A história em volta da distribuição, preservação e redenção
crítica e popular de Primavera numa Pequena Cidade é tão
ou mais celebrada que o filme em questão e, não será erróneo dizer que
provavelmente haverá mais cinéfilos a conhecer estas circunstâncias do que
realmente tenham visto o filme. Ou pelo menos é-o assim no Ocidente. Na China,
seu país de origem este filme foi recebido inicialmente com imensa hostilidade
e censura, sendo quase que apagado de existência pelas autoridades que viam a
sua introspeção romântica e apolítica como uma mostra de perigosos valores
burgueses. Com o avançar do tempo, esta gema, cuja existência é um pequeno
milagre do cinema sedeado em Shanghai, foi praticamente esquecido. No entanto,
com a redescoberta do negativo, que muitos julgavam perdido e um remake em
2002, houve uma imensa reavaliação do seu valor. Tão drástica foi esta mudança
que o filme passou de uma obra ora odiada ou esquecida ao filme que foi eleito,
por voto popular, como o melhor filme na história do cinema chinês. Como é que
isto é possível? E será que o filme merece tal honra?
Não tenho suficientes conhecimentos sobre o cinema chinês e
as maquinações por detrás da preservação de obras proibidas por regimes
ditatoriais comunistas para poder responder com certeza a qualquer uma dessas
perguntas. Mas, se este é o melhor filme chinês de sempre, é fácil perceber
porquê, sendo este um dos mais belos retratos de amor reprimido, de paixão
nunca consumada no cinema internacional. Eu chamaria a esta obra o ponto de
evolução que está entre Brief Encounter, o comovente drama
de guerra e adultério de David Lean, e In the Mood for Love, a máxima
obra-prima de Wong Kar-Wai sobre um amor semelhante entre duas pessoas casadas
com outros que não as suas verdadeiros amados.
Faço estas comparações pois, tal como esses filmes, Primavera
numa Pequena Cidade centra-se em torno de uma mulher casada, seu
desespero interior e seu desejo por um homem, que não o seu marido e que nunca
é consumado num glorioso momento de cinema romântico. Aqui, seu nome é Yuwen, e
ela vive numa pequena cidade reduzida a ruínas com o flagelo da 2ª Guerra
Mundial, cuja muralha desfeita é o último símbolo da prosperidade passada. Aí,
numa propriedade meio destruída o seu marido, Lao Huang que é um homem mais
velho, neurótico e afundado numa sufocante mágoa; sua jovem e energética
cunhada e o servo da família. Nunca vemos a cidade, nem as pessoas de fora do
núcleo familiar, a não ser um visitante, Zhang Zichen, um médico e antigo amigo
de Lao Huang que, inesperadamente, também é um antigo conhecido da
protagonista, sendo mesmo um antigo apaixonado dela. Como seria de esperar com
este cenário estabelecido, o romance entre os dois rapidamente volta arder
silenciosamente e o desejo de sair de uma vida de desespero abate-se sobre todo
o elenco de personagens.
Assim que o filme começa, Mu Fei revela como é um absoluto
mestre do cinema narrativo, introduzindo as diferentes figuras e estabelecendo
seus principais conflitos e relações assim como o espaço físico e psicológico
em pouco mais de dez minutos. É claro que devido valor tem de ser dado ao uso
de voz-off, um enorme auxílio nesta eficiência dramática. A voz em questão é a
de Yuwen, mas tendo em conta como a narração parece ser feita de uma perspetiva
futura e de como muitas vezes se torna omnisciente no seu alcance e
conhecimento, é quase possível considerar esta a sexta personagem do filme. Eu
diria mesmo que a narração é um dos elementos mais claramente modernistas do
filme, fugindo ao tipo de voz-off dos noir de Hollywood ao usar a personagem
feminina e explorar com ela a interioridade de uma mulher profundamente deprimida
e perdida numa vida esvaziada de sentido ou futuro.
Esse vazio é o ponto fulcral do filme e sua representação de
um mundo no rescaldo de uma grande guerra. Estas pessoas viram o seu futuro ser
reduzido a cinzas diante dos seus olhos e não sabem o que fazer a não ser
recordar o que já não é, olhar melancolicamente ruínas e falar de momentos de
felicidade e juventude meio esquecida. É por isso que todas as personagens
parecem magicamente atraídas para a muralha da cidade antiga, e é por essa
mesma razão que apenas a jovem que nunca viveu senão em guerra ou miséria
posterior, consegue ser feliz. Ela, afinal, não tem razão para chorar por um
mundo que nunca conheceu nem por um futuro que nunca imaginou para si mesma. Quando
o médico aparece ele é uma manifestação humana desse mesmo conflito, sendo a
felicidade passada e inalcançável em forma física. Paradoxalmente, ao trazer o
romance, ele também se torna na faísca da esperança, por muito frágil que essa
dita esperança possa ser.
A sua entrada no filme e na cidade é um choque tanto para as
personagens como para a mise-en-scène.
