Poucos géneros
cinematográficos são mais associados com o artifício de Hollywood que o
musical, essa confeção por natureza anti naturalista que teve a sua génese no
início do cinema sonoro, durante a Depressão que varreu a economia mundial e
que levou os cinemas americanos a se refugiarem em alguns dos filmes mais
escapistas que a dita indústria do cinema já alguma vez criou.
É um género que, no
ocidente, é maioritariamente sinónimo do cinema americano, com algumas exceções
notáveis, e que parecia chegar ao fim dos seus anos de glória com a chegada da
Nova Hollywood que caracterizou o final dos anos 60 e os anos 70. Neste novo
mundo de possibilidades cinemáticas, o filme musical era algo semelhante a um
fóssil em movimento, uma bizarra lembrança de tempos passados. Alguns filmes
deste género continuaram a ser feitos nestes anos, mas poucos alcançaram grande
sucesso até à chegada do fenómeno que foi Grease
em 1978, e a grande maioria destes filmes refugiava-se no estilo da antiga
Hollywood, parecendo recusar-se a aceitar as novas técnicas e estéticas
absorvidas pelos autores americanos das suas influências maioritariamente
europeias.
Cabaret foi uma exceção a este panorama do
filme musical. Adaptado de um espetáculo musical, que por sua vez havia sido
baseado na peça I Am Camera, que
também ela tinha sido uma adaptação teatral do livro The Berlin Stories de Christopher Isherwood, sendo que da obra de
Isherwood o filme de Fosse se preocupa principalmente com uma das histórias
contidas em Goodbye Berlin, um dos
dois romances de The Berlin Stories.
A história de Isherwood de que falo é simplesmente intitulada Sally Bowles, sendo a origem da
personagem interpretada neste filme por Liza Minnelli.
Sally Bowles é, neste
filme, uma boémia cantora americana cujo trabalho no Kit Kat Klub na Alemanha
de Weimar confere ao filme o seu principal espaço. A sua, é uma presença da
mais pura decadência, a sua sexualidade é livre e para muitos amoral, é
egoísta, egocêntrica e acima de tudo desesperada. Fosse venera esta criação com
a sua câmara, tornando Sally no coração pulsante do filme, sendo que mesmo
quando fora de cena a sua presença parece-se sentir, especialmente quando em
cena encontramos o segundo protagonista do filme, Brian Roberts interpretado
por Michael York, numa clara adaptação do próprio Isherwood.
Brian, um escritor
inglês bissexual e introvertido aquando da sua chegada, é como uma traça
atraída para a chama que é Sally. A sua relação serve como enredo principal à
maior parte do filme, sendo que outras personagens, muitas delas retiradas da
obra de Isherwood, e o avançar da imparável força da história preenchem o resto
do filme, que, como seria de esperar, encontra o seu final com a partida de
Brian sozinho, de volta a Inglaterra, e com a subida ao poder do partido Nazi.
Logo com esta breve
descrição podemos observar como o enredo e temática deste filme nada têm de
semelhante com os modelos antigos de musicais escapistas de Hollywood. Muito
mais próximos dos seus filmes contemporâneos, especialmente na sua franqueza
sexual e na sua flexibilidade moral, do que das obras da era dourada dos
estúdios.
Se bem que o filme
não se esquece completamente das origens tanto do seu género cinematográfico
como do seu realizador cuja carreira havia começado e continuava no teatro
musical, e cujo trabalho em cinema também abrangia o que chamaríamos de
musicais no modelo clássico. Não tanto como uma homenagem, talvez mais como uma
desconstrução típica dos assimilacionistas da Nova Hollywood, Fosse escolheu
para o papel central de Sally, Liza Minnelli, a filha de um dos maiores ícones
da era dourada de Hollywood, Judy Garland. Scorsese usaria Minnelli num modo
semelhante no seu New York, New York
de 1977, mas Fosse parece ir mais longe que o próprio Scorsese no
aproveitamento da carga histórica que Minnelli carregava nos seus ombros. Filha
de Garland e de Vincent Minnelli, um dos mais importantes realizadores de
musicais nessa dita era dourada, a atriz que aqui interpreta Sally, era um
símbolo vivo desse mesmo mundo do cinema musical. Ao invés de a retratar como
uma estrela acima da nossa realidade com soft
focus constante, ou números musicais cheios de glamour, Fosse segue outro caminho.
