Quem diria que em 2015, um dos mais infelizes vencedores do
Óscar de Melhor Filme na história dos galardões, Rocky, teria direito a
uma sequela, na verdade um reboot,
que conseguiria, não só, superar o original, como ofuscar todas as sequelas
anteriores e tal modo que todos os filmes sobre o célebre pugilista de
Filadélfia a parecem melhorar em retrospetiva? Certamente eu não seria a pessoa
a afirmar tal coisa. Mas o facto de que, Creed é um dos melhores filmes
americanos de 2015 e, certamente, o melhor filme de todo este franchise.
O filme desenvolve-se à volta de Adonis (Michael B. Jordan)
o filho ilegítimo de Apollo Creed que, depois de ter sido criado no privilégio
disponibilizado pela mulher de Apollo (Phylicia Rashad) que lhe serviu de mãe
adotiva, vai para Filadélfia com o intuito de seguir as pisadas do pai,
tornando-se um lutador profissional. Nessa cidade, ele tenta convencer o
lendário Rocky Balboa (Sylvester Stallone) a treiná-lo, ao mesmo tempo que vai
iniciando uma relação amorosa com a sua vizinha, Bianca (Tessa Thompson), e se
vai tentando afirmar sem usar o nome do pai. Eventualmente, como seria de
esperar, o jovem protagonista começa a alcançar sucesso e Rocky acaba por se
tornar numa inseparável figura paternal, sendo que o filme culmina numa épica
luta em que Adonis é o esperançoso underdog
face ao campeão do mundo.
O guião é dissimuladamente simples, copiando muitos dos
pontos temáticos dos filmes anteriores, ao mesmo tempo que desenvolve uma
perspetiva fascinante sobre a relação de uma nova geração com o legado do
passado. As lendas do passado e a realidade do presente apresentam-se como
forças em constante conflito e paradoxal harmonia, revelando uma complexidade
temática e uma maturidade e inteligência surpreendentes. Em Creed
o futuro e construído sob o passado que é respeitado, emulado, mas que é
eventualmente superado ou reinterpretado. Esta abordagem multifacetada é
sublime na sua sagacidade e é genialmente desenvolvida em imagens tão potentes
como a do jovem Adonis a treinar em frente a uma projeção do seu pai a lutar
contra Rocky, em que o protagonista parece lutar com a lenda passada de seu
progenitor ao mesmo tempo que desenvolve o seu legado pessoal sob as costas da
herança de Apollo Creed.
Esta relação do presente com o passado nunca é melhor
espelhada que na cansada figura de Rocky, magistralmente interpretada por
Sylvester Stallone. Se me dissessem que eu estaria a defender Stallone como a melhor
escolha de entre os possíveis candidatos ao Óscar de Melhor Ator Secundário eu
ter-vos-ia acusado de abjeta loucura. Eu teria estado completamente errado.
Rocky é um mamute vivo, um fóssil que ainda respira e vibra
com uma cansada vitalidade. Ele é um homem que perdeu as pessoas mais
importantes na sua vida e que, na sua velhice, parece estar desgastado pelo
simples ato de continuar a viver, não fosse a luminosa presença de Adonis, que
força este herói a regressar às suas glórias e a lutar pela sua existência,
contra a doença, contra o desgaste do tempo e contra a inevitabilidade da sua
irrelevância no panorama da atualidade. Aquando de uma coleção de intensas
confrontações entre o jovem lutador e o seu mentor, Stallone demonstra uma
subtileza emocional mais poderosa que qualquer outro trabalho na filmografia do
ator, cuja própria linguagem corporal enquanto Rocky Balboa demonstra a
formidável força do seu físico passado obscurecida pelo implacável peso dos
anos, da idade e da fatiga.
A acompanhar o glorioso trabalho de Stallone está um
maravilhoso elenco, liderado pelo carismático Michael B. Jordan, um ator tão
formidável na sua musculosa fisicalidade como na sua poderosa vulnerabilidade.
Também Tessa Thompson é de destacar, pegando num papel que poderia ser
facilmente unidimensional ou simplesmente funcional e tornando-o numa palpável
presença humana.
Com uma matura e energética abordagem da parte de Ryan
Coogler, um guião surpreendentemente complexo e um formidável elenco, Creed
já seria um legítimo sucesso cinematográfico, mas o filme não se fica
por aí. Dos seus aspetos técnicos, a música é de particular magnificência. Ludwig
Göransson compõe uma poderosa banda-sonora, onde o tema principal pulsa com uma
maravilhosa intensidade, construindo uma identidade sonora para Adonis tão
memorável como o tema que Bill Conti escreveu para o Rocky original. A música
de Conti chega mesmo a marcar a sua presença num dos momentos mais intensos do
clímax, naquele que é a mais gloriosa e inteligente utilização de música no
cinema de 2015.
A banda-sonora é um perfeito acompanhante da montagem, sendo
que estes aspetos conferem ao filme um preciso e dinâmico ritmo, que vai
modulando as tonalidades do filme, nunca descurando ora nas partes mais
emocionais e pausadas ora nos momentos mais épicos e gritantes. As lutas em que
Adonis participam são o ponto alto para a montagem e para a brilhante
fotografia de Creed, quer seja a magistral luta filmada num ensandecido plano
sequência ou a operática luta final. Esse derradeiro conflito é uma sequência
de pura glória do cinema americano de 2015, construindo uma complicada, mas
eficiente, mistura de ritmos díspares, tensão arrebatadora e uma comovente
empatia para com ambos os oponentes e as personagens que os apoiam e observam.
Creed é um dos mais surpreendentes triunfos do ano, sendo uma
obra que não deveria ser subestimada pelo seu apelo populista ou seu estatuto
como mais uma sequela na máquina de infinita e doentia reciclagem de ideias que
é a Hollywood contemporânea. Coogler, Jordan, Thompson, e outros, provam-se
aqui como vozes essenciais para o futuro do cinema de Hollywood, e as lendas do
passado como Stallone, demonstram como ainda nos conseguem surpreender e
revelar uma genialidade usualmente ignorada no seu trabalho.
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