segunda-feira, 4 de julho de 2016

XIAO CHENG ZHI CHUN (1948) de Mu Fei



A história em volta da distribuição, preservação e redenção crítica e popular de Primavera numa Pequena Cidade é tão ou mais celebrada que o filme em questão e, não será erróneo dizer que provavelmente haverá mais cinéfilos a conhecer estas circunstâncias do que realmente tenham visto o filme. Ou pelo menos é-o assim no Ocidente. Na China, seu país de origem este filme foi recebido inicialmente com imensa hostilidade e censura, sendo quase que apagado de existência pelas autoridades que viam a sua introspeção romântica e apolítica como uma mostra de perigosos valores burgueses. Com o avançar do tempo, esta gema, cuja existência é um pequeno milagre do cinema sedeado em Shanghai, foi praticamente esquecido. No entanto, com a redescoberta do negativo, que muitos julgavam perdido e um remake em 2002, houve uma imensa reavaliação do seu valor. Tão drástica foi esta mudança que o filme passou de uma obra ora odiada ou esquecida ao filme que foi eleito, por voto popular, como o melhor filme na história do cinema chinês. Como é que isto é possível? E será que o filme merece tal honra?

Não tenho suficientes conhecimentos sobre o cinema chinês e as maquinações por detrás da preservação de obras proibidas por regimes ditatoriais comunistas para poder responder com certeza a qualquer uma dessas perguntas. Mas, se este é o melhor filme chinês de sempre, é fácil perceber porquê, sendo este um dos mais belos retratos de amor reprimido, de paixão nunca consumada no cinema internacional. Eu chamaria a esta obra o ponto de evolução que está entre Brief Encounter, o comovente drama de guerra e adultério de David Lean, e In the Mood for Love, a máxima obra-prima de Wong Kar-Wai sobre um amor semelhante entre duas pessoas casadas com outros que não as suas verdadeiros amados.


Faço estas comparações pois, tal como esses filmes, Primavera numa Pequena Cidade centra-se em torno de uma mulher casada, seu desespero interior e seu desejo por um homem, que não o seu marido e que nunca é consumado num glorioso momento de cinema romântico. Aqui, seu nome é Yuwen, e ela vive numa pequena cidade reduzida a ruínas com o flagelo da 2ª Guerra Mundial, cuja muralha desfeita é o último símbolo da prosperidade passada. Aí, numa propriedade meio destruída o seu marido, Lao Huang que é um homem mais velho, neurótico e afundado numa sufocante mágoa; sua jovem e energética cunhada e o servo da família. Nunca vemos a cidade, nem as pessoas de fora do núcleo familiar, a não ser um visitante, Zhang Zichen, um médico e antigo amigo de Lao Huang que, inesperadamente, também é um antigo conhecido da protagonista, sendo mesmo um antigo apaixonado dela. Como seria de esperar com este cenário estabelecido, o romance entre os dois rapidamente volta arder silenciosamente e o desejo de sair de uma vida de desespero abate-se sobre todo o elenco de personagens.

Assim que o filme começa, Mu Fei revela como é um absoluto mestre do cinema narrativo, introduzindo as diferentes figuras e estabelecendo seus principais conflitos e relações assim como o espaço físico e psicológico em pouco mais de dez minutos. É claro que devido valor tem de ser dado ao uso de voz-off, um enorme auxílio nesta eficiência dramática. A voz em questão é a de Yuwen, mas tendo em conta como a narração parece ser feita de uma perspetiva futura e de como muitas vezes se torna omnisciente no seu alcance e conhecimento, é quase possível considerar esta a sexta personagem do filme. Eu diria mesmo que a narração é um dos elementos mais claramente modernistas do filme, fugindo ao tipo de voz-off dos noir de Hollywood ao usar a personagem feminina e explorar com ela a interioridade de uma mulher profundamente deprimida e perdida numa vida esvaziada de sentido ou futuro.


Esse vazio é o ponto fulcral do filme e sua representação de um mundo no rescaldo de uma grande guerra. Estas pessoas viram o seu futuro ser reduzido a cinzas diante dos seus olhos e não sabem o que fazer a não ser recordar o que já não é, olhar melancolicamente ruínas e falar de momentos de felicidade e juventude meio esquecida. É por isso que todas as personagens parecem magicamente atraídas para a muralha da cidade antiga, e é por essa mesma razão que apenas a jovem que nunca viveu senão em guerra ou miséria posterior, consegue ser feliz. Ela, afinal, não tem razão para chorar por um mundo que nunca conheceu nem por um futuro que nunca imaginou para si mesma. Quando o médico aparece ele é uma manifestação humana desse mesmo conflito, sendo a felicidade passada e inalcançável em forma física. Paradoxalmente, ao trazer o romance, ele também se torna na faísca da esperança, por muito frágil que essa dita esperança possa ser.

