Depois de obras tão empenhadas num
registo de miserabilismo inescapável como Biutiful
e Babel, é estranho olhar para
esta nova obra de Alejandro Iñarritu e encontrar uma fantástica comédia de um
delicioso humor negro e desenvolvida à volta da figura meta-textual de um ator,
antiga estrela de cinema de super-heróis, interpretada por Michael Keaton, ator
principalmente conhecido pelo seu papel de Batman.
Riggan (Michael
Keaton) é esta figura, este ator, cuja psicologia informa toda a linguagem
estilística do filme, que se vai desenrolando naquilo que superficialmente
parece um longo plano em constante movimento de duas horas, que extingue
quaisquer barreiras temporais e narrativas no seu orgástico trabalho de câmara.
Assombrado pelo seu sucesso passado, personificado principalmente por uma voz
mental da sua personagem mais famosa, Birdman, Riggan tenta encenar, escrever e
atuar num espetáculo na Broadway, tentando recuperar prestígio, respeito e
admiração, que há muito não encontra. Este é um filme que se entrega então, a
uma exploração de uma desesperada personagem, fixada numa busca por aprovação e
validação exterior, assim como de si próprio, e que parece sempre completamente
perdido nos seus devaneios mentais e inseguranças, tornados realidade visual na
concretização plástica do filme.
Ao mesmo tempo que o
filme se desenrola em torno de Riggan, podemos observar uma exploração
humorística e estranhamente melancólica do mundo do teatro americano, da
natureza do ator de teatro, de cinema e do ator celebridade, vemos uma crítica
selvática e um pouco desajeitada à figura do crítico, e observamos também um
elenco de personagens bizarras, humanas, fascinantes mesmo quando envoltas no
cliché e na caricatura.
É difícil encontrar
filmes de tão grande ambição como este filme, a níveis temáticos e técnicos,
assim como visuais e performativos, mas há que apontar alguns poucos problemas
de que o filme padece, na minha opinião, antes de me aventurar mais pela glória
com que o filme explode da tela de cinema. Para começar, penso haver algumas
limitações temáticas no guião, especialmente na sua exploração da figura do
ator, que por vezes cai na caricatura como na personagem de Mike (Edward
Norton), um ator prima-dona adorado pela crítica e que, apesar de uma
personalidade abrasiva, manienta e cheia de pretensiosismos ridículos, parece
procurar uma intensidade e realidade em palco em tudo contraditórios à
caricatura que apresenta na vida real, assim como a crítica vilanesca Tabitha
(Lindsay Duncan) que assombra o filme com o seu ódio pela ideia de uma
celebridade de Hollywood tentar entrar no mundo do teatro da Broadway, sem
falar noutras figuras que recheiam o filme…
Também há um enorme e
flagrante problema estrutural no filme que revela as limitações e contradições
do estilo e do guião do filme. Resumidamente falando, este é um filme que está
completamente dependente do ponto de vista do seu protagonista, sendo que todo o
estilo de filmagem do filme parece ser um prolongamento dessa psicologia ferida
no seu centro. Essa prisão ao ponto de vista é essencial para o filme que, no
entanto, parece perder-se em enredos secundários com outras personagens que
parecem trair a história sobre a qual, principalmente no final, o filme se
desenvolve. O facto de não haver cortes explícitos na montagem da maioria do
filme, apenas exacerba mais estes problemas na conceção do filme e no seu
abandono do olhar de Riggan. Mas isto não é apenas uma fonte de problemas,
visto que alguns dos mais belos momentos do filme só são possibilitados por
estas fugas da perspetiva do protagonista, nomeadamente as cenas partilhadas
entre Mike e Sam (Emma Stone), a filha de Riggan, recentemente saída de uma clinica
de reabilitação e presente assistente pessoal do pai. As cenas que os dois
partilham, quebram e dissecam muito do absurdismo que as suas caracterizações
no resto do filme, por vezes, denunciam, conferindo uma grande profundidade
temática e maturidade psicológica ao filme. Algo que, por exemplo, parece
faltar à personagem de Tabitha que parece querer simbolizar todos os críticos e
que se parece revelar um monstro bidimensional e ridículo, apesar do
maravilhoso trabalho de Duncan, especialmente numa cena em que a crítica é
confrontada com um vil e venenoso discurso de Riggan, cujo desespero se parece
aqui converter em ataques vitriólicos aos críticos de teatro.
