terça-feira, 28 de outubro de 2014

LA TERRA TREMA (1948) de Luchino Visconti



 Por vezes interrogo-me se, aquando de uma reflexão sobre uma obra, deveríamos pensar nela como uma obra individual, a ser avaliada pelos seus méritos e defeitos, ou se deveríamos sempre tentar contextualizá-la, tanto na obra do seu autor assim como no tempo e corrente a que possivelmente pertencerá. Será que devemos olhar um filme como uma obra singular sem ter em atenção o seu contexto? Será isso justo? Mas será justo valorizar algo apenas pela sua importância e contexto, sem ter qualquer atenção à qualidade relativa da obra?

 Normalmente, acabo sempre por ver uma obra em contexto, mas, por vezes, penso que deveria tentar evitar isso, de modo a friamente conceber uma visão objetiva. Digo tudo isto para esclarecer logo à partida que, aquando do meu primeiro visionamento desta supra suma obra do cinema italiano do pós-guerra, eu estava cheio de dados históricos, ideias pré-concebidas e expetativas em relação ao filme.

 Talvez fosse apropriado, portanto, esclarecer um pouco desse contexto que acima referi. Esta obra pertence à filmografia daquele que será, de um ponto de vista estritamente pessoal, o mais fascinante dos realizadores italianos que marcaram o cinema do seu pais nas décadas que se seguiram ao final da segunda Guerra Mundial. Confesso que, se me obrigassem a fazer uma lista dos meus realizadores prediletos, o nome de Luchino Visconti estaria decerto aí.

 É uma obra que é, usualmente, tida como um ponto de deserção entre Visconti e os seus colegas no movimento neorrealista, sendo que esta separação seria principalmente notória em relação à obra de Rossellini, por exemplo. Foi um projeto que terá começado a sua existência como uma encomenda do partido comunista italiano a Visconti, um ávido apoiante da causa comunista apesar das suas origens aristocráticas. Inicialmente teria sido concebido como parte de uma trilogia documental que refletisse sobre o proletariado italiano. O filme, aliás, ainda apresenta como subtítulo “Episodio del mar”, visto que seguidamente seriam feitos episódios sobre mineiros e agricultores, assim como um pequeno acrescento sobre os trabalhadores urbanos.

 Esse idílico e megalómano projeto acabaria por nunca se concretizar, e o documentário sobre a vida dos pescadores de Sicília, ir-se-ia acabar por converter numa ficcionalização neorrealista das suas vidas, em parte feita em torno de uma adaptação do romance I Malavoglia, que o realizador já tentara anteriormente passar a celulóide

 Este último ponto é de particular interesse, quando temos em mente que, após a sua criação daquele que é considerado como o primeiro filme neorrealista Ossessione, Visconti terá tentado variadas vezes começar projetos cinematográficos, só para os ter sistematicamente bloqueados pelo regime. Sendo assim, o conde de Lonato Pozzolo ter-se-á virado para a produção teatral nos seis anos que separam estas suas duas obras. Este trabalho no teatro terá sido de imensa importância no desenvolvimento da linguagem visual e técnica do jovem realizador, mas disso falarei mais à frente.

 Como podem verificar pela muito vaga contextualização que fiz acima, este é um filme com bastante história por detrás da sua mera existência, e ainda nem sequer referi nenhum dos elementos técnicos e formais que o marcam como tão importante obra na história do cinema italiano. Tudo isto construído à volta de um relativamente simples enredo que acompanha a história de uma família de pescadores. Um dos elementos mais jovens da família, Ntoni (Antonio Arcidiacono), um jovem idealista que terá já visto o mundo exterior à sua pequena vila aquando do serviço militar, tenta mudar a sua miserável existência revoltando-se contra os compradores de peixe, os patrões, que lhes compram o produto a um minúsculo preço. A família, unida sob o sonho de uma melhor existência, hipoteca a casa e tenta montar um sistema em que serão os pescadores a vender o seu próprio produto. Após um breve momento de calma e relativa felicidade esperançosa, as forças sociais, económicas e até naturais, abatem-se sobre a família, e no restante tempo do filme, observamos a crescente miséria sofrida pelos nossos protagonistas.

