segunda-feira, 27 de julho de 2015

QIU JU DA GUAN SI (1992) de Yimou Zhang




 É usual, quando se fala em longas e prolíferas parcerias entre atores e realizadores,  mencionarem-se associações como De Niro e Scorsese, Ullmann e Bergman, Farrow e Allen, e até Mifune e Kurosawa. Um outro par que parece seguir o caminho trilhado por estas célebres colaborações é a de Yimou Zhang e a sua musa por excelência, a luminosa e impossivelmente bela, Li Gong, com quem já fez até à data sete filmes, incluindo criações tão admiráveis como Da hong deng long gao gao gua de 1991 ou Ju Dou de 1990.

 É interessante mencionar esses dois filmes, pois são os filmes na carreira de Yimou, que imediatamente antecedem este filme. Se nessas outras obras havia quase que uma romantização visual de um mundo cruel e frio, tendo este antigo diretor de fotografia trazido à crueldade humana uma beleza estonteante, aqui vemos uma fuga para um realismo mais simples e mais interessado numa crítica social, que apesar de presente, nunca havia sido tão óbvia nas suas obras anteriores com esta atriz.

 O filme retrata a busca de uma camponesa por um pedido de desculpas pela parte do líder da sua comunidade rural, depois de este ter pontapeado o marido de Qiu Ju nos testículos. Para conseguir esta simples justiça, a protagonista irá passar pelas mais ridículas explorações do sistema burocrático chinês até que no final do filme, obtém uma aparente justiça. O sistema que até não parecia surdo e inativo, castiga de modo desmesurado o líder da comunidade, algo que Qiu Ju nunca teria tentado causar.

A palavra sátira parece apropriada a esta estranha comédia realista, em que o realizador parece apontar o dedo a uma sociedade e a um sistema burocrático contemporâneo em que nada parece resultar do modo que deveria, e em que os seres humanos afetados pelo sistema parecem sempre ser uma consideração esquecida. E dentro dessa sátira, o filme parece ir em busca de um grande realismo, podendo-se mesmo comparar este filme com as grandes obras realistas que deflagraram pela Europa no período do pós-guerra, pelo menos na minha muito pessoal perspetiva.

Veja-se a insistência em usar o dialeto singular da região onde o filme tem o seu começo, um dialeto que seria familiar para o realizador que aqui utilizou as suas origens humildes na criação de um incisivo retrato social. O próprio modo como o filme vai utilizando locais reais, avançando de um mundo rural e subdesenvolvido para as crescentemente caóticas paisagens urbanas, mostra uma preocupação com um realismo aplicado a uma contemporaneidade sofredora mas resiliente.

E não são só as palavras das personagens ou o visual do seu espaço envolvente, mas também o sempre presente som que parecem procurar um realismo cru. O modo como a música tradicionalmente chinesa e os constantes sons de rua se unem na criação de uma paisagem sonora de considerável verismo, também é essencial na construção realista desta trama social.

O filme inicia-se, expondo logo os seus interesses realistas e sociais. Vemos uma multidão na rua. A câmara não se parece focar em nenhum destes indivíduos em particular, sendo que lentamente percebemos quais são os nossos protagonistas emergentes desta amorfa massa de gente. O filme parece condicionar-se a si próprio como apenas uma de várias histórias de vida que se vão desenrolando em paralelo à trama dos nossos protagonistas, que são apenas alguns indivíduos numa imensidão de pessoas nessa sobrepopulada nação que é a República Popular da China.

Há que lembrar, no entanto, o caráter cómico deste filme. Apesar de todo o seu dramatismo apoiado numa base realista, este filme é uma espécie de comédia. Aproxima-se muito mais das estranhas comédias negras que marcam a produção cinematográfica da Europa de Leste do que da maioria das comédias americanas, muito mais presentes no nosso panorama cinematográfico geral. O modo como o próprio comportamento das pessoas envolvidas no desenrolar do enredo parece sempre pretender uma certa delicadeza e gentileza natural, impedem o filme de chegar a quaisquer níveis de melodrama, havendo sempre uma curiosa e extremamente insistente simpatia humana neste filme, que na sua exploração social consegue adquirir um grande caráter humanístico.

 Voltemos ao início deste texto e lembremo-nos de Li Gong e sua contribuição indispensável ao sucesso geral desta produção. O filme apoia-se no trabalho da sua protagonista sem no entanto descurar a vida das suas outras personagens. Repare-se no modo como a câmara raramente dá a esta estrela do cinema chinês, a proeminência que seriam de esperar. Li Gong nunca é uma presença demasiado forçada no filme, cedendo qualquer holofote que lhe possamos querer oferecer e sempre se reduzindo ao seu papel como outro elemento deste jogo burocrático que o filme insiste em retratar.

 Há, no entanto, um momento em que Gong Li é tratada como a estrela e como a luminosa presença que é, falo dos momentos finais do filme. Esses momentos são, sem dúvida, os mais dramáticos e de caráter mais trágico em todo o filme. A comédia e a sátira parecem tomar um lugar de menos relevo em relação a uma emergente tragédia humana e tudo isto pode ser lido no trabalho de Li Gong, cuja expressão de angústia ocupa o ecrã nos últimos momentos do filme, quase que nos forçando a ver o elemento humano por detrás de toda esta história. Yimou e Li, impõem-nos esta imagem humana, este reforço de que, apesar de toda a sua exploração social e burocrática, este é um filme interessado nas pessoas que explora e não apenas em ideologias e imagens vazias de humanidade.


Sem comentários:

Enviar um comentário