terça-feira, 28 de julho de 2015

TIMBUKTU (2014) de Abderrahmane Sissako




 Vivemos numa época em que a ameaça dos fundamentalistas islâmicos parece emergir com cada vez mais tenebroso poder todos os dias, como uma sombra de opressão crescente na nossa sociedade moderna. Com tal presença nas nossas vidas é impossível caminhar para um filme como Timbuktu sem uma certa carga de expectativas e opiniões preformadas. Mais do que qualquer mensagem política, o filme que retrata a vida em Timbuktu no Mali sob o recente controlo de fundamentalistas islâmicos, este filme revela-se como um filme fortemente humanista, onde a exploração sensacionalista da violência do enredo nunca se verifica, substituída por uma frieza distante e bela, intercalada com um olhar sardónico e irónico sobre a futilidade ridícula e cruel das tentativas de opressão religiosa e violenta contra os habitantes de Timbuktu.

 Talvez a maior ironia do filme seja mesmo o suposto impulso religioso e purificador dos invasores à comunidade, com a forçosa virtuosidade religiosa a ser imposta violentamente à população, ao invés de criar um ambiente de ordem pura, cria um inferno terreno, onde o sofrimento humano parece transpirar da própria paisagem que envolve todo o filme num manto de dourado constante em contraste com o azul suave do céu. Um mundo ora belo e simbólico do mundo existente independente do conflito humano, como imagem da prisão que envolve e esmaga as figuras humanas ao longo do filme.

 A paisagem parece prolongar-se na própria arquitetura local, unindo a vida humana e a natureza envolvente. A comunidade de Timbuktu está ligada ao seu lugar físico no mundo. As suas tradições e imagens culturais, como esculturas femininas africanas, são uma prolongação de um sistema vivo invadido por uma força exterior destruidora. Uma força que ora destrói os humanos e seus símbolos, ora parece envenenar a própria natureza como numa cena de uma violência imensa em que um casal é enterrado na areia e executado pelos fundamentalistas.

 O indivíduo é aqui literalmente soterrado pela paisagem, preso ao materialismo físico da sua posição no mundo, e atacado pelo humano violento que tudo corrói na sua procura por ordem e poder.

 Outra imagem inesquecível no filme, talvez até o seu mais celebrado momento, mostra-nos um assassinato num lago, durante o fim do dia. Uma personagem até aí, o centro moral do filme para a sua audiência, é mostrado numa cena de violência despropositada, inserido na paisagem envolvente. A câmara distancia-se da ação, friamente e esteticamente. A água reflete o dourado do céu do crepúsculo iminente. É assim que o mais cortante momento de perversão moral humana é apresentada como silhuetas em movimento distante que quase se esvanecem na luz líquida que enche o olho do espetador. O mundo impõe-se ao indivíduo, julgando-o, expondo-o e envolvendo-o na sua perversão humana e no seu crime.

 Descrevi duas imagens poderosas, mas há que admitir que todo o filme é magnificamente filmado. As imagens apresentam uma precisão geométrica na composição mais comum do cinema europeu que do mais cru e direto cinema africano. As cores intensas tornam cada imagem uma pintura viva e em movimento. A paisagem e a sua beleza são inescapáveis. Um contraste doentio é assim criado entre a precisa e esteticamente bela imagética e a temática da crueldade humana sobre o ser humano. O contraste é central ao filme e essencial na criação do olhar que para mim caracteriza o filme. Um olhar distante, cheio de compaixão mas frio, observando o ridículo do comportamento humano com ironia e ao mesmo tempo piedade.

  Ajudando a isto vêm também os fabulosos figurinos que cobrem a paisagem cromaticamente simples com os seus azuis e laranjas dourados do deserto, com uma infinidade de pinceladas coloridas até que as regras religiosas impostas à comunidade vão substituindo as suas vestes por roupas negras que cobrem todo o corpo feminino, até as mãos com longas luvas que estão no centro de uma das mais brilhantes cenas do filme em que uma peixeira se recusa a usar luvas no seu trabalho provocando uma altercação pública com os homens que patrulham as ruas.

 Esse tipo de momento de conflito entre a comunidade e os seus invasores e suas normas violentamente impostas marca o movimento rítmico do filme. Uma narrativa principal de Kidane, um dono de gado, e seus conflitos com um pescador próximo e com as novas leis impostas sob o regime dos fundamentalistas islâmicos, é constantemente entrecortada com uma crescente torrente de violência como consequência dessas mesmas leis, desde chicoteadas a apedrejamentos até à morte, sendo que a violência se vai intensificando ao longo do filme, sempre e olhada com a mesma distância que tanto parece transmitir frieza como respeito pelas vítimas de um regime injusto e desumano.

 Apesar de toda esta sufocante seriedade e desfile moribundo de sofrimento e injustiça humana, o filme é cheio de momentos de humor negro e seco, nomeadamente à custa dos próprios invasores e sua incapacidade de viver com as suas próprias regras de conduta, assim como de viver com o seu papel de controlo sobre uma comunidade invadida. Cenas como discussões de futebol, que é proibido pelas leis novas, ou uma tentativa falhada de fazer um vídeo de propaganda, são espalhadas pelo filme cortando o sofrimento com um certo ridículo, quase que tornando a crueldade do filme ainda mais forte, mostrando o lado humano e ridículo dos próprios invasores e carrascos das figuras humanas do filme. A violência parece nunca ser mais ácida neste filme, do que quando é cortada com uma exposição do ridículo por detrás da violência em si.

 Sissako nunca deixa o filme cair no miserabilismo sem sentido, chegando a um nível de precisão formal e rítmica impressionantes para um filme que sob a sua beleza estética e momentos de humor negro, vibra com uma fúria impossível de ignorar. Olhamos os crimes cometidos no filme à distância, respeitamos as vítimas em silêncio, os gritos de agonia parecem transparecer como momentos precisos na mise-en-scène, mas a experiência total do filme é uma de raiva moral e humanística, um grito elegante pelo fim do comportamento desumano que marca cada momento do filme que termina com uma imagem ao mesmo bela e aterrorizante de uma inocente a correr no deserto, quase que uma última esperança de fuga ao mundo exposto no filme até então.




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