Quando falamos de adaptações de musicais ou cinema, ou mesmo
quando falamos de qualquer tipo de texto teatral a ser transposto para o grande
ecrã, há que fazer uma clara distinção entre dois tipos de abordagem. De um
lado, temos os filmes ao estilo de Cabaret e Sweeney Todd que, para
bem e mal, completamente reinventam a sua narrativa para um novo meio de
expressão. Mas também temos aquelas adaptações que se ficam pela simples
captura da encenação teatral com a câmara e a escala necessariamente mais
opulente de uma produção cinematográfica. A primeira versão cinematográfica de The Music Man, estreada em 1962, é um perfeito exemplo desse segundo grupo
de filmes.
Isso pode parecer um prelúdio para uma crítica
vulcanicamente negativa, mas esse não é o caso aqui. Em parte, esta
longa-metragem de Morton DaCosta deve o seu relativo sucesso ao génio presente
no seu material de origem. É certo que isto pode ser uma opinião mais ou menos
rara, mas The Music Man é um maravilhoso trabalho de comédia musical para
o palco. O seu uso de trocadilhos de palavras, sofisticados ritmos verbais e
teia de elegantes melodias perfeitamente combinadas entre si resulta num dos
melhores livros e bandas-sonoras para musicais americanos do meio do século XX,
e tudo isso está presente no filme.
Também presente nesta produção está a máxima raison d’être para a existência deste
específico musical, a titânica prestação de Robert Preston. Na verdade, a única
justificação que o filme necessitava para existir era essa mesma prestação que
antes de chegar ao cânone cinematográfico já havia sido aclamada nos palcos da
Broadway e galardoada com um Tony. Esta encarnação de Harold Hill, um vendedor
ambulante que ludibria as pequenas cidades do interior dos EUA e convence a sua
população a financiar bandas juvenis, é um soberbo trabalho de vibrante energia
performativa, assim como um dos maiores triunfos nos cânones da comédia
musical.
Veja-se a eletrizante rendição de “Trouble”, número em que
Hill despoleta a histeria coletiva na comunidade ao realçar a decadência
virulenta que está para vir devido à recente chegada de uma mesa de pool a
River CIty, para se verificar a genialidade de Preston, sua ensandecida mistura
da energia de um sermão religioso com o oleoso oportunismo manipulador de um
fervoroso vendedor em ação.
Para além de Preston, o restante elenco não chega a nenhum
nível de estratosférico génio, mas são, na sua maioria, imensamente eficazes
nas suas prestações. A energia cómica de Buddy Hackett, por exemplo, é um
maravilhoso complemento ao trabalho de Preston, sendo que a responsabilidade do
sucesso de muitos dos números mais teatrais e exuberantes fica exclusivamente
nas capazes mãos de Hackett e não do protagonista. Paul Ford e Hermione
Gingold, deuses do slapstick cantado,
mostram aqui o seu virtuosismo cómico como o presidente da câmara e sua mulher
obcecada com as novas tendências da dança moderna do início do século XX.
Shirley Jones e sua voz angélica dão vida a Marian, a bibliotecária da cidade e
principal interesse romântico do filme, e podem não transmitir grande
interioridade, mas a sua pureza virginal com um toque de saudável sagacidade é
o perfeito contraponto para a energia híper verbosa de Robert Preston.
Mas é evidente que nem tudo é perfeito. Primeiro, temos o
guião cuja estrutura resulta num filme demasiado longo e cheio de dispensáveis
enredos secundários que, sem a necessidade técnica de mudanças de cenário e
figurinos nos bastidores, não têm razão de existir. E em segundo, temos o maior
e mais pernicioso problema desta produção, o trabalho de Morton DaCosta cujos
triunfos de encenação teatral nunca se traduziram em satisfatórios sucessos do
cinema.
Um dos principais elementos problemáticos do seu trabalho é
uma encenação que privilegia a perspetiva frontal de uma audiência num teatro,
assim como o uso de planos gerais de modo constante. Isto não é ajudado por uma
fotografia imensamente desinspirada e que tem a triste tendência para iluminar
em demasia os cenários, que nunca parecem algo mais real que cenários de
estúdio, e lhes retira toda a profundidade.
Visualmente, os elementos de maior apreço são, sem dúvida, a
coreografia germinada nos palcos da Broadway e aqui re-imaginada para uma
câmara sem grandes ambições pictóricas e os figurinos, cujos toques de
estilização estão em surpreendente harmonia com os pastéis esbatidos da sua
reprodução histórica. O píncaro de ambos estes aspetos é “Shipoopi”, o grande showstopper de The Music Man, em que,
mesmo assim, a direção trai o frenesim energético que a letra e a música
sugerem.
Por muito desinspirada, enfaticamente ilustrativa ou
cronicamente literal que seja a direção, há que admirar a já mencionada e sublime
tradução dos números musicais originados em palco. A complexidade sinfónica,
rítmica e verbal das canções é de particular louvor, começando, pois claro,
pelo genial número de abertura em que a repetição mecânica de falas e uso de
ritmos anti naturalistas e anti melódicos resulta num grupo de enfurecidos
vendedores ambulantes a cantarem o som de uma locomotiva em movimento. Isto
repete-se pelo filme, cujos maiores triunfos, que também incluem “Trouble”,
quase todos os momentos de coro e os duetos de Shirley Jones, são sempre um
resultado da obsessiva fidelidade do filme às suas origens teatrais.
No final, The Music Man revela-se como um jogo de maravilhosas contradições cinematográficos. A sua teatralidade limita o seu apelo e tem o
triste efeito de tornar o filme numa espécie de cadáver embalsamado de um
espetáculo da Broadway, mas também permite que toda a produção mantenha e
apresente de modo descomplicado os maiores triunfos musicais e performativos do
musical em si. Para uma audiência contemporânea, este será certamente um filme
capaz de testar muitas generosas paciências, mas para grandes fãs de musicais,
teatrais e cinematográficos, há que aceitar que para podermos ver os seus
maravilhosos triunfos como a supernova de inspiração de Robert Preston, temos
de aguentar uma desinspirada encenação, quase anti cinemática.
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