Por
vezes existem filmes que necessitam de uma certa bagagem, de um certo
conhecimento prévio dos códigos e fórmulas do cinema. Filmes que se empenham na
desconstrução, ou pelo menos, na exploração das características do cinema em
si, das suas especificidades e dos seus géneros particulares. Na sua segunda
obra como realizador, Tommy Lee Jones parece ter-se, mais uma vez, embrenhado
no mundo dos westerns, jogando aqui com as expetativas de uma audiência conhecedora
do género, e explorando aspetos deste género, poucas vezes tratados na extensa
filmografia que se estende no panorama cinemático americano desde os dias de
hoje até ao início de Hollywood no princípio do século passado.
Não é que The Homesman, seja apenas uma
desconstrução de género, mas é certamente aquilo que mais me fascinou num filme
com uma imensidão de ideias a voar à sua volta e que parece, em certos casos,
encontrar enormes problemas na exploração dessas mesmas temáticas. O próprio modo
como o filme foi filmado por Tommy Lee Jones e Rodrigo Prieto, pede comparações
com as imagens cristalinas que emergiram da filmografia de tão lendários
criadores como John Ford e Howard Hawks. A fotografia é, aliás, dos mais
gloriosos componentes deste inesperadamente complexo western.
O filme, num modo
inicial, ocupa-se com a história de uma mulher solteira e com poucas oportunidades
de deixar de o ser, Mary Bee Cuddy (Hilary Swank) no velho oeste americano e que
acaba por obter a responsabilidade de cuidar de três mulheres supostamente
loucas, Arabelle (Grace Gummer), Theoline (Miranda Otto) e Gro (Sonja Richter),
através do deserto rumo à igreja de um reverendo e sua mulher (Meryl Streep),
que se disponibilizam para acolher mulheres em condições assim. No início da
sua viagem Cuddy encontra George Briggs (Tommy Lee Jones), um homem perseguido
que ela salva do enforcamento em troca da ajuda deste na travessia com as
mulheres. Assim partem na sua viagem com as três loucas com quem não conseguem
comunicar, sendo que o filme vai explorando tanto o lugar da mulher na
sociedade da época,como as personalidades feridas e cansadas do seu par de
protagonistas. Ou pelo menos é o que parece que o filme vai desenvolver.
Não quero revelar
muito sobre o enredo do filme, um enredo que, adaptado de um romance da autoria
de Glendon Swarthout, me conseguiu realmente surpreender, especialmente no que
diz respeito à trajetória dos protagonistas e à estrutura do filme que parece
dividir-se em duas metades com uma metade focada em cada um dos dois
protagonistas, Cuddy e Briggs. Tenho que dizer que acho a primeira metade muito
mais interessante, sendo que no seu niilismo e completo vácuo de esperança ou
alegria, a segunda metade torna-se demasiado pesada para a sua experimentação,
perdendo algum do seu impacto, especialmente com os seus ocasionais devaneios
de tom e tema como um interlúdio violento num hotel que acaba por nos oferecer
uma das mais belas e pitorescas imagens do filme.
Se bem que, essas
variações violentas de tom e registo, são parte do que cria um ambiente de
tanta surpresa e imprevisibilidade no filme e que vão rompendo com as tradições
ossificadas que tanto caracterizam o típico western. Mas, ao mesmo tempo, a
falta de coerência traz ao filme problemas, especialmente no seu
desenvolvimento da figura da mulher na época do western, que é
interessantemente explorada na figura de Cuddy, uma mulher que, apesar de
tentar incorporar em si todos os dotes e preceitos de uma boa mulher da época,
e que tanto quer casar com alguém, parece estar condenada a uma invariável
solidão, nem que seja uma solidão puramente na sua psique. Mas que nas figuras
das mulheres, vítimas da sociedade e da austeridade violenta da vida no oeste,
que aqui perde qualquer misticismo ou glamour que lhe possamos associar, parece
perder-se. Elas tornam-se mais ideias que personagens, o que é bom e mau para o
filme, criando imagens e momentos inesquecíveis e de enorme intensidade, mas
criando também imagens bidimensionais de cifras ensandecidas em forma de
mulher. A figura feminina como uma vítima indecifrável do oeste americano, algo
que parece funcionar nas motivações opacas de Cuddy, mas que se torna bastante
dúbio e, talvez, ineficaz nas figuras das três mulheres loucas.
Mas complementando a
aparente discordância temática e de tom, vem a concretização técnica do filme,
que tudo faz para pegar nessa discordância e a tornar numa escolha deliberada e
estilística, elevando todo o filme com isso. O som, em particular, é de
salientar, usando efeitos sonoros expressivos e volumosos com uma banda-sonora
da autoria de Marco Beltrami que torna toda a paisagem sonora do filme em algo
alienígena e estranho. Junte-se à violenta atmosfera sonora com a fotografia
que parece querer criar imagens cristalinas e potentes com uma inegável beleza
estética, e temos um filme de intencionais contrastes e dissonâncias.
A fotografia cheia de
beleza estética é particularmente interessante, tendo em conta o modo como a
cenografia de Merideth Boswell e os figurinos de Lahly Poore criam um mundo de
paisagens e casas áridas onde as pessoas parecem enclausuradas em roupas
desconfortáveis e rígidas, sujas, mas com pretensões de respeitabilidade.
Existe uma beleza na criação da vida dura do Oeste, sendo que a fotografia de Pietro
é, mesmo assim, essencial em diferenciar o filme de tantas outras duras e
realistas representações da mesma época. O filme parece, a partir dos seus
visuais e sons, comentar o modo como o próprio género cinematográfico que é o
western glorifica e embeleza uma existência de interminável sofrimento e de uma
natureza violenta e estéril, ignorando essa rudeza da realidade ou glorificando
heroicamente esse mesmo sofrimento.
A acompanhar este
inspirado trabalho técnico vem o trabalho do elenco, que apesar de ter os seus
limites textuais, especialmente no que diz respeito às três mulheres loucas,
consegue trazer uma coleção de interpretações exemplares que parecem
concretizar perfeitamente a visão de Jones. Swank é particularmente eficaz
naquela que é, para mim, a sua melhor interpretação desde a sua vitoriosa
performance em Boys Don’t Cry,
trazendo uma vulnerabilidade inesperada ao seu trabalho e uma dureza e força
superficial à sua postura. Apenas James Spader me desiludiu, mas isso é tanto
um problema de interpretação, como é um problema de casting.
Apesar de certos
problemas com o guião, especialmente de um ponto de vista de análise feminista
da segunda metade, o filme traz uma inesperada experimentação a um género que
nos passados anos tem parecido perdido e sem rumo, mas a que Jones dá uma nova
energia e vigor. Mesmo que nada traga de novo, este é um filme que me faz
esperar antecipadamente a próxima aventura deste criador no papel de
realizador.
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