A sua entrada no filme e na cidade é um choque tanto para as personagens como para a mise-en-scène. Mas poderíamos mesmo dizer que todas as entradas em cena são um choque para a mise-en-scène pois o realizador tudo faz em seu poder para isolar a família central. Como já foi mencionado, nunca vemos a cidade titular nem as outras pessoas que nela vivem, e até a narração, apesar de futura, apenas consegue olhar o passado ou o imediato presente, chegando mesmo a simplesmente descrever as ações ilustradas na imagem como nas Óperas de Pequim. Até o som é um cúmplice deste isolamento humano, ao mergulhar o filme em silêncios anti naturalistas e deliberadamente esconder sons que são descritos no diálogo. Por exemplo, numa cena noturna, as personagens falam de uma sirene que acabaram de ouvir e descrevem a recordação que têm dos alarmes de bombardeamentos aéreos durante os anos de guerra, mas a audiência nunca experiencia tal ruído, como se o próprio som do mundo exterior fosse proibido ou apenas ouvido como um eco traumático de memórias da guerra.


Continuando com esta exploração do isolamento e da formalidade na direção de Mu Fei, tenho de expressar a minha adoração pelo seu trabalho de câmara e uso generoso de discretos planos sequência. Imaginem que alguém pegava na serenidade espacial e arquitetónica dos dramas domésticos de Yasujiro Ozu e os fundia com os movimentos coreografados e baléticos das câmaras de Renoir ou Ophüls e poderão ter alguma ideia do modo como Primavera numa Pequena Cidade se apresenta. Os movimentos são delicados e, por vezes, constantes e ininterruptos, mas nunca chamam atenção para si mesmos, parecendo ditados pelos limites do espaço e sua geometria.

Essa técnica é de particular excelência quando é aplicada aos jogos de olhares e presenças que marca todo o filme. O perfeito exemplo disso é o primeiro jantar do médico na casa familiar, uma cena capturada num único plano que começa numa composição aparentemente simples. Vemos Yuwen virada para nós a preparar algo, no fundo meio desfocados estão sua cunhada a cantar e sua audiência, Zhang Zichen, que está vidrado a olhar para as costas de Yuwen com um sorriso na cara. Parece inicialmente que esta vai ser a cena toda, mas então a protagonista move-se e a câmara acompanha-a revelando seu marido, posicionado de tal modo que está virado para o médico e a olhar a sua observação de Yuwen. Ao longo de toda a cena a câmara vai circulando neste esquema, estudando o modo como as personagens se entreolham e mudam as suas posições, sendo que, a certo ponto, a própria jovem cantora chama atenção ao médico para que este lhe preste atenção. Apenas no fim do longo plano, é que o sorriso sai da cara dele, quando, depois de estar sentada virada para ele, Yuwen se levanta e deixa o espaço vazio, ao mesmo tempo que seu marido e cunhada alegremente tentam conversar com o visitante, obviamente entristecido com a ausência de sua velha amada.


É fácil imaginar autores contemporâneos como o já referido Wong kar-Wai ou Todd Haynes a serem fortemente influenciados por esta simples e delicada maneira de criar teias de interações com pequenos movimentos e olhares, tão perfeitamente calibrados que um simples toque de mãos se torna num evento de intensidade vulcânica. E, tal como no cinema desses dois mestres atuais, tal sucesso íntimo e dramático só é possível devido ao elenco que consegue cumprir as exigências de uma observação profundamente gentil e não forçosa. De destacar aqui está a atriz Wei Wei, que consegue pegar na figura altamente verbosa de Yuwen e nela encontrar uma caracterização profundamente interior e construída em volta de minuciosas mudanças de postura e andar, de posições dos olhos e reticentes movimentos de uma mão que trai a verdade do que lhe vai no coração.


Tais descrições de delicadeza emocional poderão muito bem estar a pintar uma imagem de um filme melodramática e romântico à moda de Hollywood e isso não podia estar mais longe da verdade. Para se comprovar isso, basta vermos o final, um perfeito balanço entre melancolia trágica, incerteza e a luz de uma frágil esperança. A última imagem que vemos é a do casal de marido e mulher, acabados de superar um evento trágico, a oferecerem seu apoio um ao outro enquanto observam a partida de um amigo. A câmara coloca-os junto à muralha e no canto inferior esquerdo do ecrã, sendo eles apenas silhuetas e a composição quase totalmente consumida pelo céu cheio de luz e farrapos de nuvens em formas indefinidas. Essa indefinição é o futuro que está finalmente a mostrar a sua cara, a esperança por um futuro que não é apenas a recordação doentia do passado e seu luto. Estranhamente, numa final mostra de reticência dramática, Primavera numa Pequena Cidade consegue ser esmagador na sua emoção e luminosa humanidade, garantindo o seu lugar como um dos melhores e mais comoventes filmes na história do cinema chinês e do cinema mundial. 


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