Mas, apesar disto, o filme é na sua
generalidade um triunfo cinemático apoiado num glorioso trabalho da sua equipa desde Keaton a todos os aspetos técnicos do filme.
Este ator de quem não esperava muito, tenho de admitir,
expõe-se aqui nesta personagem de óbvias semelhanças ao próprio ator, numa
crueza e expressividade que são impossíveis de ignorar. Por muito indulgente
que o filme possa parecer para com a sua personagem, Keaton é aqui uma
revelação, sendo particularmente impressionante na sua expressividade facial
apenas acentuada pelo modo quase predatório como a câmara, por vezes o filma.
Emma Stone é também surpreendente, arrasando todos os seus “grandes” momentos com
uma mistura curiosa de raiva quase adolescente e petulante com uma inocência
inesperada. O modo como a expressão da atriz muda depois de um zangado discurso
da personagem ao seu pai, é algo sublime, assim como a maturidade que Stone
consegue revelar nas cenas partilhadas com Edward Norton no terraço do teatro.
Norton também é de
louvar no modo como encontra a comédia absurda no seu retrato caricaturado de
um ator pretensioso e com quem parece ser um pesadelo trabalhar, encontrando um
lado genuíno no seu comportamento em momentos específicos como os seus
interlúdios com Stone, iluminando com uma nova luz no irritante e pretensioso
registo que acompanha a maior parte das suas cenas e sequências.
Em papéis mais
pequenos, Andrea Riseborough, Amy Ryan e Lindsay Duncan são breves delícias
neste filme, sendo que Duncan é de particular valor, retirando alguma da
bidimensionalidade agressiva da personagem da crítica de teatro. E, há ainda
que mencionar, Naomi Watts naquela que é talvez a sua melhor prestação desde The Painted Veil, sendo que numa cena
partilhada com Keaton no camarim de Riggan, a atriz mostra uma complexidade que
até aí a sua personagem não parecia ter, dando luz a uma narrativa pessoal
paralela, e lembrando que fora da insularidade de Riggan, existem outras
pessoas e outras vidas, para com as quais o ator parece muitas vezes
indiferente, focando-se em si mesmo e no seu turbilhão emocional.
A fotografia de
Emanuel Lubezki é de particular relevância. Aqui este génio mexicano perde um
dos seus principais fatores de sucesso, a luz natural, mas ganha uma
expressividade fantástica nas luminosidades coloridas e artificiais que povoam
este mundo teatral, sendo que até uma loja de bebidas alcoólicas parece existir
num registo visual semelhante a um espetáculo psicadélico e exuberante. Mas
mesmo com a luz posta de parte, temos o movimento da câmara, incessante e
maravilhoso, que ganha principal genialidade no seu movimento tridimensional
nos momentos em que explora as mudanças de cena dentro do espetáculo dentro do
filme, misturando o artifício flagrante das técnicas de palco com o movimento
puramente cinemático de uma câmara de cinema.
Essa junção de dois
mundos é, talvez, o mais interessante componente do filme, que apesar de
algumas cenas e diálogos, não parece criar grandes juízes de valor em relação a
estas duas artes. O interesse do filme parece focado, como já disse, em
explorar a personagem de Riggan quase que se assemelhando mais a um stream of consciousness que a um
tradicional guião de exploração de personagem e isso retira algum do mau sabor
que cenas como o já mencionado discurso enraivecido de Riggan a Tabitha podem
deixar num espetador, sendo que estamos bastante entrincheirados na perspetiva
insegura e enraivecida de Riggan.
Talvez não seja, para
mim, a obra perfeita que outros parecem declarar este filme, mas como um estudo
de personagem, com admitidas limitações temáticas e textuais, e uma experiência de incrível ambição técnica e formal, Birdman é um
triunfo.
Tal como Stone na
luminosa imagem final do filme, nós, como membros da audiência, podemos apenas
olhar para esta obra a voar sobre as nossas cabeças num esplendoroso voo de
glória e ambição. Sangue, suor e lágrimas podem ser aqui derramadas mas, longe
de ser uma criação elitista ou alienante, o filme revela-se como uma das mais
excitantes experiências cinemáticas que o cinema contemporâneo americano tem para oferecer, nem que seja de uma perspectiva puramente técnica.
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