filme acaba, já nos apercebemos da qualidade simbiótica na relação entre Bloom e esta mulher, do modo como os dois se alimentam um do outro e da amoralidade de ambos. Apesar de inicialmente olharmos Nina sempre como alguém mais humano e próximo de nós que o protagonista, o seu último diálogo mostra-nos os dois como as criaturas vampirescas que são, apesar de diferentes e com diferentes subtilezas na sua sede por essas imagens violentas.

 Ahmed, no seu papel de inocente cordeiro sacrificial, traz ao filme um naturalismo próximo da perspetiva da audiência completamente distante do jogo de intenções e ambições de Russo e Gyllenhaal. Rick é, sem dúvida, uma vítima da monstruosidade de Bloom, mas para elevar esse papel a algo mais que simples “carne para canhão” narrativo, Ahmed confere a Rick um nervosismo, uma felicidade e alívio quando consegue um trabalho, uma impaciência, uma naturalidade que o tornam o perfeito parceiro de cena para a reptiliana e manienta performance de Gyllenhaal. Numa cena em que Rick tenta negociar com Bloom, Ahmed é particularmente eficaz, colocando sempre uma tensão e nervosismo na cena sem cair no exagero ou estilização neste caso desnecessários.

 Mas não será só trabalho do elenco que eleva o filme. Basta olharmos para o filme para nos apercebermos da sua virtuosidade visual na fotografia digital com que as cenas noturnas foram capturadas, criando um mundo negro mas perfeitamente claro e frio. Quase lembra o trabalho de Michael Mann e o modo como este tão gloriosamente filma a vida noturna de Los Angeles. Também há que louvar a fotografia diurna feita em filme e não num suporte digital, criando uma barreira visual entre as duas facetas da vida de Bloom neste inferno urbano, assim como o trabalho de cenografia e figurinos, que são especialmente eficazes na criação plástica de Bloom, com as suas roupas exatas e simples, e o seu apartamento despido com um rasgo de cor e vida numa planta solitária junto à presença central da televisão.

 Este trabalho exemplar de um ponto de vista plástico, revela aquele que para mim será, um dos, se não o grande tema do filme. Falo da imagem, essa coisa distante e afastada de nós, algo superficial e vazio, algo representativo de uma realidade, que mesmo assim está longe de ser aquilo que expõe e representa. Veja-se a preocupação do filme em criar imagens de Bloom com o seu figurino rigidamente constante, o seu vistoso e um pouco incongruente carro vermelho, o seu olhar estético para a violência, etc. As imagens e o modo como estas nos distanciam da realidade ao nos mostrarem uma representação distante desta parecem ser algo tematicamente constante no filme. Até a própria relação de Bloom e Nina parece até um certo ponto ser uma criação de Bloom de uma relação e de uma imagem que ele quer transmitir de si mesmo, mesmo que a única pessoa a ver essa imagem seja ele mesmo.

 Bloom e Nina, esses vampiros noturnos, são, aliás, os que mais sedentos de imagens do que de sangue, basta olharmos o modo como Bloom parece olhar quase apaticamente para os horrores à sua frente, mas olha para o visor da sua câmara de modo extático e quase enlouquecido. Sei que é uma análise um pouco simplista do filme, mas penso ser mais interessante olhar o filme como uma exploração da distância entre a imagem e a realidade do que como uma mera crítica social de ideias já cansadas e repetidas.

 É, tendo em conta tudo isto, um grande primeiro passo para Dan Gilroy, e um grande passo no desenvolver de Gyllenhaal como ator. Mesmo que se aprecie este filme como um normalíssimo thriller, continuo a achar que existem variadas virtudes e complexidades no mesmo, que farão dele uma obra essencial a qualquer amante de thrillers contemporâneos ou mesmo de cinema americano em geral.

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