 Logo pelo enredo conseguimos perceber a forte componente social que Visconti pretendia explorar nesta sua obra. Apesar de muitas vezes montar as suas obras como uma reflexão de tempos passados, há que lembrar que Visconti se tratava de um indivíduo extremamente político. Os seus filmes poderiam não chegar ao nível de grito de fúria social que Pasolini terá alcançado em anos seguintes, mas não será por isso que não se encontra neles fortes mensagens políticas e de cariz social. Isto nunca terá sido tão visível e francamente, tão óbvio como nesta obra, em que, se a própria história já não fosse suficiente, temos um constante narrador em voz-off que vai comentando o filme e que praticamente guia a audiência de modo a melhor obter uma reação de ultraje social.

 É este voz-off, aliás, que, aquando de uma reação inicial e talvez precipitada, considerei como o elemento mais infeliz desta obra. Percebia as suas intenções e o modo como torna o filme e as suas mensagens e reflexões bastante acessíveis, mas não consigo parar de o considerar como um lugar-comum e fácil, até manipulador. Achei-o um elemento um tanto ou quanto desnecessário.

 Mas, como se pode verificar pelo meu uso do passado, a minha opinião sofreu alterações. Creio que, ao contrário da maioria da obra neorrealista, este filme se apresenta como algo mais grandioso que a vida comum de uma miserável Itália. Veja-se o modo como Visconti filma o filme e especialmente a relação entre a figura humana e a paisagem natural que se parece impor sobre os seres que nela habitam.

 Uma imagem como a mãe e as duas irmãs de Ntoni, a esperarem os homens de família nos rochedos junto ao mar durante uma tempestade, parece quase pertencer a uma tragédia grega, ou até a uma epopeia. Os vultos negros rasgam a brancura da espuma e da violência natural, quais Perséfone esperando Ulisses. Este foi apenas um exemplo de várias poderosas imagens que permeiam o filme.

 Este caráter operático e quase mitificante, parece estar de acordo com o tipo de história a que um narrador parece pertencer, quase que gravando nas linhas do tempo, através da palavra, a história do herói trágico que tudo perdeu na busca da justiça. Aqui o realizador parece quase fazer-se Homero ao narrar a história desta família, como que elevando os protagonistas a estatutos de heróis e mártires na mente da audiência.

 Penso que nesse aspeto se vê uma grande maturação no estilo de Visconti que, de modo bastante revolucionário para a industria cinematográfica italiana, decidiu filmar o seu filme com som direto, obtendo assim uma violenta paisagem sonora, cheia de sons marítimos e ventanias furiosas que assolam a pequena vila de Aci Trezza, quase castigando os humanos que se predispõem a sobreviver neste ambiente.

 Para além do ruído do ambiente, há que mencionar que o diálogo do filme não é falado em italiano mas sim no dialeto que as próprias pessoas que habitavam a vila onde o filme se passa e onde foi filmado. Esta população terá. Aliás, composto o elenco do filme. Um elenco de não-atores portanto. Verifica-se aqui uma procura por uma crueza, um verismo que, apesar de parecerem contraditórios, convivem lado-a-lado com o interesse formal e operático de Visconti, assim como com a forte mensagem política, muitas vezes expressa em imagens.

 Acerca deste último ponto gostaria de referir dois momentos de particularmente óbvio interesse social e político presente na realização do filme. O batismo dos novos barcos de pesca, mostrado com toda a pompa e circunstância. Imagens desapropriadas à miséria que foi explorada no resto do filme e em que a figura de uma velha aristocrata se encontra, sentada à sombra e comendo avidamente e de óculos de sol. Uma figura de quase grotesco face à miséria dos pescadores à sua volta. Outro será, nas cenas finais quando Ntoni pede um emprego nos barcos dos comerciantes, num momento de derrota e resignação, e em que por cima da face do mais velho e trocista comerciante, se vê uma citação de Mussolini. Visconti não poderia ser mais claro sem cair em discursos políticos.

 E é esta modulação e mestria entre os vários aspetos, interesses e impulsos artísticos que, para mim, fazem deste filme uma obra essencial na filmografia deste autor. É um filme que se parece elevar acima de muitos outros neorrealistas, uma obra que se eleva acima da importância que o seu contexto histórico lhe atribui logo à partida. Apesar de explorar temas semelhantes na sua obra-prima de 1960, Visconti alcançou com este filme os píncaros do movimento que havia ajudado a criar em 1942 e que viria a marcar de modo inescapável o panorama cinematográfico italiano.


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