Mas poderíamos mesmo dizer que todas as entradas em cena são um choque para a mise-en-scène pois o realizador tudo faz
em seu poder para isolar a família central. Como já foi mencionado, nunca vemos
a cidade titular nem as outras pessoas que nela vivem, e até a narração, apesar
de futura, apenas consegue olhar o passado ou o imediato presente, chegando
mesmo a simplesmente descrever as ações ilustradas na imagem como nas Óperas de
Pequim. Até o som é um cúmplice deste isolamento humano, ao mergulhar o filme
em silêncios anti naturalistas e deliberadamente esconder sons que são
descritos no diálogo. Por exemplo, numa cena noturna, as personagens falam de
uma sirene que acabaram de ouvir e descrevem a recordação que têm dos alarmes
de bombardeamentos aéreos durante os anos de guerra, mas a audiência nunca
experiencia tal ruído, como se o próprio som do mundo exterior fosse proibido
ou apenas ouvido como um eco traumático de memórias da guerra.
Continuando com esta exploração do isolamento e da
formalidade na direção de Mu Fei, tenho de expressar a minha adoração pelo seu
trabalho de câmara e uso generoso de discretos planos sequência. Imaginem que
alguém pegava na serenidade espacial e arquitetónica dos dramas domésticos de
Yasujiro Ozu e os fundia com os movimentos coreografados e baléticos das
câmaras de Renoir ou Ophüls e poderão ter alguma ideia do modo como Primavera
numa Pequena Cidade se apresenta. Os movimentos são delicados e, por
vezes, constantes e ininterruptos, mas nunca chamam atenção para si mesmos,
parecendo ditados pelos limites do espaço e sua geometria.
Essa técnica é de particular excelência quando é aplicada
aos jogos de olhares e presenças que marca todo o filme. O perfeito exemplo
disso é o primeiro jantar do médico na casa familiar, uma cena capturada num
único plano que começa numa composição aparentemente simples. Vemos Yuwen
virada para nós a preparar algo, no fundo meio desfocados estão sua cunhada a
cantar e sua audiência, Zhang Zichen, que está vidrado a olhar para as costas
de Yuwen com um sorriso na cara. Parece inicialmente que esta vai ser a cena
toda, mas então a protagonista move-se e a câmara acompanha-a revelando seu
marido, posicionado de tal modo que está virado para o médico e a olhar a sua
observação de Yuwen. Ao longo de toda a cena a câmara vai circulando neste
esquema, estudando o modo como as personagens se entreolham e mudam as suas
posições, sendo que, a certo ponto, a própria jovem cantora chama atenção ao
médico para que este lhe preste atenção. Apenas no fim do longo plano, é que o
sorriso sai da cara dele, quando, depois de estar sentada virada para ele,
Yuwen se levanta e deixa o espaço vazio, ao mesmo tempo que seu marido e
cunhada alegremente tentam conversar com o visitante, obviamente entristecido
com a ausência de sua velha amada.
É fácil imaginar
autores contemporâneos como o já referido Wong kar-Wai ou Todd Haynes a serem
fortemente influenciados por esta simples e delicada maneira de criar teias de
interações com pequenos movimentos e olhares, tão perfeitamente calibrados que
um simples toque de mãos se torna num evento de intensidade vulcânica. E, tal
como no cinema desses dois mestres atuais, tal sucesso íntimo e dramático só é
possível devido ao elenco que consegue cumprir as exigências de uma observação
profundamente gentil e não forçosa. De destacar aqui está a atriz Wei Wei, que
consegue pegar na figura altamente verbosa de Yuwen e nela encontrar uma
caracterização profundamente interior e construída em volta de minuciosas
mudanças de postura e andar, de posições dos olhos e reticentes movimentos de
uma mão que trai a verdade do que lhe vai no coração.
Tais descrições de delicadeza emocional poderão muito bem estar
a pintar uma imagem de um filme melodramática e romântico à moda de Hollywood e
isso não podia estar mais longe da verdade. Para se comprovar isso, basta
vermos o final, um perfeito balanço entre melancolia trágica, incerteza e a luz
de uma frágil esperança. A última imagem que vemos é a do casal de marido e
mulher, acabados de superar um evento trágico, a oferecerem seu apoio um ao
outro enquanto observam a partida de um amigo. A câmara coloca-os junto à
muralha e no canto inferior esquerdo do ecrã, sendo eles apenas silhuetas e a
composição quase totalmente consumida pelo céu cheio de luz e farrapos de
nuvens em formas indefinidas. Essa indefinição é o futuro que está finalmente a
mostrar a sua cara, a esperança por um futuro que não é apenas a recordação
doentia do passado e seu luto. Estranhamente, numa final mostra de reticência
dramática, Primavera numa Pequena Cidade consegue ser esmagador na sua
emoção e luminosa humanidade, garantindo o seu lugar como um dos melhores e
mais comoventes filmes na história do cinema chinês e do cinema mundial.