Veja-se o último
número musical de Minnelli, filmado dentro do Kit Kat Club tal como todos os
momentos musicais do filme excetuando Tomorrow
Belongs To Me. Neste final da personagem de Sally, Minnelli canta a canção Cabaret, tanto para a audiência dentro
como fora do filme, mas mais importante ainda, ela claramente canta a canção
para si mesma. Vestida com um figurino anacrónico e de materiais baratos e
gesticulando em movimentos bruscos e exagerados com as mãos estendidas como
garras suplicantes à audiência, a atriz assemelha-se a um animal amedrontado.
Os seus olhos estão muitas vezes arregalados, a sua expressão quase maníaca,
Minnelli parece passar todo o número no limiar entre uma performance energética
e um ataque de pânico.
Muitos poderiam
apontar para o facto da atriz e cantora usar este mesmo estilo noutros
contextos fora do filme, sendo este o seu estilo de atuação, mas o que me
interessa aqui é o modo como Fosse usa Minneli e este tipo de registo
precisamente neste final. A letra da canção varia entre o triste e mórbido com
o relato da morte de uma amiga decadente da cantora, e um apelo esperançoso e
exuberante, dizendo que a vida é um cabaret, sendo que quando Minnelli canta
estas passagens, esticando os braços para afrente como que em súplica, não é a
audiência que Sally parece querer convencer, mas sim a si própria. Depois de um
aborto, dos seus amantes a deixarem, rodeada de nazis na audiência, e ainda
presa a um trabalho num cabaret de segunda categoria, Sally é uma imagem do
desespero animalesco do ser humano convertida em estrela cantante. Estamos bem
longe de Meet Me in St. Louis ou mesmo
de A Star is Born quando observamos
esta performance sem grandes adornos formais por parte da realização. Aqui
temos um musical para uma nova Hollywood.
Interessantemente, eu
nem chegaria mesmo a dizer que esse seria o melhor momento do filme nem o mais
emblemático, sendo que provavelmente escolheria para tal título o revelar que a
canção Tomorrow Belongs to Me,
inicialmente cantada em grande plano por uma face de um jovem loiro, se trata
de uma inspiradora melodia nazi, ou mesmo os números grotescos de Joel Grey.
Mas este filme, apesar de ser um musical, não é apenas interessante nos seus
momentos musicais. A recreação da República de Weimar por Fosse é
particularmente fascinante. Um mundo de decadência assombrado pelas sombras do
futuro que a audiência sabe que se aproximam. Por muito belas que algumas
imagens possam ser, alguns cenários ou figurinos, Fosse parece sempre
acrescentar algo de exagero ou grotesco que lhes retira a sua simples beleza. O
mundo de Cabaret é, subsequentemente, um mundo podre, numa lenta marcha para um
inferno ainda pior que aquele vivido pelas suas personagens. Quando
descobrimos, por exemplo, que uma das personagens mais simpatéticas e até
cómicas, é judia, é impossível não conjeturar durante o resto do filme qual
será o seu horrível destino. Nunca vemos tal destino, mas a sua presença é
sentida no final do filme.
O filme termina com
um número e uma imagem que são quase um duplicado do início do filme. Em ambos
os casos estamos dentro do clube, sendo guiados por Joel Grey no papel de
Emcee, o mestre-de-cerimónias, uma figura ora cómica, ora ameaçadora. Na sua
presença, Fosse e Grey parecem criar uma personificação da própria República de
Weimar, uma criação decadente, moralmente dúbia, libertina e muitas vezes com
sombras de algo sinistro. É ele que inicia o filme com um grotesco grande-plano
do seu reflexo distorcido por um espelho, indicando logo à partida um mundo
distorcido e errado. Também o último plano do filme inclui um espelho, neste
caso no final do último número musical deste mestre-de-cerimónias. Neste
reflexo distorcido, não é o sorriso sinistro de Grey que vemos, mas sim a
presença de oficiais nazis no cabaret.
O amanhã deste filme
pertence ao sofrimento e crueldade dos anos que se seguirão para as
personagens. Ao invés de nos dar esperança, Fosse apaga qualquer hipótese desta
existir. Em Cabaret temos um novo
tipo de musical, um musical para um novo mundo para o qual o classicismo dos
anos dourados dos estúdios já não fazia sentido. Rude, cru, libertino, franco,
grotesco e inovador, uma experiência sem grande alegria reservada para a
audiência que não deixa de ser delirantemente intoxicante. Talvez o melhor
filme da curta filmografia de Bob Fosse, o que é uma afirmação com grande peso
por detrás quando consideramos que Fosse é o génio por detrás doutro marco na
história do cinema musical, All That Jazz.
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